Mais
uma celebração do “25 de Abril” (nesta designação escrevo o nome do mês com
maiúscula), que instaurou a democracia. Foi – e espero que se mantenha assim –
a revolução da liberdade, da paz, da democracia, do canto livre, da
autodeterminação dos povos e das pessoas e do desenvolvimento, nas suas
diversas componentes (pessoal e social, económica, cultural e ética).
Rufaram
os tambores contra a ditadura da opressão (pensamento único, coartação da liberdade
de opinião) e da guerra e pela democracia formal e material. O povo saiu à rua
e assumiu o poder, embora Marcello Caetano tenha pretendido render-se a António
de Spínola, para que o poder não caísse na rua. O poder veio para a rua, ao
encontro do povo, “a arraia-miúda” (como diria Fernão Lopes), que o assumiu no
presente e para o futuro.
A
distribuição dos cravos vermelhos aos militares, que os puseram na ponta da
metralhadora ligeira, em vez da baioneta ou das munições, significou, mais que
tudo, a aceitação popular da mudança. As pessoas podem não saber o que querem,
mas têm a certeza do que pretendem rejeitar: “ditadura e guerra nunca mais”.
Por
mais escolhos e contradições que tenham atravessado a revolução e perdurem,
ainda, no regime democrático, as coisas mudaram. Instaurou-se o sistema de
eleições livres para os diversos órgãos do poder político e os órgãos de
soberania observam o princípio da independência e separação dos poderes, bem
como o da sua interdependência e o da cooperação. Há o normal respeito pelos
direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, bem como dos grupos
legitimamente organizados (clubes, associações, empresas, fundações,
sociedades, etc.). Pratica-se o sistema da propriedade privada e da livre
iniciativa, mas sem perder de vista o interesse comunitário e a dimensão social
da iniciativa e da propriedade. Procura-se o bem-estar nas suas várias dimensões
(educativa, sanitária, cultural, social, económica, securitária e do tempo
livre), tentando que ninguém fique para trás, antes cultivando o desígnio da
inclusão e da universalidade.
O
nosso regime evoluiu para as vertentes da integração e da inclusividade, do
respeito pelas diferenças, do encontro de culturas, da promoção do prestígio e
boa imagem das instituições e da cooperação intergeracional.
***
Por
mais erros de procedimento que o regime albergue – e são muitos – não é lícito
abusar da exigência partidária ou presidencial da demissão de governantes, da
remodelação governamental e da dissolução parlamentar. Como escreveu António
Barreto no Público, a 22 de abril, os partidos políticos que
têm a obsessão da demissão, da remodelação e da dissolução “não mostram outra
coisa que não seja a impaciência, a sofreguidão e a vacuidade política”. Porém,
eu estou convicto de que o aproveitamento de todos “os casos e casinhos”, agora
publicamente evidentes, se deve à corrida aos fundos comunitários, que partidos
mais à direita gostariam de gerir.
Uma
das regras da democracia (que será sempre imperfeita, por se basear em opiniões
e em estudos de valor discutível) é o estabelecimento de regras e de prazos,
que devem ser observados, a menos que haja algum epifenómeno excecional. Outra
das regras é a existência de mecanismos de escrutínio, para lá das eleições e
dos referendos, como os direitos e os deveres de crítica, de manifestação, de
audição, de petição, etc. E, em democracia, é relevante o papel da comunicação
social, nas linhas de informação (pela palavra e pela imagem), de escrutínio e
crítica, de opinião, de ensaio e de sondagem quanto ao grau de satisfação dos
cidadãos.
Assim,
os órgãos de soberania constituídos por via eleitoral direta (Assembleia da
República e Presidente da República) ou indireta (Governo e Tribunal
Constitucional) devem cumprir o mandato, que é avaliado, no seu termo, pelos
eleitores. Exigir a demissão de governantes pouco muda, se não mudarem as
políticas. Esses devem pedir a demissão ou ser demitidos, quando houver
problemas de incapacidade política ou de saúde, não por hostilidade pessoal ou
partidária da parte de alguém. Demissão do governo – a não ser nos casos de
rejeição parlamentar (rejeição do seu programa, aprovação de moção de censura,
não aprovação de moção de confiança e termo de legislatura) só pode acontecer,
se estiver em causa o regular funcionamento das instituições democráticas, não
uma empresa pública, um ministro, um secretário de Estado, um hospital, uma
fragata da Marinha, etc. (que, sendo importantes, não são as instituições
democráticas). Seria o caso, por exemplo, de o Parlamento não conseguir gerar
uma solução governativa decente ou de as Forças Armadas estarem profundamente
divididas.
A
dissolução parlamentar é uma prerrogativa da livre iniciativa do chefe de
Estado, apenas condicionada à audição prévia do Conselho de Estado, cujo parecer
não é vinculativo, e vedada em alguns períodos de tempo.
O
legislador constituinte acreditou no bom senso presidencial, pelo que não impôs,
como condição essencial, a não regularidade do funcionamento das instituições
democráticas. Pressupôs que o chefe de Estado, sabendo que não pode dispor
dessa prerrogativa em situações em que Parlamento ainda não deu prova (nos seis
meses posteriores à sua eleição) ou em tempo em que o presidente poderia fazer
vingar a sua eventual agenda política (último semestre do seu mandato), nunca
iria usar a dissolução como arma de arremesso e, muito menos, chamar-lhe “bomba
atómica”, um perigosíssimo recurso nuclear. Nem pensaria que, sendo difícil
demonstrar o não funcionamento regular das instituições democráticas, o chefe
de Estado usaria o mecanismo da dissolução para, indiretamente, levar o governo
ao cessamento de funções.
E
não vale a pena invocar o precedente criado por Jorge Sampaio, que dissolveu um
parlamento em que a maioria parlamentar não contestava o governo. Se houve
problemas, eram do foro ministerial. Tal precedente, a meu ver, abusivo não
legitima solução análoga. Diz-se que o líder do governo não fora eleito. Porém,
foi proposto pelo seu partido, através do órgão máximo entre congressos. E
tinham sido eleitos os partidos que asseguravam a maioria parlamentar de
apoio.
Por
isso, ficará mal ao chefe de Estado andar a falar em dissolução aqui e ali,
hoje e amanhã. “Ameaçar” com ela um debate inconclusivo de orçamento de Estado,
uma posse do governo, para o caso de o primeiro-ministro vir a deixar de
liderar o executivo, um inêxito do partido do governo em próximas eleições
europeias, o incumprimento, a tempo, dos projetos que requerem dinheiros
comunitários ou a perda da maioria avaliada, por sondagens, desdiz da postura
de Estado que deve ser apanágio de um decisor político.
E,
se o legislador constituinte estabeleceu que a dissolução parlamentar não pode
ocorrer durante a vigência do estado de sítio ou do estado de emergência, o
Presidente da República deveria, em meu entender, abster-se de usar dessa
prerrogativa constitucional, quando temos pela frente uma guerra na Europa, em
que Portugal está diretamente implicado, e uma situação de crise económica e
social, que levou o governo a distribuir parte da almofada orçamental (a
propalada demasia da carga fiscal) pelas famílias, pelas empresas, pelas
pessoas em estado de carência e pelos pensionistas. Deveria, antes, avaliar os
casos apontados ao governo na sua proporcionalidade e com a ponderação de quem
tem sentido de Estado, não como aparente líder de oposição (que não é), podendo
fazer a discreta pressão sobre o primeiro-ministro para a melhoria de políticas
e para eventual substituição de governantes ou enviar mensagens ao Parlamento,
mas sem se deixar influenciar por sondagens ou por quebras ou aumentos de
popularidade.
***
O
25 de Abril é a festa da democracia e da liberdade. Ora, a democracia é
inclusiva e a liberdade é para todos. Assim, a data comemorativa da Revolução
dos Cravos é a festa dos democratas, a festa dos portugueses. Todavia, é curial
que se convidem para a nossa festa entidades amigas, sobretudo se detentoras do
poder em países que, durante algum tempo, se disseram “Portugal”.
Recordo
que já tivemos na sessão solene comemorativa da revolução a presidente da
Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau. Também o presidente do Brasil
convidou Portugal para a sessão solene comemorativa do Bicentenário da
Independência (da sua independência). Por isso, não percebo a birra de partidos
políticos que recusaram a participação de Lula da Silva na sessão comemorativa
do 25 de Abril, com a oportunidade de se dirigir aos portugueses, e, mesmo, a
simples presença como convidado. Não devia estar em causa a pessoa de Lula da
Silva, mas o cargo que ocupa na liderança de um país amigo e irmão, que viveu,
como Portugal, em regime de ditadura e de que emergiu para a democracia.
Cometeu erros! Quem não os comete? Onde está á tolerância, tantas vezes
proclamada? Como pôde ceder o passo ao fechamento? Foi mais legítimo e
dialogante ouvir Zelensky! Mas Lula da Silva veio participar numa cimeira de
cooperação bilateral e em que se equacionou o multilateralismo e a ambição da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Essa
de organizar uma sessão parlamentar de boas-vindas ao chefe de Estado do
Brasil, no mesmo dia (com o uso da palavra por parte do anfitrião da Casa da
Democracia e por parte do visitante) e antecedente à sessão comemorativa da
revolução da liberdade, não passou de uma solução artificiosa e hipócrita do
ponto de vista diplomático e protocolar. Políticos institucionalistas não
enveredariam por aí.
***
Estamos
a celebrar o 49.º aniversário da revolução abrilina. São sete septénios
consecutivos. Muitos cidadãos, incluindo deputados e membros do executivo, já
não têm memória direta do período anterior a 1974 e até da transição para o
novo regime. Não sabem quanto se sofreu antes da revolução, pela generalizada míngua
de quase tudo: estradas, escolas, serviços de saúde, transportes organizados
fora dos grandes centros, proteção de crianças e de idosos, emprego e segurança
social, circulação de víveres, direito à palavra e ao silêncio e direito à
justiça. Além disso, havia a guerra colonial e a emigração clandestina, bem
como alguma ostracização de portugueses no estrangeiro e, em Portugal, a discriminação
entre homens e mulheres, bem como entre grupos culturais, sociais e económicos.
Agora,
tudo mudou. Há muitos erros e é preciso caminhar muito. Até houve alguns
retrocessos, mormente os ditados pela especulação, pela corrupção e pela
reinstalação de grandes interesses.
Entretanto,
avizinha-se o cinquentenário da instauração do regime democrático. O antigo
povo de Israel consideraria o ano subsequente ao sétimo septénio o ano de
jubileu, em que seriam esquecidas as divergências, se remiriam as servidões e
as dívidas. Nesse sentido, espero que sejam corrigidas as rotas de desvio, se
esqueçam as divergências graves, se moderem as ambições, se produza mais, se
distribua melhor, se melhore a defesa, a saúde e a segurança, se dialogue mais,
se crie convivência mais sadia e se eduque para a tolerância, para a reconciliação
e para a paz.
Haja
menos birra, mais diálogo e tolerância, menos interesses instalados, maior
promoção do bem comum. Enfim, 25 de Abril sempre!
2023.04.24 – Louro de Carvalho
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