A cada passo,
nos deparamos com as expressões “politicamente
correto” e “politicamente
incorreto”. E, porque, não raro, são utilizadas no sentido mais adequado, mas
conveniente, parece-me oportuno um excursus
sobre estas e outras expressões com tenham com elas alguma analogia.
A expressão
“politicamente correto” configura expressões, políticas ou ações que evitam
ofender, excluir e/ou marginalizar grupos vistos como desfavorecidos
ou discriminados, especialmente em razão do género, da orientação sexual
ou da cor. No discurso político e nos meios de comunicação social, a
expressão é, geralmente, pejorativa, implicando que as políticas de não discriminação
são excessivas.
Antes da
década de 1990, a expressão tinha uso disperso, geralmente como autodescrição
irónica, mas entrou em uso mais comum nos Estados Unidos da América (EUA), depois
que foi objeto de uma série de artigos no The
New York Times. Foi amplamente usada no debate sobre o livro The
Closing of the American Mind (1987), de Allan Bloom e o seu uso
foi reforçado em resposta ao livro Tenured Radicals (1990), de Roger
Kimball, e ao livro Illiberal Education (1991), do autor
conservador Dinesh D’Souza, em que são condenados os esforços liberais para
avançar na autovitimização, nas ações afirmativas e nas mudanças no
conteúdo dos currículos escolares e universitários, através da linguagem.
Observadores
mais à esquerda diziam que os conservadores desviavam, assim, a
atenção de questões mais substantivas de discriminação, entrando numa
ampla guerra cultural contra o liberalismo dos EUA. E argumentavam
que os conservadores têm as suas próprias formas
de correção política, que são, geralmente, ignoradas por comentaristas
conservadores.
Em 1793, a
expressão “politicamente correto” apareceu no Supremo Tribunal Federal dos
EUA no julgamento de um processo político. E teve uso noutros países
de língua inglesa nos anos 1800. Porém, até ao início do século XX, não se
relacionava com a desaprovação social que o uso mais recente lhe conferiu.
No fim da
primeira metade do século XX, a expressão “politicamente correto” foi associada
à aplicação dogmática da doutrina estalinista, debatida entre membros do
partidos comunista e socialista americanos. Segundo o americano Herbert
Kohl, que escreveu sobre debates, em Nova Iorque, no final da década de 1940 e
início da década de 1950, a expressão “politicamente correto” foi usada, com
desprezo, para se referir a alguém cuja lealdade à linha do Partido Comunista
superou a compaixão e levou a uma política ruim. Foi usada pelos socialistas
contra os comunistas e deveria separar os socialistas que acreditavam em ideias
morais igualitárias de comunistas dogmáticos que advogassem e defendessem
posições partidárias, independentemente da sua substância moral (“Uncommon Differences”, in The Lion and
the Unicorn Journal (1992).
Para John
Cleese, comediante britânico, a expressão começou como uma ideia bastante
decente, mas transformou-se em coisa completamente errada e levada até ao
absurdo.
O músico Nick
Cave critica o exagero do “politicamente correto”, que fora, em tempos, uma
tentativa meritória de reimaginar a sociedade de forma mais justa, mas que
passou a apresentar todos os piores aspetos que a religião tem para oferecer e
nenhuma da sua beleza.
Na década de
2000, o jornalista Eric Zemmour desenvolveu a ideia de que a recusa
de usar uma linguagem politicamente correta foi criminalizada e condenou a
lógica inquisitorial das associações antirracistas.
E o
filósofo Dominique Lecourt considera o “politicamente correto” como “uma
retórica da dissuasão”, um meio de intimidação que sugere que haveria um
pensamento único, um caminho certo segundo o qual todos devemos ser julgados.
Tornou-se, através de algumas leis antirracistas ou memoriais, um instrumento
de conquista do poder, usado por minorias ativas bem organizadas que espalham o
seu inconformismo puro, muitas vezes de tom religioso.
No Reino Unido,
no escândalo de exploração sexual infantil de Rotherham, os funcionários
não atacaram uma rede pedófila paquistanesa, por receio de serem acusados de
racismo ou de preconceito. Os denunciantes foram perseguidos e o problema
ignorado. Todavia, relatórios subsequentes estimam que 1400 crianças foram
vítimas desta rede, de 1997 até 2013.
No tratamento
jornalístico posterior de casos similares, a expressão “gangues de muçulmanos”
ou “paquistaneses” deu lugar à expressão “gangues de asiáticos”, pouco precisa.
Porém, uma associação Sikh insistiu que os media e os políticos
deixassem de denominar os gangues dessa rede como “asiáticos”, por o termo ser demasiado
vago deslustrar outras comunidades.
Cerca das 23
horas de 31 de dezembro de 2015, cerca de mil e quinhentos homens, de aparência
“norte-africana e árabe”, fortemente alcoolizados e agressivos, aglomeraram-se
no hall da Estação Central de Colónia e criaram distúrbios. De repente, grupos
desses homens rodearam as mulheres e meninas (mais de 1200 foram vítimas em
Colónia, Hamburgo e Estugarda), agredindo-as sexualmente. Ao mesmo tempo, eram
roubados telemóveis e outros objetos. E não se viam forças policiais. Mais de
dois mil homens estiveram envolvidos, mas de acordo com o respetivo relatório,
apenas foram identificados 120 suspeitos.
Num
comunicado à imprensa, a 1 de Janeiro de 2016, a polícia de Colónia anunciou
que, na noite anterior, tinha havido “uma atmosfera exuberante e largamente
pacífica” e que as forças policiais estavam “bem posicionadas e presentes”. O
silêncio e o laxismo da polícia e dos media, as declarações de Henriette
Reker, presidente da câmara de Colónia a incriminar as mulheres alemãs e o
atraso na reportagem dos acontecimentos pelos media, especialmente pelas
emissoras públicas, foram fortemente criticados nos dias seguintes. E Henriette
Reker declarou publicamente que era “inadequado” ligar as agressões sexuais em
massa com os refugiados.
Em abril de
2016, as estatísticas das autoridades indicavam que, dos 153 suspeitos identificados
em Colónia condenados por crimes sexuais e outros, na passagem de ano de
2015-2016, dois terços eram de Marrocos ou da Argélia, 44% eram
requerentes de asilo, outros 12% estavam ilegalmente na Alemanha, e 3% eram
refugiados menores de idade desacompanhados.
Assim, não
espanta que ao “politicamente correto” responda o “politicamente “incorreto”. Segundo os seus defensores, há uma estratégia do
“politicamente correto” que visa impedir o efetivo exercício da liberdade
de expressão. Segundo eles, as suas opiniões são atualmente minoritárias e
não geram efeitos nocivos à sociedade. Por outro lado, os críticos dessa
prática afirmam que o “politicamente incorreto” está relacionado com o autoritarismo e
que tais discursos são oriundos de preconceitos enraizados na sociedade contra
minorias. Além disso, indicam que não há real monitorização dessas
opiniões, que são amplamente reproduzidas nas sociedades
contemporâneas. Ainda segundo seus opositores, o “politicamente incorreto”,
assim como o discurso de ódio, não deveria ser entendido como compatível
com os direitos fundamentais do homem. E o discurso politicamente
incorreto é tido, também, como uma forma de vigiar e controlar a liberdade de
expressão de grupos não conservadores.
Entretanto,
na prática do quotidiano, o “politicamente correto” é mais comezinho. Não se
diz o que se pensa contra o que está mal ou é injusto e imoral, porque se tem
medo de retaliações, de não conseguir um benefício do Estado ou da autarquia,
porque se quer proteger o acesso ao emprego do próprio ou de familiares, a
manutenção no emprego ou a progressão na carreira. Diz-se o que os outros
querem ouvir ou mandam dizer, para se conseguir mais um voto, um lugar no
Parlamento, no Governo, numa autarquia, ou a liderança de uma agremiação, bem
como para promover ou manter a imagem da empresa ou do serviço, que se dirige
ou em que se tem função de relevo. E fazem-se omissões, com o mesmo escopo. É o
“politicamente conveniente” ou o politicamente oportuno, que leva a eufemismos,
como acusar, em vez de “mentir”, “não ter boa relação com a verdade” e dizer,
em vez de “cunha”, “capital de relação”!
Assim, o
politicamente correto é uma forma de cobardia, de prossecução do carreirismo,
de egoísmo, de egocentrismo e de egotismo, quando o “politicamente correto” deveria
ser o discurso, a ação ou a omissão em prol da lei, das boas práticas, do bem
comum e dos esforços para que o bem comum, a justiça e a equidade se instaurem,
se mantenham e se desenvolvam.
Por outro
lado, o “politicamente correto” seria aceitar a crítica construtiva e o
escrutínio. Não se percebe como tem havido tantos casos e casinhos, na área
parlamentar, na área dos governos, na área da justiça. Os órgãos de soberania e
os órgãos do poder local são constituídos por cidadãos e cidadãs a quem os
eleitores entregam o exercício do poder político, não o poder em si, pois o
poder político, sobretudo o poder soberano, não é delegável. Por isso, é que,
além da crítica, das manifestações e da greve, é legítimo o golpe de Estado ou
a destituição de detentores do exercício do poder, quando dele abusam. É certo
que, por vezes, o golpe de Estado ou a destituição não resultam da vontade da corrigir
anomalias, mas da ambição de quem os leva a cabo.
E,
anedoticamente, aceita-se que se escrutine e critique o Parlamento e o Governo,
mas há dificuldade em escrutinar o Presidente da República e torna-se
impossível escrutinar e criticar, a partir de fora, os tribunais. É certo que
Parlamento, Governo e Presidente da República são eleitos e têm de prestar
contas aos eleitores. Todavia, os tribunais são órgãos de soberania, não
eleitos, e administram a justiça em nome do povo, pelo que deveriam também ser
objeto do escrutínio externo. São independentes? Também os outros órgãos de
soberania o são e, pelo menos, no fim de mandato, são julgados pelos eleitores,
bem como o são pelos tribunais, se houver suspeita fundada de ilícito criminal.
O escrutínio não eleitoral é também um exercício de democracia!
Porque não se
começa pelo escrutínio das magistraturas a montante, desde logo pela composição
dos conselhos superiores da magistratura e dos magistrados do Ministério
Público? Se as Universidades, os Institutos Superiores Politécnicos e os
agrupamentos de escolas e as escolas não agrupadas têm, nos conselhos gerais, maioria
de elementos não professores, porque não podem os conselhos superiores de
magistrados ter maioria de elementos não magistrados?
Lembro-me de
que, em tempos, face a um impasse administrativo, alguém percebeu que eu teria
uma ideia para a solução. Ao ser questionado por quem de direito, respondi que
era preciso substituir as duas equipas em cena: uma, por usar uma linguagem
algo confusa e lábil; outra, por não ter experiência técnica para o efeito. E a
resposta foi que essa solução tinha custos políticos. Porém, a solução foi
aquela, obviamente, aproveitando o trabalho já feito, mas reconfigurando-o.
Aliás, as decisões que atingem a comunidade são políticas, embora devam ser
fundadas na ciência e tornadas exequíveis pela técnica.
Por fim, não
dá para entender porque se inventou a expressão “sociedade civil”. A vida em
sociedade é cidadania, é política – é claro, muitas vezes, não partidária.
Parece-me que a intenção era “despolitizar” a sociedade. É que estava habituado
a distinguir civil e militar, civil e clerical, civil e religioso, mas não a distinguir
civil (do latino “civis”) e político (do grego “polítês”).
2023.04.01 – Louro de Carvalho
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