Foi o tema da Via-Sacra no Coliseu de Roma, na noite
de Sexta-Feira Santa de 2023, em que territórios feridos pela guerra tiveram
vez e voz públicas mundiais.
As
meditações das 14 estações desta Via-Sacra – a que o Papa Francisco não
presidiu, em virtude do frio intenso que se fazia sentir naquela noite, mas que
acompanhou a partir dos seus aposentos, em Santa Marta – são testemunhos de
homens e de mulheres de várias regiões do Mundo que sofrem violência, pobreza e
injustiça, que o Papa ouviu, durante as suas viagens apostólicas e em outras
ocasiões, e que foram editadas por alguns Dicastérios da Cúria Romana.
Esses
lancinantes testemunhos – de homens e de mulheres, de jovens e de idosos, de
pais ou de consagrados – emergem de terras duramente assoladas por bombas, por tiros,
por mísseis ou por ódio fratricida, que se transformaram em cenários de destruição,
de mutilação e de morte, ocasionando medo, fuga, deserção e desespero.
Francisco tinha
o desejo de que o tema fosse “Vozes de paz num tempo de guerra”. A representar
os diferentes pontos de violência no globo, foram escolhidas as principais
regiões; e, no caso da Europa, foram mencionados o povo ucraniano e o povo
russo, que estão em explícito e violento conflito desde o ano passado, conflito
que está constantemente no centro das atenções do Papa.
***
O caminho da
Cruz começou a partir da Terra Santa, onde “a violência parece ser a nossa
única linguagem”. Neste contexto, “carregado de ódio e rancor”, o apelo é à
tomada de uma “decisão” de paz, impondo-se a oração: “Quando condenamos, sem
apelo, os nossos irmãos”, “quando fechamos os olhos perante a injustiça, Ilumina-nos,
Senhor Jesus.”
O testemunho
de um migrante da África Ocidental emocionou, quando ele narrou a sua “via-sacra”
marcada pela prisão e pela tortura, na Líbia, e pelas travessias marítimas,
como a travessia num bote com 100 pessoas. “Todas as noites, perguntava a Deus
porquê: porque é que homens como nós nos devem considerar inimigos?”. E a oração
foi: De julgamentos precipitados, de murmurações destrutivas, Livra-nos, “Senhor
Jesus”.
A meditação
da estação em que Jesus cai pela primeira vez, foi realizada por jovens da
América Central. Estes jovens também falam de quedas: preguiça, medo, desalento
e promessas vazias duma vida fácil, mas desonesta, feita de ganância e
corrupção. “Muitas famílias”, disseram eles, “continuam a chorar a perda dos
filhos”. E rezaram: Pela nossa preguiça, tristeza, queda e por pensarmos que
ajudar os outros não nos toca a nós, “Levanta-nos, Senhor Jesus!”
Da América do
Sul, a voz de uma mãe, vítima da explosão de uma bomba de guerrilha, em 2012, e
que ajuda, agora, a prevenir acidentes com minas, dá conta de que aquilo que a
aterrorizou foi ver a sua filha de 7 meses de idade com pedaços de vidro
cravados no rostinho. “Como deve ter sido [doloroso] para Maria ver o rosto de
Jesus pisado e ensanguentado!”. E a oração, em maré de via-sacra de Semana
Santa, é breve, mas urgente: “No rosto desfigurado de quem sofre: Concede-nos
reconhecer-Te, Senhor Jesus!”
Três
migrantes da África, do Sul da Ásia e do Oriente Médio entrelaçaram as suas
histórias, diferentes, mas unidas por serem vítimas do ódio. O que foi “uma vez
experimentado não se esquece”. Portanto, a oração tem de constituir um pedido
de perdão de Deus, porque O desprezamos “nos desventurados” e O ignoramos “nos
necessitados de ajuda”.
Um sacerdote
deu voz à Península Balcânica. Um pároco foi deportado, em plena guerra, para um
acampamento, sem comida e sem água. Ameaçaram arrancar-lhe as unhas, esfolá-lo
vivo. Uma vez implorou a um guarda que o matasse, mas uma mulher muçulmana trouxe-lhe
comida e ajuda. “Foi para mim como a Verónica para Jesus.” “Dá-nos o teu olhar,
Senhor Jesus”, é a súplica, “para cuidar de quem sofre violência”, e “acolhe
quem se arrepende do mal”.
Dois
adolescentes do Norte da África, que vivem em campos de deslocados, querem
estudar e brincar, mas não têm espaço nem oportunidade: “A paz é boa, a guerra
é má. Gostariam de o dizer aos líderes do mundo.” “Na fadiga de construir
pontes de fraternidade”, a oração deles é: “Fortalece-nos, Senhor Jesus.”
Os fiéis do
Sudeste Asiático, de um povo que “ama a paz”, também falaram ao mundo: “Somos
um povo que ama a paz, mas estamos esmagados pela cruz do conflito”. As mulheres
dão força, como a freira que “se ajoelhou diante do poder com as armas em riste”.
“De traficar armas sem escrúpulos de consciência”, rezam elas, “Converte-nos,
Senhor Jesus!”
É também de
uma religiosa, que ensina valores às crianças, a voz da África Central a relatar
a terrível manhã de 5 de dezembro de 2013, quando os rebeldes invadiram a sua
aldeia: “A minha irmã desapareceu e nunca mais voltou.” Ela gritava: “Porquê?”
Mas de Deus ela tirou a força para amar: “Tudo passa, exceto Deus.” “Sara-nos”,
reza a Deus, do medo de não ser “compreendida” e do medo de ser “esquecida”.
Na décima
estação, as meditações foram feitas por um jovem ucraniano e por um jovem
russo. O primeiro conta sua fuga de Mariupol para a Itália, com o pai detido na
fronteira, e o seu retorno à Ucrânia. “Há guerra de todos os lados, a cidade
está destruída”, vincou. O segundo recorda o seu irmão mais velho, que morreu,
e o seu pai e avô, que desapareceram: “Todos nos diziam que tínhamos que nos
orgulhar, mas, em casa, só havia muito sofrimento e tristeza.” Estes jovens pedem
ao Senhor a purificação do “ressentimento” e do “rancor”, das “palavras” e das “reações
violentas”.
O sofrimento
também é compartilhado por um jovem do Oriente Médio, que tem vivido uma guerra
que é cada dia mais “horrenda”, desde 2012. Fugiu com os pais: “um outro
calvário”. “Cura-nos, Senhor Jesus”, da “incapacidade de dialogar”, do “isolamento”,
da “deficiência” e da “suspeita”.
A mãe da
Ásia Ocidental que perdeu o seu filho não abre mão da esperança. Viu o morrer o
filho menor, sob uma casca de morteiro, juntamente com o primo e com a vizinha.
Porém, diz: “A fé ajuda-me a ter esperança, porque me lembra que os mortos
estão nos braços de Jesus”. Ela pede a Cristo: “Ensina-nos” a “perdoar, como Tu
nos perdoaste”.
Uma
religiosa da África Oriental revive a morte da irmã nas mãos dos terroristas,
no dia em que o seu país celebra o Acordo para a Independência. “O dia da
vitória transformou-se em derrota”, confessou. No entanto, como assegurou, “é
Cristo a nossa verdadeira vitória”. “Tu que, morrendo, destruíste a morte: tem
piedade de nós, Senhor Jesus!” – rezou.
Por fim,
sobressaem as histórias das jovens da África Austral, sequestradas e abusadas
pelos rebeldes: “Despidas de roupas e dignidade, vivíamos nuas, para que não
escapássemos”, relataram. Tendo escapado, agora escrevem: “Em nome de Jesus, perdoamos-lhes
por tudo o que nos fizeram.” E rezaram: “Guarda-nos, Senhor Jesus, no perdão
que renova o coração.”
***
A Via-Sacra concluiu-se
com uma oração de “14 obrigado” ao Senhor Jesus:
Pela mansidão
que confunde a arrogância;
Pela coragem
com que abraçaste a cruz;
Pela paz que
jorra das tuas feridas;
Por nos
teres dado a tua santa Mãe como nossa Mãe;
Pelo amor
demonstrado diante da traição;
Por teres
mudado as lágrimas em sorriso;
Por teres amado
a todos sem excluir ninguém;
Pela
esperança que infundes na hora da provação;
Pela
misericórdia que sara as misérias;
Por Te teres
despojado de tudo para nos enriquecer;
Por teres mudado
a cruz em árvore da vida;
Pelo perdão
que ofereceste aos teus assassinos;
Por teres
derrotado a morte;
Pela luz que
acendeste nas nossas noites e pela qual, reconciliando todas as divisões, nos tornaste
a todos irmãos, filhos do mesmo Pai que está nos céus.
***
A Via-Sacra
foi uma bela oportunidade de revisitar o sofrimento das pessoas e dos povos no
orbe terrestre e constituiu um rico momento de oração pessoal e coletiva com a
Bíblia (cada estação era enquadrada por uma citação bíblica), a tradição (as 14
estações são uma herança da tradição) e o jornal (o sofrimento, a esperança e o
perdão foram notícia, crónica e reportagem).
Creio que, nesta
fé meditante, nesta oração universal e na ação pela paz, se constrói um futuro
melhor, por mais justiça e por mais bem-estar.
2023.04.08 – Louro de Carvalho
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