O
celebrante da Eucaristia na igreja da Misericórdia de Santa Maria da Feira considerou
o relato, exclusivo de Lucas, do episódio dos discípulos de Emaús com Jesus
ressuscitado (Lc 24,13-35), na tarde
da ressurreição, uma celebração ambulante da Eucaristia.
Cléofas
e um outro discípulo, desencantados com o que se passara, naqueles dias, em
Jerusalém – a crucifixão e morte do seu Mestre e Messias na cruz – caminhavam para
casa, em Emaús, com mira nas lides habituais, pois a esperança da libertação que
puseram na aventura em que alinharam com todos os outros, em torno de Jesus, os
deixara como o sino sem badalo.
Os
dois dirigiam-se para Emaús, aldeia a 60 estádios de Jerusalém (cerca de 12
quilómetros). Pensou-se que o texto se referiria a Amwas, situada a cerca de 30
quilómetros a oeste de Jerusalém (alguns manuscritos falam de 160 estádios, o
que nos colocaria no sítio certo), mas parece uma distância excessiva para
percorrer num dia, sem paragens e a conversar demoradamente.
Não
interessou ao evangelista um relato coerente, pois, se estivesse preocupado com
a coerência, cuidaria a situação geográfica de Emaús e explicaria incongruências
do texto – por exemplo porque partiram estes discípulos para a sua aldeia sem
investigarem o rumor do túmulo vazio e o de que Jesus tinha ressuscitado. Interessou-lhe,
pois, explicar aos cristãos para quem escreveu – na década de 80 – como se pode
descobrir que Jesus está vivo e como se pode experienciar o encontro com Jesus
ressuscitado. É, portanto, de uma página de catequese que se trata.
Começamos
por estar diante de dois discípulos que vão a caminho de Emaús. Um é Cléofas; o
outro não é identificado, como a querer dizer que podia ser qualquer um dos
crentes que tomam conhecimento da história. Vão tristes e desanimados, porque
os sonhos de triunfo e de glória ao lado de Jesus ruíram aos pés da cruz. O
Messias poderoso, capaz de derrotar os opressores, de restaurar o grandioso reino
de David (“esperávamos que fosse Ele quem havia de libertar Israel”) e de
distribuir despojos e atribuir honras aos colaboradores diretos foi um rotundo
fracasso. Em vez de triunfar, deixou-Se crucificar; e a sua morte é facto
consumado, pois “é já o terceiro dia depois que isto aconteceu” (o terceiro dia
após a morte é o dia da morte definitiva, do não regresso do túmulo). Abandonam
a comunidade, que já não faz qualquer sentido, e regressam à sua aldeia,
dispostos a esquecer o sonho e a retomar uma vida dura e sem esperança. A
discussão, entre eles a propósito de “tudo o que tinha acontecido”, é a
partilha solidária dos sonhos desfeitos que torna menos doloroso o desencanto.
Entretanto,
surge uma nova personagem: Jesus (que eles não identificam). Ele, tornando-Se
companheiro de viagem destes discípulos em caminhada, interroga-os sobre “o que
se passou nestes dias”, escuta as suas preocupações e torna-se o confidente da
sua frustração. Os dois homens contam a história do “mestre”, cuja proposta os
seduziu, mas a versão que contam termina no túmulo: falta, na sua descrição, a
fé no Senhor ressuscitado – ainda que saibam da tradição do túmulo vazio.
Para
responder às inquietações dos discípulos e lhes mostrar que o projeto de Deus
não passa por quadros de triunfo humano, mas pelo amor e pelo dom da vida,
“começando por Moisés e passando pelos profetas, explicou-lhes, em todas as
Escrituras, o que lhe dizia respeito”. Estavam na liturgia da Palavra, enquanto
caminhavam. De facto, é na escuta e na partilha da Palavra que o plano de Deus
ganha sentido. Só pela Palavra de Deus – proclamada, explicada, meditada e
acolhida –, os crentes podem perceber que o amor e o dom da vida não são fracasso,
mas geram a vida nova. A escuta da Palavra de Deus dá a entender aos crentes a
lógica de Deus. Os discípulos percebem, então, que “o messias tinha de sofrer
tudo isso para entrar na glória”: a vida plena não está – segundo a lógica de
Deus – no êxito humano, no trono, no poder, mas no serviço simples e humilde
aos irmãos, no dom da vida por amor, na partilha total do que somos e temos com
os irmãos que vão lado a lado connosco nos caminhos da vida.
Depois,
Jesus, Cléofas e o outro discípulo chegam a Emaús. Os discípulos, embora
continuem a não reconhecer Jesus, convidam-No a ficar com eles, porque se faz
tarde. Ele, apesar de fazer sinal de continuar o caminho, aceita e senta-Se à
mesa com eles. Enquanto comiam, Jesus “tomou o pão, recitou a bênção, partiu-o
e entregou-lho”. Esta sequência de gestos relembra-lhes a cena da Última Ceia,
em que Jesus instituiu a Eucaristia (e evocam a celebração eucarística da
Igreja primitiva), e eles reconhecem-No. Porém, Ele partiu, pois o caminho da
Igreja é para continuar. A comunidade caminha, para e restaura forças, mas
continua a caminhar. É a comunidade peregrina que se alimenta da Palavra e do Pão
da Vida e do Vinho da Salvação.
Assim,
Lucas ensina à sua comunidade que é possível encontrar Jesus vivo e
ressuscitado – esse Jesus que por amor enfrentou a cruz, mas que continua a
fazer-Se companheiro de caminhada dos homens nos caminhos da história – na
celebração eucarística dominical: sempre que os irmãos se reúnem em nome de Jesus
para “partir o pão”, Jesus está, vivo e atuante, no meio deles.
O
último momento do episódio põe os discípulos a retomar o caminho, a regressar a
Jerusalém e a anunciar aos irmãos que Jesus está vivo. Também hoje a celebração
da Eucaristia impõe o regresso à vida quotidiana (“ide”) com a certeza de que
Ele está vivo, nos acompanha sempre, e com a missão do testemunho e da
caridade.
Quando
Lucas escreve o seu Evangelho (década de 80), a comunidade cristã defrontava-se
com dificuldades. Tinham decorrido cerca de 50 anos depois da morte de Jesus. A
catequese dizia que Ele estava vivo; mas, no quotidiano de uma vida monótona e
cheia de dificuldades, era difícil fazer essa experiência. As testemunhas
oculares tinham desaparecido e os acontecimentos da paixão, morte e
ressurreição pareciam distantes e irreais.
Por
isso, a catequese lucana ensina como se pode encontrar Jesus ressuscitado, como
se faz uma verdadeira experiência de encontro real com esse Jesus que a morte
não venceu, porque não aparece Ele de forma gloriosa e não instaura um reino de
glória e de poder, que nos faça triunfar definitivamente sobre os nossos
adversários e detratores. E a mensagem de Lucas dirige-se a esses crentes que
caminham pela vida desanimados e sem rumo, cujos sonhos parecem desfazer-se ao
encontro da realidade monótona e difícil do dia a dia. Podemos ter devaneios de
grandeza e sonhar com intervenções espetaculares e decisivas de Deus na
história humana, mas esses não são os mecanismos de Deus. Não será numa
intervenção desse tipo que encontraremos Jesus, mas Ele está vivo e caminha ao
nosso lado nos caminhos do Mundo.
Podemos
não O reconhecer, por os nossos corações estarem cheios de perspetivas erradas
acerca do que Ele é, dos seus métodos e do que Ele quer. Todavia, Ele faz-Se
nosso companheiro de viagem, caminha connosco passo a passo, alimenta a nossa
caminhada com a esperança que brota da sua Palavra, faz-Se encontrar na
partilha comunitária do pão (Eucaristia).
Nesta
catequese fica eminente a ideia de que é na celebração comunitária da
Eucaristia que os crentes fazem a experiência do encontro com Jesus ressuscitado.
O relato lucano apresenta o esquema litúrgico da celebração eucarística: a
liturgia da Palavra (explicação das Escrituras, que leva os discípulos a entenderem
a lógica de Deus em relação a Jesus) e o partir do pão (que leva os discípulos a
entrarem em comunhão com Jesus, recebendo d’Ele vida e reconhecendo-O nesses
gestos, que são o “memorial” do dom da vida e da entrega aos homens).
E,
depois de fazer a experiência do encontro com Cristo vivo e ressuscitado na
celebração eucarística, cada crente é convidado a voltar à estrada, a
dirigir-se ao encontro dos irmãos e a testemunhar que Jesus está vivo e
presente na história e na caminhada dos homens. Com efeito, no sofrimento da
Humanidade, assumido pelo filho de Deus, está latente a ressurreição.
O
testemunho das mulheres – as apóstolas dos apóstolos – de que o túmulo estava
vazio era credível. Porém, os discípulos estavam excessivamente perturbados e,
só quando se sentam à mesa, partilham o pão com o forasteiro e este lho devolve
com a bênção, se lhes abrem os olhos e reconhecem o Senhor. Mas é de valorizar
que já os corações lhes ardiam por dentro, enquanto escutavam a explicação das
Escrituras.
É,
pois, a Eucaristia a presença do Ressuscitado no meio de nós. Contudo, reconhecido
o Senhor, é preciso fazer como os discípulos de Emaús: correr para a
comunidade, dar testemunho da experiência e escutar o testemunho da comunidade,
pois a fé é pessoal, mas espelha-se e ganha novo vigor, quando se torna comunitária.
“O Senhor ressuscitou e apareceu a Simão.” A fé assenta na nossa experiência de
Jesus e no testemunho da Igreja, particularmente no de Pedro.
***
O
trecho da primeira leitura (At 2,14.22-33)
situa-nos na manhã do dia do Pentecostes, em Jerusalém. A comunidade cristã,
transformada pelo Espírito, deixou a segurança do cenáculo e prepara-se para testemunhar
Jesus, em Jerusalém e até aos confins do mundo.
Lucas
põe na boca de Pedro – o porta-voz dos Doze – um discurso, que constitui um
primeiro anúncio de Jesus (“kerigma”) aos habitantes da cidade e a todos os que
lá se encontram para celebrar a festa judaica de “Shavu’ot” (“Pentecostes”,
celebrado 50 dias após a Páscoa, em que se ofereciam a Deus os primeiros frutos
da terra). Na época neotestamentária, celebrava a “aliança” e, sobretudo, o dom
da Lei ao Povo de Deus, na montanha do Sinai. O discurso petrino sintetiza a
pregação que a primitiva comunidade cristã fazia sobre Jesus.
Como
nos outros discursos querigmáticos dos Atos (cf At 3,12-26; 4,8-12; 10,34-43; 13,16-41), há um núcleo central que
procede do kérigma primitivo e o resume: súmula da atividade de Jesus, anúncio
da sua morte e ressurreição e da salvação que daí brota. Mesmo que não
reproduza exatamente a pregação de Pedro no Pentecostes, reproduz a fórmula do kérigma
primitivo e a catequese que a comunidade cristã primitiva apresentava sobre
Jesus.
São
estes os dados fundamentais desta catequese: Jesus passou pelo mundo realizando
gestos que testemunhavam a dinâmica de Deus e a sua proposta de salvação; a
proposta de Jesus chocou com a recusa do Mundo e Ele foi morto na cruz; porém,
Deus ressuscitou-O, mostrando que a vida gasta ao serviço de Deus não termina
no fracasso, mas conduz à ressurreição, à vida plena. Pedro é aqui o porta-voz
dessa comunidade que testemunhou a oferta de salvação e que recebeu de Jesus a
missão de a anunciar aos homens de toda a terra.
Este
primeiro anúncio é dirigido a judeus que conhecem as Escrituras e as promessas
de Deus. Por isso, Lucas utiliza argumentos tirados da própria Escritura, para
apresentar a catequese sobre Jesus. Em concreto, Lucas cita o salmo 16,8-11,
atribuído aqui a David, um dos raros textos do Antigo Testamento (AT) que
relevam a vitória da vida sobre a morte. O raciocínio do autor do discurso é:
David falou do amigo de Javé que venceria a morte. Não era David, pois Ele
morreu. Era o descendente de David que, segundo a promessa, herdaria o trono do
seu pai e estabelecer um reino eterno. Era a esse rei, da descendência de
David, que os judeus chamavam Messias ou Cristo (ungido), que alimentava a
esperança de Israel e que era aguardado ansiosamente.
Assim,
Jesus é esse que venceu a morte, é o filho de David, o herdeiro do trono ideal
de David, o Messias que Israel esperava. Este é o testemunho da comunidade
cristã sobre Jesus, o Messias, enviado ao mundo para instaurar um Reino de
justiça, de abundância, de paz. A vitória de Jesus sobre a morte e a sua
exaltação atestam que Ele é o Messias, enviado por Deus para salvar os homens.
E os cristãos são as suas testemunhas perante todo o Mundo. Por agora, o
testemunho é dado em Jerusalém, mas Lucas descreve, ao longo do livro dos Atos,
a forma como o anúncio sobre Jesus vai conquistando o mundo, até atingir o
coração do império.
***
O
trecho da 1.ª Carta de Pedro (1Pe
1,17-21), proclamado como 2.ª leitura, insere-se na mensagem petrina a
comunidades do meio rural, pobres e vulneráveis, em contexto de hostilidade,
que se manifesta cada vez mais contra os cristãos. As violentas perseguições de
Domiciano (traduzidas em massacres, torturas e sofrimentos indizíveis) estão no
horizonte próximo (década de 90).
Neste
sentido, a Carta exorta os crentes à fidelidade, olhando para Cristo, que
passou pela paixão e pela cruz, antes de chegar à ressurreição, mantendo a
esperança, o amor, a solidariedade, e vivendo, com alegria, coragem, coerência
e fidelidade, a opção cristã. E o trecho em referência constitui uma exortação
a viver na santidade (“vivei no temor”: o “temor” define, no AT, a obediência,
a confiança, a entrega a Deus a Deus) “durante o tempo de exílio neste mundo”.
Para
reforçar a exortação, o autor apresenta aos crentes a razão por que são
convidados a viver na santidade: Deus pagou alto preço para os resgatar do
antigo modo de viver, preço que não foi pago com ouro ou com prata, mas com o
sangue precioso de Cristo, vertido na cruz. Neste contexto, é utilizado o verbo
“lytróô” (“resgatar”). É um verbo usado no Grego para designar a libertação da
pessoa (nomeadamente um escravo), mediante o pagamento de certa quantia. No
entanto, no AT, o verbo é usado para designar a libertação levada a cabo por
Javé, em favor do Povo – do cativeiro egípcio, do exílio babilónico ou do
pecado.
Em
algumas passagens, assume o sentido de “adquirir”, implícito na ideia de
redenção: Javé resgata Israel para ele passar a ser o Povo de Deus. Contudo, dizer
que Deus “resgata”, não acentua a ideia de pagamento (Deus não paga nenhuma
quantia para resgatar o Povo), mas põe o acento na libertação: Deus, no seu
amor, liberta Israel da escravidão e do pecado e faz dele um Povo consagrado ao
seu serviço. Aliás, a tipologia do Êxodo/libertação está bem vincada na
referência ao “cordeiro sem defeito e sem mancha”: qualidades do cordeiro
pascal, o da noite gloriosa da libertação da escravidão do Egito.
A
questão é: Deus amou de tal forma os homens que enviou ao mundo o próprio Filho
(o cordeiro da libertação) com a salvação para o Povo de Deus. O egoísmo não
acolheu a salvação e matou Jesus. Esse foi o preço do amor de Deus e da sua
vontade de nos dar a vida. Mas a morte de Jesus não foi em vão: da sua
fidelidade à missão do Pai, do dom da sua vida, nasceu uma comunidade de homens
novos, que acolhem a Jesus e que caminham ao encontro da vida.
Por
isso, a comunidade dos crentes – e cada crente por si, com a comunidade e com
Deus – é convidada a contemplar o plano de salvação que Deus concretiza em favor
do homem e que leva o Filho de Deus a morrer na cruz. Contemplando o amor de
Deus e a sua vontade salvífica, aceitamos renascer para uma vida nova e santa.
Dessa forma, nascerá um Povo novo, consagrado ao serviço de Deus e que se
alimenta, na sua peregrinação terrestre e missionária, com a celebração
eucarística, que vive da partilha da Palavra e do Pão – palavra e pão que
alimentam o viandante, cimentam a comunidade e tornam missionária toda a Igreja.
E esta realiza-se crescendo e aparecendo, ou seja, alimentando-se de Cristo e
testemunhando-O.
2023.04.23 – Louro de Carvalho
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