Em
Sábado Santo, dia de recolhimento pelo facto de o Senhor estar, supostamente,
no túmulo – selado com uma grande pedra, que para a sua entrada foi rolada, e
com uma escolta de soldados para ali mandada por Pôncio Pilatos, a fim de
guardarem o Cristo, para que Ele não fugisse – alguns crentes, em vez de se
ocuparem com os bolos de Páscoa e, eventualmente, com outros afazeres não
inadiáveis, fazem uma imaginária via-sacra com a Virgem Maria, a Mãe Dolorosa,
agora Senhora da Soledade, revisitando as suas sete dores.
Independentemente
dos habituais formulários, gostaria de apresentar o seguinte, provavelmente
pela ordem inversa dos factos, mas tendo em conta que Maria, no Calvário, nos
foi doada, por Jesus, como mãe dos discípulos na pessoa de João, o Evangelista,
e que nós fomos entregues a Ela, para que nos guie na aprendizagem, a partir de
agora, colhida do Espírito Santo, o Espírito da Verdade, da Fortaleza e da
Oração.
***
Começando
pelo túmulo, em que o Senhor já não está
– pois desceu à mansão dos mortos clamar: “Levanta-te do sono, tu que dormes!”
– Maria, apesar da dor e da soledade, inspira-nos a alimentar a esperança na
ressurreição, persuadindo-nos de que este não é o fim. Para lá do túmulo, há
vida, para os discípulos, e missão, para os apóstolos. Mãe e discípulos não têm
medo da pedra, nem da escolta militar. Deus não abandona os crentes, os
discípulos, os que têm a missão de evangelizar.
Do
túmulo passamos ao Calvário. Aquele
que Se viu despojado das suas vestes, repartidas entre os algozes (e a túnica
inconsútil lançada à sorte), e viu a sua nudez exposta ao riso dos
circunstantes, abraçou Terra e Céu e, nesse abraço continuado, aperta ao peito
todos os homens.
Mesmo
sentindo o abandono do Pai, pediu-Lhe que perdoe àquela gente, “porque eles não
sabem o que fazem”. Ao arrependido prometeu o paraíso, já para aquele dia. E,
sabendo que a sua obra estava consumada, entregou o seu espírito nas mãos do
Pai.
Jesus
é, também no Calvário, o exemplo do que os arrependidos e perdoados devem
fazer: perdoar e abraçar, trabalhar pela expansão do Reino do Pai, sempre e em
todo o lugar. E a mãe da dor não deixará de aconselhar os discípulos e apóstolos
ao perdão e à missão universal.
A
seguir, revisitamos o percurso
percorrido pelo condenado. Era um homem fatigado pelo peso da cruz e pelo
anterior sofrimento físico e psicológico. Teve de ser ajudado pelo Cireneu. É
nesta via dolorosa que surge a mãe, que só O podia confortar com o olhar
materno. Porém, a este olhar materno junta-se a delicadeza da Verónica a
oferecer ao condenado uma toalha para limpeza e alívio do rosto suado e
ensanguentado, bem como o pranto das mulheres de Jerusalém. Não sabemos o que
terá dito à mãe, mas às mulheres a lucidez falou alto: “Chorai, antes, por vós
e pelos vossos filhos: deplorai os vossos pecados.”. Ele veio para tirar o
pecado do mundo. Para isso, precisa da cooperação dos redimidos. A via dolorosa
de Jesus, então feita de ameaças e de insultos, de pena e de comiseração, de
barulho e de espetáculo, deve ser, hoje, via-sacra de silêncio, de
contemplação, de arrependimento, de propósito firme de emenda e de perdão.
Convém
que aprendamos, com a mãe dos discípulos, a ser cireneus de Jesus, "cireneando" o
próximo, e que façamos o exercício e a pedagogia do arrependimento dos pecados.
No
pretório de Pilatos, o Mestre,
acusado de Se fazer “Rei dos Judeus” (foi esta a causa oficial da condenação),
foi interrogado pelo Governador romano, que não viu mal algum no acusado, mas,
invetivado pela multidão, não resistiu à pressão, pelo que mandou flagelar
Jesus, aceitou que O coroassem de espinhos e O tratassem como rei fantoche
(Pilatos não percebia o que era um reino que não fosse deste mundo, que Jesus
proclamou no pretório, a não ser um reino faz-de-conta) e o apresentou à
multidão assim, quase desnudo, coroado de espinhos e sustentando na mão uma
cana a fazer de cetro. A multidão, negando o reinado deste rei, exigiu a sua crucifixão.
Pilatos, desresponsabilizando-se, lavou as mãos e entregou-O para execução. E o
pretório ficou na memória coletiva como lugar de ódio, de tortura, de chacota,
de cobardia e de falta de fé – exemplo de outros tantos espaços similares em outros
tempos e em outros lugares.
Maria
não terá presenciado diretamente este episódio, mas conheceu-o e sentiu-o. E nós
não podemos deixar de abjurar das falsas acusações, da provocação do sofrimento
e da cobardia em não assumir as nossas responsabilidades, custe o que custar.
Antes
da apresentação ao Governador romano, Jesus foi presente ao Sinédrio, o tribunal judaico presidido
pelo sumo-sacerdote (naquele ano, o sumo-sacerdote era Caifás, genro de Anás).
Caifás já tinha predito que tinha de morrer um só homem, para que se salvasse
todo o povo (E o Evangelista acrescenta: “e para reunir os filhos de Deus que
andavam dispersos”). Porém, antes de Caifás, Anás que era sogro de Caifás e
tinha sido sumo-sacerdote no ano anterior, também interrogou Jesus, utilizando
uma função que já não detinha.
Agora,
Jesus repetiu o que dissera abertamente no Templo, para quem O ouviu: que era o
Filho de Deus. E isto, que foi considerado a grande blasfémia, serviu de
pretexto para O condenarem à morte. Porém, como não tinham capacidade legal
para Lhe darem a morte de cruz, morte infame, tinham de obter o veredicto do
representante do Império romano.
Maria
não presenciou a cena, pois as mulheres não tinham acesso ao tribunal. Contudo,
hoje Ela, a mãe dolorosa, não perde a lucidez e recorda aos discípulos o que o
anjo Lhe anunciara: “O Santo que vai nascer de Ti é o Filho de Deus.” Por isso,
não é lícito negá-Lo, como fez Pedro, ou fugir, como fizeram todos, sendo que
João O reencontrou, pelo menos no Calvário, ou traí-lo, como fez Judas, vendendo-O
por 30 dinheiros e entregando-O no Monte das Oliveiras com um beijo.
Ele
fora detido no Monte das Oliveiras,
onde, perto dos discípulos – a quem recomendou a vigilância e a oração, para
que não caíssem em tentação, e a quem disse que o espírito está pronto, mas a
carne é fraca – pedira, agonicamente, ao Pai, que Lhe tirasse aquele cálice,
mas, como não era possível, que se fizesse a vontade do Pai. Maria, que não
acompanhou esta agonia orante do Filho, sabe que Ele veio para fazer a vontade
do Pai. Por isso, fazendo-Se exemplo para os discípulos, lembra-lhes, hoje, a
confissão de prontidão que fez ao anjo: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim
segundo a tua palavra”.
E
é preciso não esquecer o Templo, de
onde Jesus expulsou os vendilhões, que da Casa do Pai, casa de oração, fizeram
covil de ladrões. Se aqui Jesus ensinou, se aqui tinha causado admiração pela
sua sabedoria e pela sua inteligência junto dos doutores, quando lá ficou na
festa Páscoa, aos 12 anos de idade, se Ele o assumiu como símbolo do seu corpo
que reedificaria em três dias, agora é preciso que a mãe recorde aos discípulos
que o Templo, acabado de destruir, amanhã se reerguerá. E, pela sua força, que
é força do Alto, os discípulos hão de assumir a capacidade de andar e de falar
testemunhando a causa do Templo reerguido, a causa do Reino de Deus. Aliás,
estava cumprida a profecia formulada a Maria pelo velho Simeão: “Este menino
está aqui para a queda e para o ressurgimento de muitos e para ser sinal de contradição.
E uma espada trespassará a tua alma. Assim se revelarão os intentos de muitos
em Israel.”.
***
Por
fim, vamos ao cenáculo, que se
coloca antes da Paixão, Morte e Ressurreição e depois, emoldurando o tempo e os
espaços do mistério pascal. Antes, o Senhor celebrou a Páscoa judaica com os
discípulos e, nesse contexto, inaugurou a sua e nossa Páscoa, instituindo a
Eucaristia como banquete sagrado, em que se recebe Cristo e se presentifica a
sua Paixão, a alma se enche de graça, a Igreja se edifica e nos é dado o penhor
da futura glória. É a Eucaristia que nos capacita para a assunção do novo
mandamento do amor fraterno, concretizado no afeto e no serviço: “Amai-vos uns
aos outros como Eu vos amei.” E é ao serviço da Eucaristia, sacramento do Amor
e fautor do serviço afetivo e efetivo a todos, que se constitui o sacerdócio
ministerial.
No
depois, registam-se dois momentos: depois da Ressurreição; e antes do
Pentecostes.
Depois
da Ressurreição, os apóstolos estão ali cheios de medo dos judeus. Porém, na
tarde do primeiro dia da semana, Jesus surpreende-os, colocando-se, de súbito,
no meio deles. Deseja-lhes a paz. Constitui apóstolos àqueles a quem tinha
feito irmãos pela Cruz (“Como o Pai Me enviou, Eu vos envio a vós”),
insuflou-lhes o sopro de vida, o Espírito Santo, e deu-lhes o encargo da
pregação e do arrependimento e do perdão, bem como o poder de perdoarem os
pecados. Oito dias depois, confirmou este mandato e, respondendo ao desafio de
Tomé, que pretendia meter a mão no lado chagado do Senhor e o dedo nos sítios
dos cravos, como condição para acreditar, arrebatou do apóstolo a melhor
confissão de fé: “Meu Senhor e meu Deus!”
Antes
do Pentecostes, os apóstolos estão no cenáculo com Maria, outras mulheres e
outros discípulos, todos em oração. Aí, Maria assume o exercício de mãe dos
discípulos e de pedagoga dos apóstolos. Eles, já possuídos pela prometida força
do Alto, elegem Matias para o lugar vago com a morte desesperada de Judas. E aí
são investidos, no dia de Pentecostes, da força do Espírito Santo e saltam para
a rua a proclamar as maravilhas de Deus, ouvindo-os cada um (e eram muitos e de
muitos lugares da Terra) na sua própria língua materna. E Pedro proclama Jesus,
o Senhor e Messias, o único Salvador.
Entretanto,
aguardemos a Páscoa e o Pentecostes!
2023.04.08 –
Louro de Carvalho
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