Os Estados Unidos da América
(EUA) estão a generalizar a banalização do trabalho infantil. As razões são: a falta de mão-de-obra, a inexistência de uma autoridade
central capaz e o caos na fronteira. A natureza da imigração mudou e muitos
menores cruzam a fronteira sem os pais.
No penúltimo ano fiscal (findo em março de 2022), JBS
Foods, Tyson Foods, Cargill e Marfrig, os grandes da indústria de processamento
de carne nos EUA, declararam um lucro recorde de cerca de 15 mil milhões de
dólares (14 mil milhões de euros). Ultrapassada a pandemia, apostam em manter o
nível de produção anterior. Porém, como não encontram ninguém para trabalhar, em
vez de aumentarem os salários e benefícios e, assim, atraírem adultos, contratam
miúdos a quem pagam ordenados de miséria.
E esta chaga social alastra. A Packers Sanitation
Services, a principal prestadora de serviços de limpeza àquele setor da
indústria alimentar, pagou uma multa de 1,5 milhões de dólares (cerca de 1,4
milhões de euros), o montante máximo previsto na lei, por causa da contratação
ilegal de mais de cem crianças, que trabalhavam em 13 fábricas espalhadas por
oito estados dos EUA.
Segundo Scott Allen, um dos porta-vozes do Departamento
do Trabalho, “as crianças passavam os dias a limpar serras elétricas, com mais
de dois metros de comprimento, e maquinaria desenhada para esmagar carcaças de
gado”, usando material tóxico e, por vezes, sem proteção, necessitando algumas
de tratamento médico. Isto sucede
pelo facto de a Packers Sanitation Services não assumir as suas
responsabilidades e não prevenir trabalho infantil.
No início do ano, o The New York Times, analisou o problema a nível nacional concluiu
que doze menores morreram, desde 2017, naquelas circunstâncias. Contudo, a
precariedade aumentou e, nalguns estados americanos, o trabalho infantil escuda-se
em normas recém-aprovadas.
Baseada na falta de operários, a governadora do
Arcansas, Sarah Huckabee Sanders, assinou, em fevereiro, a Lei de Contratação
de Jovens, que elimina a obrigatoriedade de as autoridades de verificarem a
idade dos funcionários com menos de 16 anos, embora seja ilegal, no Arcansas, empregar
menores de 14 anos. Apesar de a governadora julgar “muito importante” a proteção das crianças,
considera o antigo certificado “um fardo para os pais que precisavam de
ultrapassar as barreiras burocráticas para conseguirem emprego para os filhos.
Observa que as leis que regulamentam o trabalho
infantil e que protegem as crianças, ainda se aplicam, esperando, acima de
tudo, que as empresas as cumpram.
O exemplo do Arcansas tende a replicar-se. Em janeiro,
os congressos estaduais do Iowa e do Minnesota discutiram propostas de lei com
o mesmo objetivo, autorizando crianças com 14 anos a trabalharem na construção
civil. E o republicano Jason Schultz,
senador estadual do Iowa e um dos ideólogos da iniciativa, não confirma nem
desmente que o texto legal protege as empresas de qualquer processo civil, caso
os menores adoeçam ou morram em pleno posto de trabalho. Porém, Connie Ryan,
diretora-executiva da Aliança Inter-religiosa do Iowa, organização dedicada às
causas humanitárias – evocando as antigas imagens de crianças a trabalharem em
condições miseráveis e com olhar de enorme sofrimento, que horrorizava qualquer
pessoa – sustenta que a evolução mostra que “não é apropriado uma criança
trabalhar em condições desumanas”, mas que pessoas sem vergonha, como Schultz, não
pensam assim.
Outros estados, como o Alabama, apesar de não
possuírem legislação semelhante, não aplicam as leis vigentes. Na prática, permitem
situações de abuso. Em julho de 2022, a polícia da cidade
de Enterprise detetou a presença de menores (o mais novo tinha 12
anos) numa fábrica da SMART Alabama LLC, subsidiária da Hyundai. E um hondurenho,
pai de três desses menores, refere, confessando-se envergonhado, que precisavam
muito do dinheiro, aquando da contratação.
Mike Lewis, porta-voz da procuradoria-geral do
Alabama, diz que a maioria dos menores em causa perdeu o ano escolar, para
trabalhar, em longos períodos, numa fábrica com longo historial de violações de
normas sanitárias e de segurança, desvalorizando riscos como o de amputação; e
que há menores que estudam durante o dia e realizam turnos de oito horas à
noite.
E Tabatha Moultry, trabalhadora da SMART até 2019,
revela que a firma “sempre dependeu da mão-de-obra imigrante” e que viu, a dada
altura, uma criança, aparentemente de 11 ou 12 anos (mas que tinha 13 anos), a
manusear equipamento perigoso.
Perante cenários destes, a
Administração Biden prometeu, em fevereiro, aumentar o número de
inspeções no terreno. Todavia, será difícil de concretizar a promessa, pois
vários gabinetes estaduais com essa missão queixam-se da falta de recursos. Não
é só em Portugal que isso ocorre!
É de anotar que as crianças vítimas deste tipo de maus-tratos
são identificadas na travessia da fronteira. O Governo federal sabe da sua
presença no território, pois o Departamento de Saúde e Serviços Humanos deve
garantir que cada uma seja apadrinhada por uma entidade ou família. O problema é que o sistema concebido para as
proteger está em crise. Por outro lado, mudou a circunstância da travessia. Antigamente,
os menores vinham acompanhados, ao passo que, agora, vêm sozinhos, enviados por
pais desesperados, cientes de que serão detidos na fronteira. E muitos menores
ficam ao abandono, arriscando-se a cair nas malhas do tráfico humano.
Perante este cenário, a diretora-executiva da Aliança
Inter-religiosa do Iowa, acima referida, interpela as autoridades. “Não é
difícil encontrar menores em apuros. Estão à vista de todos em muitas fábricas
e estaleiros de construção. Até quando vamos continuar de olhos fechados?”
E
trata-se dos EUA, país ufano da sua democracia e dos direitos humanos: nos países
em desenvolvimento a miséria ou é muito maior ou está muito mais exposta.
***
Ora,
a par da exploração desenfreada do trabalho infantil, avança a desproteção das
crianças, que ficam, de ano para ano, cada vez mais expostas aos riscos de pobreza, de fome e de discriminação.
De acordo com o relatório “More than a billion
reasons: The urgente need to build universal social protection for Children” [Mais
de mil milhões de razões: a urgente necessidade de assegurar proteção social às
crianças], da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), lançado a 1 de março de 2023), aumentou em 50
milhões o número de crianças com idades entre os 0 e os 15 anos sem acesso a
proteção social mínima – isto é, a prestações sociais dirigidas às crianças
(dinheiro ou benefícios fiscais) – de 2016 a 2020. Ou seja, passou para 1,46
mil milhões o número de crianças nessa situação.
“Aumentar
os esforços para assegurar investimento adequado e suficiente que garanta proteção
social universal a todas as crianças, idealmente através de subsídios a elas
dirigidos, para apoiar as famílias em todos os momentos, é a única escolha
ética e racional e a que constrói o caminho do desenvolvimento e da justiça
social”, afirmou Shahra Razavi, diretora do Departamento de Proteção Social da
OIT.
Segundo o relatório, as taxas de cobertura de subsídios às
crianças e às famílias diminuíram ou estagnaram em todas as regiões do mundo,
entre 2016 e 2020. Assim, nenhum país caminhou no sentido de assegurar o Objetivo
de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de garantir proteção social adequada até
2030. Por exemplo, na América Latina e nas Caraíbas, a cobertura diminuiu de
cerca de 51% para 42%. Em muitas outras regiões, os níveis de cobertura
estagnaram e mantém-se baixos. Desde 2016, as taxas de cobertura têm-se mantido
nos 21%, na Ásia Central e do Sul; nos 14%, na Ásia de Leste e no Sudeste
Asiático; nos 11%, na África Subsaariana; e nos 28%, na Ásia Ocidental e no
Norte de África.
A incapacidade de garantir proteção social adequada às
crianças expõe-nas à pobreza, a doenças, a intermitências no acesso à educação
e à má nutrição; e aumenta os riscos de casamento infantil e de trabalho
infantil (pesado, precário e com salário de miséria). Globalmente, as
crianças têm duas vezes mais probabilidade do que os adultos de viverem em pobreza
extrema.
Assim, aproximadamente 356 milhões de crianças sobrevivem com
imensa dificuldade, pois dispõem, em média, por dia, de menos de 1,90 USD (PPP),
ou seja, menos de 1,75 euros. (PPP refere-se à Paridade de Poder de Compra,
medida composta pelos preços de produtos específicos em diferentes países e que
dá para comparar o poder de compra absoluto entre países.)
Ao mesmo tempo, mil milhões de crianças vivem, também, em pobreza
multidimensional, isto é, não têm acesso a educação, a saúde, a habitação, a nutrição
adequada, a condições sanitárias ou a água. O número de crianças a viver em
pobreza multidimensional aumentou 15% na pandemia de covid-19, revertendo
alguns progressos anteriores na redução da pobreza infantil e evidenciando a
imperiosa necessidade de proteção social. Além disso, a pandemia
evidenciou que a proteção social é resposta crucial em tempos de crise. Praticamente
todos os governos do Mundo adaptaram, rapidamente, os esquemas de proteção social
existentes ou adotaram novos programas, para apoiar crianças e famílias, mas a
maioria não assegurou reformas permanentes que as protejam face a choques
futuros.
A este respeito, Natalia
Winder-Rossi, diretora de Políticas Sociais e de Proteção Social da UNICEF,
observou: “Com as famílias a fazer face a
cada vez mais dificuldades económicas, insegurança alimentar, conflito e
desastres ambientais e climáticos, prestações sociais universais dirigidas às
crianças podem ser um verdadeiro balão de oxigénio.” E prosseguiu: “Existe a
imperiosa necessidade de fortalecer, expandir e investir em sistemas de
proteção social orientados para a infância e preparados para eventuais choques.
É essencial para proteger as crianças do risco de viver na pobreza e aumentar a
resiliência, sobretudo dos agregados familiares mais pobres.”
Todos os países, independentemente do seu nível de
desenvolvimento, têm de fazer uma escolha: prosseguir um caminho de elevada
valorização estratégica do investimento em sistemas de proteção social, ou um
caminho de reduzida valorização estratégica, ignorando investimentos
necessários, que deixará milhões de crianças para trás. E, para inverter
a tendência negativa que o relatório espelha, a OIT e a UNICEF apelam aos
decisores políticos que adotem as medidas necessárias para assegurar proteção
social universal para todas as crianças, nomeadamente:
Investir em apoios sociais
dirigidos às crianças, que provaram ser forma eficaz e financeiramente
eficiente de combater a pobreza infantil e de assegurar oportunidades de
prosperidade;
Disponibilizar um conjunto amplo
de apoios à infância, através dos sistemas nacionais de proteção social
interligados com o acesso das famílias aos serviços sociais e de saúde
fundamentais, como o acesso gratuito ou a preços reduzidos a creches de
qualidade;
Construir sistemas de proteção
social baseados em direitos, sensíveis à dimensão de género e inclusivos,
resistentes a choques, para mitigar desigualdades e oferecer melhores resultados
a raparigas e mulheres, a crianças migrantes, e a crianças vítimas de trabalho
infantil, por exemplo;
E assegurar financiamento
sustentável dos sistemas de proteção social, através da mobilização de recursos
nacionais, aumentar a alocação de orçamento à proteção das crianças e reforçar
a proteção social de pais, de mães e de cuidadores, garantindo o acesso a
trabalho digno e a proteção social adequada, sobretudo no desemprego, na doença,
na maternidade, na deficiência e velhice.
***
Enfim, há muito a fazer na proteção
das crianças e na erradicação da pobreza. Governar pela força ou com mira na aquisição
do voto do eleitorado desdiz da obrigação de zelo pelo bem comum.
2023.04.11
– Louro de Carvalho
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