A direção e a presidência
do Conselho Científico do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de
Coimbra anunciaram, a 14 de abril, que “Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena
Martins se encontram suspensos de todos os cargos que ocupavam” na instituição,
“até ao apuramento de conclusões” da comissão independente que o CES está a
constituir.
Boaventura Sousa Santos
é diretor emérito do CES e coordenador científico do Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa da instituição, integrando também a comissão permanente do
conselho científico do CES. E Bruno Sena Martins, formado em antropologia, é cocoordenador
do programa de doutoramento “Direitos Humanos nas Sociedades Contemporâneas” e
docente no programa de doutoramento “Pós-Colonialismo e Cidadania Global”,
tendo sido vice-presidente do conselho científico entre 2017 e 2019.
A decisão surge na sequência das acusações
de assédio sexual e moral, feitas por três investigadoras do CES, noticiadas
pelo Diário de Notícias (DN). Efetivamente, um artigo num livro sobre assédio sexual na
academia, publicado pela prestigiada
editora académica internacional Routledge, acusa dois dos membros do CES de usarem o poder sobre jovens estudantes
e investigadoras, para “extrativismo sexual”, e a instituição de silenciamento
e de cumplicidade. Os acusados negam qualquer comportamento inapropriado. E o
CES anunciou investigação a este caso de alegadas condutas sexuais inapropriadas na
academia, que está a causar ondas de choque no meio académico português.
Sem referir nomes, o artigo retrata o perfil de Boaventura Sousa Santos e de
Bruno Sena Martins, tal como os graffiti que se veem expõem Boaventura Sousa Santos.
No artigo, são descritos como o
professor estrela e o aprendiz. Sousa Santos e Sena Martins reveem-se no perfil
traçado, mas rejeitam por completo as acusações das antigas investigadoras do
CES: uma norte-americana, uma belga e a portuguesa Catarina Laranjeiro – que dão
conta de comportamentos impróprios que dizem ser de conhecimento público na
Universidade, como provam os graffiti acusatórios, incluindo um em que se lia
“Boaventura Fora: Todas sabemos.”
De Boaventura Sousa Santos, de 82 anos,
o artigo fala de longos jantares com investigadores do CES, que se estendiam
madrugada dentro e nos quais se bebia muito.
Num deles jantares, o fundador e diretor emérito
terá abraçado, durante demasiado, tempo Catarina Laranjeiro e outra bolseira –
abraço que pretendia insinuar “familiaridade excessiva”. E, noutro episódio, é
acusado de ter tocado o joelho de outra aluna, de quem era orientador,
convidando-a a aprofundar o relacionamento como paga da ajuda académica.
Ao DN
Sousa Santos nega, de forma “veemente” as acusações, diz estar a ser alvo
de “cancelamento”, fala de um ataque “ad hominem” e afirma que as acusações
nunca foram apresentadas ao CES. E Bruno Sena Martins, de 45 anos, também
rejeita as acusações, referindo ao DN,
que, em algum momento, foi algo de queixa na Academia. Acusado de abuso sexual
por parte de uma das autoras do artigo, reconhece ter mantido uma relação
sexual com a investigadora norte-americana, mas rejeita que esteja em causa uma
relação de poder, dizendo que nunca foi seu orientador.
No artigo, as antigas investigadoras
deixam também críticas ao CES, por, alegadamente, ignorar o que passava. E o CES
refere, em comunicado, que irá constituir, num curto prazo, uma comissão
independente, a qual identificará eventuais falhas institucionais e a
averiguação da ocorrência das eventuais condutas antiéticas indicadas naquele
capítulo do livro. A comissão será composta por dois elementos externos, um dos
quais presidirá, e pela Provedora do CES. Os membros externos a convidar terão
competências reconhecidas no tratamento de processo análogos.
O professor catedrático Boaventura
Sousa Santos negou, no dia 11, por carta aberta, as acusações de assédio sexual
e moral, dizendo-se alvo de “uma difamação anónima, vergonhosa e vil”.
Na
carta aberta, com o título “Diário de uma difamação -1”, afirmando que nunca
teve reuniões com Miye Tom e Catarina Laranjeiro e que teve duas reuniões com
Lieselotte Viaene, escreveu: “Apesar de o artigo estar centrado na minha pessoa,
nunca tive reuniões com duas das autoras (Miye Tom e Catarina Laranjeiro) e com
a terceira, a principal autora (Lieselotte Viaene), tive duas
reuniões, uma como seu supervisor do estágio Marie Curie quando chegou ao CES e
outra como director estratégico do CES, a pedido do director executivo, para
tentar resolver os problemas do comportamento incorreto e indisciplinado do
ponto de vista institucional desta investigadora. O seu
comportamento foi de tal ordem insolente e incorreto que o CES acabou por lhe
abrir um processo disciplinar e não aceitou que ela indicasse o CES como
instituição de acolhimento num projeto de candidatura ao European Research
Council.”
O
comportamento terá levado a processo disciplinar, que resultou no despedimento
de Lieselotte Viaene, em junho de 2018, como anotou na carta emitida a partir
do Chile.
O
capítulo assinado pelas três autoras “é um texto que tem uma
mistura entre um quadro teórico sólido, retirado da literatura que foi produzida
no seguimento do movimento ‘Me Too’, à qual se sobrepõe uma informação empírica
assente em referências anónimas, boatos e incidentes não identificados e não
provados de maneira a poderem ser contestados”, vinca o professor, que
reconhece poder ter desiludido a investigadora belga, quanto ao pouco
tempo dedicado à orientação do seu estágio, mas salienta que “nada dito
justifica esta diatribe contra uma instituição e ainda por cima tão
personalizada contra alguém que, no máximo, foi absentista na sua orientação”.
E
o sociólogo chama a atenção para pedidos de ajuda de estudantes de doutoramento
indígenas da universidade espanhola onde agora Lieselotte Viaene dirige um
projeto de investigação, partilhando o teor de um e-mail de uma estudante guatemalteca, que acusa a investigadora
belga de exercer violência sobre a equipa local de investigação.
“No que respeita às insinuações que
me são feitas, quero afirmar que confrontarei qualquer suposta vítima com
serenidade e sentido de responsabilidade”, frisou. E escreveu
que avançará com uma queixa-crime por difamação, contra as autoras do artigo. “Independentemente
dos procedimentos internos e judiciais que o CES vier a adotar, quero
informar-vos de que vou apresentar uma queixa-crime por difamação,
contra as autoras. Declaro-me
disponível para dar todas as informações e prestar todos os esclarecimentos que
me sejam pedidos, quer no âmbito do processo judicial, quer no âmbito dos
processos internos, que o CES certamente vai pôr em movimento.”
Para
o diretor emérito, “o CES é uma grande instituição, que granjeou merecidamente
prestígio tanto nacional como internacionalmente”. “Os seus
investigadores e as suas investigadoras continuarão a lutar por merecer esse
prestígio, corrigindo erros, sendo rigorosos e transparentes para com todos os
atos de violação de ética profissional e denunciando aqueles e aquelas que, ao
ultrapassarem os limites da verdade e da reclamação justa, nos pretendem
distrair da nossa missão maior, a de contribuir para a ciência cidadã.”
A
investigadora Catarina Laranjeiro não se pronunciou sobre o assunto.
***
O CES, no comunicado em que anuncia a
suspensão preventiva dos professores indiciados (pelos vistos, a pedido dos
próprios), “demarca-se de todas as posições
assumidas publicamente por Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins,
nomeadamente no que respeita à intenção de avançar judicialmente contra as
autoras do capítulo do livro ‘Sexual Misconduct in Academia - Informing an Ethics
of Care in the University’ [‘Má conduta sexual na Academia - Para uma Ética de
Cuidado na Universidade’]”, embora respeite “o direito de resposta
individual".
O CES refere, também,
que “os atuais membros dos órgãos de gestão declaram que não têm conhecimento
de tentativas de averiguação ou ocultação de eventuais condutas inadequadas que
tenham ocorrido no passado”. Sublinha o “seu repúdio por qualquer
forma de assédio ou abuso, e solidariza-se com todas as vítimas de violência
desta natureza”, independentemente do tipo de queixas recebidas, dando nota da
“dificuldade que eventuais vítimas possam ter na denúncia de casos como estes”.
E reitera que “eventuais casos de conduta inadequada ou não ética não
refletem a cultura de trabalho” da instituição “como um todo”.
No comunicado, o CES
recorda que foi aprovado, em 2017, o regulamento da Comissão de Ética, em 2019,
o Código de Conduta do CES e, no final de 2020, foi instituída a Provedoria,
que iniciou a sua atividade em 2021 e que “recebeu duas queixas”, mas nenhuma delas
por assédio moral ou sexual”. E informa que “os atuais membros dos órgãos de
gestão declaram que não têm conhecimento de tentativas de averiguação ou
ocultação de eventuais condutas inadequadas que tenham ocorrido no passado”.
Por sua vez, a direção e
a presidência do Conselho Científico do CES referem também que “os graffiti mencionados
no referido capítulo” do livro, “não tendo sido acompanhados de participações
formais, suscitaram, na instituição, a necessidade de constituir mecanismos
mais explícitos de regulação e de denúncia”.
Os órgãos diretivos da
instituição “assumem a urgência do trabalho no reforço dos mecanismos de
prevenção e combate ao assédio existentes, através da revisão do Código de
Conduta e outros documentos de orientação ética, da clarificação dos aspetos
processuais do mecanismo de denúncia e da formação e sensibilização de todas as
pessoas que têm acolhimento institucional no CES”, o qual salienta que
“mantém o compromisso com a sua missão de defesa dos direitos humanos e com o dever
de transparência, proteção e justiça para com todas as pessoas que fazem parte
da sua comunidade”.
***
É óbvio que não posso
negar as alegadas acusações, nem posso atirar pedras à instituição, apenas com
base no que se lê e ouve. Lamento que uma instituição que prima ou deve primar
pela produção e pela divulgação do conhecimento, bem como pelos ditames da
ética, seja alvo de acusações tão graves. Pior ainda, se eles forem verdadeiros
e comprovados.
Contudo, se é verdade
que alunos dizem que há rumores dos factos, há muitos anos, é pena que tais
factos não tenham sido denunciados, a tempo, nas estruturas internas. Medo de
retaliação na prossecução da investigação ou na carreira académica e
profissional? Cultura do encobrimento e do silêncio, em nome do suposto dano ao
prestígio da instituição? Seja como for, a publicação, fora de tempo, num livro
publicado no estrangeiro é, no mínimo, enigmática e desdiz da sanidade
democrática da academia.
Parece que a Associação
Académica vai criar um espaço de denúncia. Seja!
2023.04.14 – Louro de Carvalho
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