Numa pausa no seu roteiro “Sentir Portugal”, o presidente
do Partido Social Democrata (PSD), Luís Montenegro, a partir da sede nacional partidária,
acusou, a 19 de abril, o governo de “crime de desobediência qualificada”, pela
recusa de entrega à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à gestão da TAP dos
pareceres que deram “respaldo jurídico” ao despedimento, por justa causa, da
diretora executiva (CEO) da companhia aérea, Christine Ourmières-Widener, e do
presidente do seu conselho de administração (chairman), Manuel Beja.
Prometeu que os deputados na
CPI iriam solicitar a aplicação da lei, que “é muito clara”, competindo ao
presidente da CPI dar nota deste incumprimento ao presidente da Assembleia da
República (AR), que deverá fazer a participação ao Ministério Público (MP) pela
prática do crime de desobediência qualificada dos ministros das Finanças, das
Infraestruturas e da Presidência do Conselho de Ministros”. E, omisso quanto a eventual pedido de demissão dos ministros
em causa, reforçou que, se os socialistas Jorge Seguro Sanches, que preside à CPI, e Augusto
Santos Silva, presidente da AR, “não conseguirem demover o Governo”, terão de participar
ao MP. Caso contrário, “estão a ser ambos defensores do interesse do PS [Partido
Socialista] e do Governo”.
O líder da oposição, que apela ao recuo do executivo, sustenta
que esta atitude corresponde a distorção do equilíbrio de poderes
constitucionais. e, falando
em “ingerência do Governo num outro órgão de soberania”, a AR, pergunta de que
tem medo o Governo e questiona se haverá mesmo um parecer. Depois, considerando
que tem de haver um parecer, diz que tal parecer tem de ser presente à CPI e
que, se for confidencial, será tratado como tal.
Por fim, citou o primeiro-ministro, que afirmou que a
CPI deve apurar “toda a verdade, doa a quem doer”, e advertiu que o
Governo não tem o direito de apreciar decisões da AR.
***
A 6 de março, os ministros das Finanças,
Fernando Medina, e das Infraestruturas,
João Galamba, em conferência de imprensa conjunta, anunciaram o afastamento,
por justa causa, de Christine Ourmières-Widener e de Manuel Beja, após o
relatório da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) que considerou que os
procedimentos seguidos, por ambos, para a saída de Alexandra Reis da gestão da
TAP, em janeiro de 2022, com uma indemnização de 500 mil euros, tinham sido
irregulares e que o acordo por eles assinado é nulo.
Apesar da justa causa, invocada então, mas não indicada aos visados,
quando lhes foi dito, horas antes, que seriam afastados, Christine
Ourmières-Widener e Manuel Beja ficaram em exercício por mais um mês. Luís
Rodrigues, designado de imediato, assumiu funções só a 14 de abril.
Tendo
entrado em funcionamento a CPI, os deputados do PSD que a integram, requereram,
por unanimidade, no início de abril, que o Governo fornecesse à comissão o
parecer ou pareceres de respaldo à decisão – se é que existem –, o que os ministros
envolvidos recusaram. Centram-se os deputados socialdemocratas, sobretudo, no
facto de, na conferência de
imprensa de anúncio da demissão por justa causa, o ministro das Finanças ter
afirmado “estar juridicamente blindado naquilo que é a
avaliação de quem a toma”. Com efeito, a invocação de justa causa é, para o
executivo, o cerne da questão, pois é ela que impede o pagamento de eventuais
indemnizações ao ex-CEO e ao ex-chairman,
que rejeitam que haja razões para o afastamento. A primeira anunciou que
vai contestar juridicamente a decisão; e o segundo está a avaliar, depois de
ter prometido que ia defender a sua honra. E o PSD argumenta que esta atitude
do Governo mostra que não há justa causa e que o país arrisca vir a pagar indemnização
milionária à ex-CEO.
Três ministros – Fernando
Medina, João Galamba e a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva – deram
a resposta à CPI, com as mesmas palavras, embora em separado:
“A Resolução da Assembleia da República n.º 7/2023, de 14 de
fevereiro, foi aprovada a 3 de fevereiro de 2023 para constituição de uma
comissão parlamentar de inquérito à tutela política da gestão da TAP SGPS e da
TAP, S.A. Nos seus termos, foi delimitado o respetivo objeto (cfr. alíneas a) a g)
da referida resolução) e, bem assim, o horizonte temporal (período entre 2020 e
2022). […] Extravasando o aludido objeto da comissão parlamentar de inquérito
e/ou reportando-se a
factos posteriores à respetiva constituição, as informações
requeridas não recaem no escopo do disposto no artigo 13.º da Lei n.º 5/93, de
1 de março, na sua redação atual.” É o que referem as três missivas dos governantes, todas
assinadas a 17 de abril.
A resposta à disponibilização do parecer vem dos dois
ministérios envolvidos na decisão e no da Presidência, pois é aqui que está o
Jurisapp, o centro de competências jurídicas do Estado, a que a CPI fez o
pedido. Os três ministérios dizem-se disponíveis “para quaisquer
esclarecimentos ou informações adicionais”, mas nenhum esclarece se o documento
existe ou não.
O PSD não ficou satisfeito com a resposta e reagiu num
requerimento: “Resulta claro, não só que os ministros terão iludido os
portugueses quanto à segurança jurídica da sua decisão de despedir a CEO da TAP
por justa causa, como se conclui que os mesmos atuam à margem da lei, nomeadamente ao esconder,
deliberadamente, documentos da Comissão Parlamentar de Inquérito, em claro
desrespeito pelo Regime Jurídico dos
Inquéritos Parlamentares e pelos poderes da Assembleia da República.” Por
isso, o grupo parlamentar socialdemocrata na CPI à TAP pediu uma “reunião de
emergência” da comissão, a realizar no mesmo dia 19, para “deliberar sobre uma
posição conjunta, face ao demonstrado e objetivo atropelo à lei por parte do
Governo”.
À Lusa, o
Governo deu uma justificação que não deu aos deputados da CPI.
O gabinete da ministra Adjunta e dos Assuntos
Parlamentares, Ana Catarina Mendes, alega que “o parecer em causa não cabe no
âmbito da comissão parlamentar de inquérito (CPI)” e que “a sua divulgação
envolve riscos na defesa jurídica da posição do Estado”. Por isso, como
assinala a nota do gabinete da governante, “a resposta do Governo à CPI visa a
salvaguarda do interesse público” – argumento que parece dizer tudo, mas que
pode não dizer nada, como se verá.
O Governo alega que os processos de demissão dos
anteriores CEO e chairman da TAP “têm sido
objeto de manifestações públicas suscetíveis de gerar contencioso entre os
visados e o Estado”.
***
Nas respostas que deram à CPI, os governantes não
esclareceram, sequer, se existem pareceres, apenas utilizaram o argumento de que
o pedido, por ser sobre um ato em 2023, escapa ao âmbito da iniciativa
parlamentar.
Contraditoriamente, o gabinete de Ana Catarina Mendes
manifesta “toda a disponibilidade” do Governo “para colaborar” com a AR e, em
particular, com a CPI, vincando que “o respeito é absoluto”. Rejeita, porém, “um
clima de tensão permanente em volta de uma CPI que deve trabalhar com
tranquilidade e com a qual o Governo coopera com toda a lealdade institucional”.
Esta posição governamental surge no dia em que o PSD,
através do deputado Paulo Moniz, coordenador do PSD na CPI, acusou o Governo de
“atuar à margem da lei” por recusar enviar à comissão os pareceres que deram “respaldo
jurídico” ao despedimento por justa causa em referência. Explicando que o
partido pediu, através de um requerimento, a fundamentação jurídica referida
pelo ministro das Finanças, “aquando da conferência de imprensa de 6 de março,
em que anunciou o despedimento, por justa causa, da senhora CEO da TAP”, o
deputado, agora, acusa: “Acontece que fomos surpreendidos, imensamente
surpreendidos, aliás, estupefactos com o facto de não nos ter sido remetida
esta informação, onde imediatamente resulta claro que os senhores ministros não
só iludiram os portugueses, quanto à propalada segurança jurídica da sua
decisão, como também se conclui que estes mesmos ministros atuam à margem da
lei.”
***
Para esclarecimento da matéria, é de dar uma olhada
pelo referido artigo 13.º do Regime Jurídico dos Inquéritos
Parlamentares,
aprovado pela Lei n.º 5/93, de 1 de março, com as alterações introduzidas pela
Lei n.º 126/97, de 10 de dezembro, pela Lei n.º 15/2007, de 3 de abril, e pela Lei
n.º 29/2019, de 23 de abril.
As CPI “gozam
dos poderes de investigação das autoridades judiciais que a estas não estejam
constitucionalmente reservados” (n.º 1); “têm direito à coadjuvação das
autoridades judiciárias, dos órgãos da polícia criminal e das autoridades
administrativas, nos mesmos termos que os tribunais” (n.º 2); “podem, a
requerimento fundamentado dos seus membros, solicitar por escrito ao Governo,
às autoridades judiciárias, aos órgãos e serviços da Administração, demais
entidades públicas, incluindo as entidades reguladoras independentes, ou a
entidades privadas as informações e documentos que julguem úteis à realização
do inquérito” (n.º 3); nas CPI constituídas ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 2.º (isto é, a requerimento de 1/5 dos deputados em efetividade de funções
até ao limite de um por deputado e por sessão legislativa), as diligências
instrutórias referidas no número anterior, solicitadas pelos deputados
requerentes, “são de realização obrigatória, não estando a sua efetivação
sujeita a deliberação da comissão” (n.º 4); “a prestação das informações e dos
documentos referidos no n.º 3 tem prioridade sobre quaisquer outros serviços e
deve ser satisfeita no prazo de 10 dias, sob pena de o seu autor incorrer na
prática do crime referido no artigo 19.º [desobediência qualificada], salvo
justificação ponderosa dos requeridos que aconselhe a comissão a prorrogar
aquele prazo ou a cancelar a diligência” (n.º 5); o pedido “deve indicar esta
lei e transcrever o n.º 5 deste artigo [informação ao Procurador-Geral da República]
e o n.º 1 do artigo 19.º” (n.º 6); “no decurso do inquérito, a recusa de
prestação de depoimento, de prestação de informações ou de apresentação de
documentos só se terá por justificada nos termos da lei processual penal e da
presente lei” (n.º 7).
E, na redação atual da lei,
figura um artigo 13-A, que trata do “incidente para a quebra de segredo”,
competindo “às secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça julgar [STJ],
por decisão definitiva e irrecorrível, o incidente”, o qual “tem natureza
urgente”.
***
É claro que a as CPI têm poderes especiais para o
levantamento de segredos que sejam invocados por quem solicita documentos ou
por quem os deve ceder, e têm até decidido ir ao STJ para os levantar. E devem tratá-los
nos termos do artigo 13-A, pelo que não terá razão o executivo, que se mostra, ironicamente
disponível, cooperante e respeitador, mas não cumpre a lei. Por outro lado, o
Governo escuda-se – e mal – na letra ou nos números do âmbito temporal do
objeto da CPI, como se documentos anteriores não possam ser úteis ao
esclarecimento dos factos em discussão. A decisão em causa e o parecer que lhe
dá respaldo são de 2023, mas os factos têm origem no período de 2020-2022 e
deles são indissociáveis os dois atos.
Oxalá exista parecer fundamentado para o despedimento
por justa causa. Porém, duvido da formal legitimidade de tal despedimento por
justa causa, pois não houve processo específico dirigido à ex-CEO e ao ex-chairman, mas apenas ilação a partir do que
concluiu a IGF na apreciação do acordo de rescisão da TAP com Alexandra Reis.
Além disso, é estranho que a decisão de afastamento tenha sido comunicada aos
visados, sem a menção de justa causa, e que os mesmos se tenham mantido em exercício
– o que parece denotar odor político com veste jurídica.
2023.04.19 – Louro de Carvalho
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