A 6
de abril, o Expresso publicou um
texto de Ascenso Simões subordinado ao título “Que Igreja encontrará
Francisco?” Começa o articulista por fazer uma resenha da vida e dos costumes
de muitos membros do clero que, em tempos idos, infringiam a lei do celibato,
sem qualquer tentativa de ocultação, o que me parece um apontamento realista.
E
anota: “A igreja era o único sítio onde as classes se aproximavam, mesmo que os
mais importantes estivessem à frente, sentados, e os outros nos fundos, de pé.
O Bispo e o Vigário Geral tinham mais poder que o Governador Civil ou o
Presidente de Câmara, recebiam imunidade pela via temporal e intemporal.
Padres, muitos, tinham filhos e famílias, mas tudo se mantinha numa espécie de
jogo de sombras.” Já não concordo que foi “neste Portugal, de pobreza e
trabalho no campo, que uma parte significativa dos atuais bispos portugueses
nasceu e cresceu”.
É
verdade, por ser um de muitos casos, o que refere sobre algo do romance
queirosiano: “Eça de Queiroz criou, em 1875, o retrato do que foi sendo a
Igreja Católica até há bem pouco tempo. Amélia apaixona-se por Amaro,
encontram-se às escondidas e desse romance advém uma gravidez. Amélia morre e o
padre “dá às de vila Diogo.”
Já
não parece que aquilo que Vergílio Ferreira diz, em 1954, de António Santos
Lopes e da “forma como o seminário o moldou, o seviciou, o trucidou na sua
personalidade”, seja fenómeno alastrado e, sobretudo, exclusivo de seminários e
colégios católicos. Nos outros colégios e até nas escolas públicas (as gentes,
sobretudo de vila e de aldeia, que o digam!), a técnica corretiva e mesmo
orientadora da aprendizagem do currículo fixo era a cana, a bofetada e a palmatória,
apesar de proibidas. Formei-me em seminários diocesanos, vi exageros
pedagógicos condenáveis, mas não me sinto marcado por eles, muito menos em
“manhã submersa”. E presto homenagem a professores que estiveram à frente do
tempo, muitos dos quais de saudosa memória.
E,
se é possível que bispos do antigamente se tenham formado no universo
eclesiástico de Eça e no particularizado e caricaturado por Vergílio Ferreira, não
aceito que nele se tenham formado enquanto pastores da Igreja “muitos dos
atuais bispos”. Muito menos ligo o comportamento da Conferência Episcopal
Portuguesa (CEP), após o conhecimento público do relatório que a Comissão
Independente (CI) elaborou, a seu pedido e expensas.
Sobre
as posições da CEP, devo tecer alguns considerandos. Foi a CEP que, verificando
que as comissões diocesanas não constituíam espaço suficiente de denúncia,
mercê da falta de quadros em dioceses de pequena dimensão populacional e/ou
geográfica, decidiu criar a CI.
Houve
bispos que fizeram declarações infelizes sobre a existência das comissões
diocesanas (mas que as criaram, instados pelo Papa), sobre o volume dos casos
de abuso de menores por parte de clérigos, sobre a índole pública destes crimes
e sobre a não obrigação de denúncia. Porém, já todas as dioceses tinham aberto
a porta a denúncias por várias vias.
Porém,
a CI e o seu relatório também merecem alguns reparos.
Considero
o relatório CI, que li na íntegra (486 páginas), um ótimo instrumento de
trabalho e de reflexão, mas os elementos da CI esqueceram-se de que, a par da
triagem correta da realidade, as conclusões saíram por extrapolação. E fizeram,
indevidamente, dele uma bíblia.
Elaborado
o relatório, deviam ter feito duas coisas: concertar com a CEP a sua
apresentação pública, de forma comedida, dando conta ao público do trabalho
feito e em que usasse da palavra alguém em nome da CI e alguém em nome da CEP;
e entregá-lo à CEP, que o encomendou e o pagou. Ao invés, a CI, que já se tinha
avistado com o Presidente da República, no início do trabalho, avistou-se com o
chefe de Estado para lhe entregar um exemplar do relatório. Quer dizer, a
comissão é independente da Igreja Católica, mas não do topo do poder político.
Por
outro lado, membros da CI, que trabalharam com proficiência, detalharam em
demasia a apresentação pública do relatório e arvoraram-se em juízes da sua
execução pelos bispos.
Esqueceram
que o seu trabalho chegara ao fim e que fora acolhida a sugestão da criação de
um novo grupo de trabalho para dar continuidade à ação que iniciaram em boa
hora. Ao invés, começaram a responder ao que julgavam as declarações desviantes
e incompassivas dos bispos.
Assim,
alguém da CI disse que deviam ser indemnizadas as vítimas. quando os abusos
tenham ocorrido em seminários e colégios da Igreja, mas alguém também da CI
disse, tout curt, que a Igreja deve
indemnizar as vítimas. Isto parece responder à declaração do Patriarca de que
falar de indemnização era um insulto às vítimas, que não a tinham pedido.
Outro
elemento da CI disse que a experiência psiquiátrica mostra que os abusadores
sexuais de menores são irrecuperáveis. Isto contradiz o avanço da ciência em
terapia (os fármacos não resolvem) e a linha positiva da recuperabilidade dos
condenados, que obsta à prisão perpétua ou por tempo indefinido. Isto, sem falar
da fé na possibilidade de conversão e do perdão.
Não
estamos, pois, ante “uma espécie de recalcamento”, com “o chegar de notícias
sobre os abusos” que faça cada um dos bispos “regressar ao tempo da infância e
do seminário”, numa “revisitação que os obriga a fecharem-se em si e nos seus
mistérios”.
A
meu ver, a CEP devia, antes da sua assembleia plenária, ter estudado ou mandado
estudar o relatório e aplicar as instruções do vade mecum papal e não se ter ficado pelas meias tintas. Porém,
exigir dos bispos indemnização tout court
às vítimas, sem que estas sejam conhecidas, sem que estas o solicitem e sem
assacar aos prevaricadores a respetiva responsabilidade criminal e civil, a não
ser no caso de abusadores falecidos, é enormidade justiceira. Primeiro, os
prevaricadores devem ser instados a assumir os seus crimes e a arrostar com as
consequências; depois, em caso de ausência ou de incapacidade comprovada, devem
as instâncias eclesiais, de forma supletiva, obviar às necessidades das
vítimas, pois estas, na maior parte dos casos, estavam em estruturas e/ou em
atividades que mereciam a confiança dos pais e da sociedade.
Por
outro lado, há que deslindar as denúncias de casos reais das viperinas,
caluniosas e oportunistas, evitando a mercantilização do crime. E, para
assumirem as suas responsabilidades, os suspeitos têm de conhecer as pessoas
que foram sujeitas aos seus crimes. Por outro lado, o pagamento de tratamento,
sob apresentação de fatura, sugerido pelo presidente da CEP, é bizarro e
incompassivo.
Já
os casos de encobrimento devem ser tratados com cuidado. Quem é inocente de
encobrimento de crimes atire a primeira pedra! Há afetos inexplicáveis, há
cautelas indevidas. Porém, uma denúncia precipitada pode estragar tudo. E o
encobrimento era o tom corrente na família, no grupo, na sociedade.
Depois,
os suspeitos têm direito à defesa, ao recurso e ao bom nome, pelo menos até
serem condenados em sentença transitada em julgado. E, mesmo punidos, merecem o
perdão de Deus.
Apesar
das falhas declarativas de alguns bispos, parece emergir uma onda de
hostilização à Igreja (Não queria ir por aí). Com efeito, cada bispo atua na
sua diocese, não é a CEP, embora possa dar orientações. E cada bispo, para agir
em relação aos padres, tem de saber, em concreto, que atos estão em causa,
baseado em indícios suficientes. Tais indícios devem ser fornecidos pela CI,
por outras comissões ou pela investigação que o bispo desencadeie. Porém, é mau
partir do princípio de que todos os bispos participaram na elaboração do relatório
e conhecem os detalhes dos suspeitos que lhes foram indicados em lista nominal.
Os
grandes argumentos dos bispos assentam num entendimento muito próprio do
Direito Canónico, segundo o qual “estavam impedidos de comunicar às autoridades
civis os crimes que nos seminários, nas igrejas e em instituições de
acolhimento iam acontecendo”, e no facto de o fenómeno não ser exclusivo da
Igreja, o que é verdade, mas não lhes dá razão
Ora,
o
Direito Canónico não pode ser invocado para o encobrimento. Só a onda de
desconfiança que o clero possa vir a nutrir pelo seu bispo, em quem se deve
confiar. Com efeito, a Concordata de 1940 e a de 2004 não
autorizam a Igreja portuguesa autorizada a fechar-se nos seus muros. Ao invés, segundo
o art.º 12.º da Concordata de 1940 (retomado no art.º 5.º da de 2004), “os eclesiásticos
não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos
e coisas de que tenham conhecimento por motivo do sagrado ministério”. Mas isso
não habilita ao absurdo e à desumanidade. Assim, os abusos, a pedofilia, a
negação de personalidade, práticas que hoje conhecemos, não estão ao abrigo do
“ministério” referido.
Desde
o Concílio Vaticano II, a Igreja tem bem determinado o campo teleológico do
exercício eclesiástico. Porém, não se podem julgar os atos do passado, que são
criminosos, pelos critérios de justiça de hoje. Isso não acontece em nenhuma
área do Direito. Investigar os factos de 70 anos é útil para perceber a
dimensão do grave flagelo, não para punir segundo as leis atuais.
Em todo
o caso, a Igreja Católica deve sentir a vergonha pelos atos criminosos
cometidos no seu seio, dos quais deve claramente pedir perdão e oferecer todo o
apoio às vítimas. Porém, não deve envergonhar-se de ser Igreja e da sua missão,
devendo continuar o seu testemunho mobilizador, discreto ou público, respirando
com humildade, mas com ousadia. E deve relevar e valorizar toda a ação
espiritual e social que vem desenvolvendo, bem como apresentar os seus
missionários, catequistas, pastores e outros agentes do apostolado e ter
orgulho neles.
Importa
saber que Igreja temos em Portugal sempre e não só na Jornada Mundial da
Juventude em agosto. Precisamos de uma Igreja ativa, empenhada e sinodal, que
não se desculpe com os males da sociedade, mas que os denuncie, estejam eles
onde estiverem. É lícito que alguns abandonem a fé católica, escandalizados.
Porém, é de questionar se a fé antes professada era genuína. E a debandada de
uns deve fazer meditar os outros e reforçar-lhes o dom da fé.
Não
atribuo as razões de eventual ineficácia dos bispos aos Núncios Apostólicos,
que não são os únicos responsáveis pela nomeação dos bispos. Nem as escolhas
recaíram sobre funcionários menores, como não há motivo para endeusar os bispos
de algumas dioceses e anatematizar os de outras, ou considerar que alguns “são
uma inexistência pastoral e uma total nulidade na influência cultural e
teológica”. Devemos pedir-lhes uma verdadeira atitude missionária nas suas
dioceses, sem excluir a “aceitação de trabalho em África, na Ásia ou na América
Central”.
Tão
legítimo é um padre aceitar a ascensão ao episcopado como declinar o convite.
Concordo
que a nomeação de D. Delfim Gomes como auxiliar do Primaz das Espanhas agrada a
D. José Cordeiro, mas teria feito todo o sentido “a sua elevação na diocese de
onde provém e onde seria figura relevante nos múnus social e pastoral”. Não
suspiro por clérigos que não ascenderam ao episcopado, apesar de serem “figuras
centrais de movimentos relevantíssimos da Igreja em Portugal”. Poderíamos vir a
perder grandes líderes de movimentos e ganhar fracos bispos. E não me pronuncio
sobre quem deve ser o bispo da diocese A ou da diocese B.
Recuso qualquer profecia de debilidade da Igreja por
falta de sacerdotes: a Igreja, embora precise de padres, não vive
principalmente deles, mas do empenho dos batizados, que falta.
Deve
reivindicar-se uma Igreja missionária dentro do território português, próxima
de cada idoso, de cada pobre, de cada marginalizado, mas sem mundanidade,
pondo-se todos na via da santidade.
Os cristãos
seguem o Messias, que morreu na cruz para nos salvar e que fala a cada um dos
nossos corações. É certo que Jesus Cristo não precisa de intermediários, mas a sua
missão messiânica, não prescinde deles. Ele os escolhe, forma e envia, para a
Igreja pecadora, mas indefetível.
2023.04.14
– Louro de Carvalho
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