Christine Ourmières-Widener presidente da Comissão Executiva
(ou CEO) da transportadora aérea de Portugal (TAP), no seu depoimento à
comissão parlamentar de inquérito (CPI), ajustou contas com o poder político, o
que mostra um tardio ressabiamento da famigerada gestora sénior, que tinha, em
meu entender, motivos suficientes para o fazer enquanto estava na plenitude das
suas funções, nomeadamente as eventuais pressões de membros do governo na
gestão da TAP, que estava sob processo de saneamento financeiro, acordado com a
Comissão Europeia.
Reiterou a acusação de desalinhamento da parte de Alexandra
Reis (que acusou a CEO de ter recrutado uma amiga e que declarou ter impedido
um contrato com o marido da mesma CEO) em relação ao plano de reestruturação,
como a CEO o entendia, e deu uma no cravo, outra na ferradura, em relação ao
diretor financeiro (ou CFO), dizendo que ele sabia de todo o processo de
indemnização de Alexandra Reis, mas não se lembrando se conhecia o montante da
indemnização.
Porém, o que fez soar as campainhas do escândalo político
foram as polémicas denúncias de um pedido, de que há registo, do ex-secretário
de Estado das Infraestruturas, Hugo Santos Mendes, no sentido de ser alterado
um voo da TAP em favor do Presidente da República (PR), aduzindo que o chefe de
Estado, que é “o nosso maior aliado” (aliado do Governo), poderia ficar
zangado, o que se poderia tornar num pesadelo, bem como o facto de ter sido
solicitada a sua participação, como CEO da TAP, antes de ser ouvida no
Parlamento, pela primeira vez, numa reunião do grupo parlamentar do Partido
Socialista (PS), em que participaram assessores e especialistas do gabinete do ministro
das Infraestruturas, João Galamba. Ora, se o primeiro caso significava
interferência governamental e partidária na gestão da empresa pública, o
segundo levantava a suspeita de os políticos do PS, partido do Governo, poderem
revelar algumas das perguntas com que a CEO seria confrontada e a de lhe darem
indicações de resposta.
Também ficou a saber-se que Hugo Mendes, que sabia da
indemnização a Alexandra Reis e a autorizou, com Pedro Nuno Santos, ex-ministro
das Infraestruturas, redigiu um despacho a pedir explicações à TAP e terá
orientado a resposta da empresa pública.
Entretanto, o ministro das Infraestruturas, João Galamba
referiu, em comunicado que foi a CEO da TAP a pedir a participação na reunião
do grupo parlamentar do PS, o que ele não autorizou nem tinha de autorizar,
pois, segundo o Regimento da Assembleia da República (AR), as reuniões dos
grupos parlamentares, que são autónomos, são públicas e visam a produção de
comunicação.
Luís Marques Mendes, no seu comentário dominical na SIC, sem contraditório, dizia que os
episódios da TAP revelam “o grau zero da política”, esperando que o
primeiro-ministro se demarcasse da situação, pois está em causa a sua
liderança, e que o presidente do Parlamento esclarecesse o que se passou com a
dita reunião do grupo parlamentar do PS, achando estranho que a CEO da TAP
conhecesse o calendário e a agenda da reunião (esquece que isso não é
impossível). Por outro lado, mostrou-se convicto de que o PR iria abordar o
tema e disse, que, numa situação normal, o Parlamento seria dissolvido, o que,
em seu entender, não deverá acontecer, pois estamos com uma inflação sem
precedentes, nos últimos anos, com a guerra e com a crise económica e social, a
que não é conveniente juntar uma crise política.
Entretanto, o primeiro-ministro, em resposta a uma interpelação da agência Lusa antes de partir para uma visita de
dois dias à Coreia do Sul, considerou gravíssimo o email que o ex-secretário de
Estado, Hugo Mendes, enviou à presidente executiva da TAP sobre o chefe de
Estado e afirma que teria obrigado à sua demissão na hora. “Como ainda não parti, respondo a essa questão
de política interna. Cada instituição tem o seu tempo e este é o tempo da
Assembleia da República apurar a verdade, toda a verdade, como tenho dito, doa
a quem doer”, declarou.
António Costa referiu que “não conhecia” esse email e que, “se tivesse conhecido, teria obrigado
o ministro [das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos] a demiti-lo, na hora”. Com
efeito, como vincou, “é
gravíssimo do ponto de vista da relação institucional com o Presidente da
República e inadmissível no relacionamento que o Governo deve manter com as
empresas públicas”.
Neste ponto, ainda em resposta à Lusa,
sustentou que a atuação de Hugo Mendes
não corresponde, “de forma alguma”, ao padrão de relacionamento do seu executivo
com as empresas públicas: “Não confundo a natureza pública com gestão
política. O acionista define orientações estratégicas e avalia a gestão na
apreciação das contas. Não pode interferir na gestão corrente da empresa.”
Questionado sobre o seu relacionamento institucional com a administração
cessante da TAP, o disse que só se reuniu uma vez com a presidente da comissão
executiva, para esta lhe apresentar o plano de reestruturação da transportadora
aérea nacional.
Por seu turno, o PR classificou, a 10 de abril, como uma ideia
simultaneamente “estúpida e egoísta” o pedido de alteração do voo em março de
2022, que teria como passageiro o Chefe de Estado: “Nunca me passou pela cabeça
essa ideia, que seria simultaneamente estúpida e egoísta. Estúpida, porque só
um político muito estúpido ia sacrificar 200 pessoas por causa de partir um dia
mais cedo ou um dia mais tarde numa visita que se reajusta facilmente.” E
acrescentou que seria uma ideia egoísta e que, por isso, a Presidência da
República “nunca contactou ninguém sobre isso”.
Além disso, frisou que, tendo sido colocada a questão ao
Chefe da Casa Civil, a 11 de fevereiro do ano passado, foi explicado “que era
um disparate”.
Já no passado dia 5 de abril, o PR fez saber: “A
Presidência da República nunca contactou a TAP, nem nenhum membro do Governo
sobre tal assunto. A Presidência da República nunca solicitou a alteração do
voo da TAP, se tal aconteceu, terá sido por iniciativa da agência de viagens.”
Entretanto, fez saber que não está no seu horizonte a
dissolução da AR, em bora não descarte esse poder presidencial. Na verdade, a
crise sobrepõe-se às questões partidárias. Além disso, as sondagens dizem que o
Governo não governa satisfatoriamente, mas não apontam alternativa.
Também o presidente da AR, Augusto Santos Silva,
defendeu que personalidades de perfil mais técnico, como é o caso da presidente
cessante da TAP, não devem participar em reuniões de natureza política.
Santos Silva respondia aos jornalistas, em Tábua, sobre
o caso de Christine Ourmières-Widener ter-se reunido a 17 de janeiro com
deputados socialistas e elementos do Governo, na véspera de ser ouvida no Parlamento.
“Os grupos parlamentares que apoiam um Governo e esse Governo podem e
devem ter reuniões periódicas, ao nível político adequado, mas essas reuniões
não devem envolver outras personalidades que, pelo seu perfil mais técnico ou
pelas responsabilidades que têm – seja à frente da administração direta do
Estado, seja à frente da administração indireta ou à frente do setor
empresarial do Estado.” “É um episódio que julgo que não se
repetirá, porque todos nós vamos aprendendo”, afirmou Santos Silva sobre
a predita reunião.
Vincando que, pessoalmente, não concorda “com reuniões
que misturam natureza técnica e natureza política”, salvaguardou a autonomia
dos grupos parlamentares: “No que diz respeito ao parlamento, os grupos
parlamentares são livres de fazerem as reuniões que entenderem e com quem
entenderem e de se prepararem para as atividades parlamentares, recolhendo
informação e até os pareceres que entenderem que lhes forem úteis.” No
entanto, em declarações aos jornalistas, deixou uma recomendação aos grupos
parlamentares: “que se distinga bem o que é o caráter político e o caráter
técnico”. E frisou: “Nas reuniões de natureza política, devem participar
pessoas investidas em funções políticas, como os membros do Governo ou os
deputados.”
O presidente da AR abordou ainda as comunicações entre a presidente da
TAP e o então secretário de Estado das Infraestruturas: “É também muito
importante para que o Estado português continue a reforçar-se e sejam preservadas
sempre as relações institucionais. Um nível de informalidade como se as pessoas
se conhecessem e tratassem pelo nome – mesmo que aconteça –, não deve ser
misturado com a natureza de uma relação institucional.
Para Santos Silva, um membro do Governo que tutele uma
empresa pública ou uma direção-geral deve “assumir uma natureza institucional”
nas suas comunicações e nos contactos com essa instituição, que está sob a
superintendência da tutela que lidera.
Por fim, é de referir que, uma semana depois das
revelações feitas na CPI da TAP, o presidente
do PS, Carlos César, veio criticar a “conduta perniciosa” de ex-secretário de
Estado “sem juízo”, mas saiu em defesa do ex-ministro Pedro Nuno Santos,
associado aos lucros da companhia aérea. Desafia o PR a cortar com agência de
viagens que terá metido “cunha” à TAP. E lembra que o Governo tem tantos votos
quanto o Presidente (“quase tantos”, diria eu).
Hugo Mendes teve uma “conduta estúpida e perniciosa”,
mas Pedro Nuno Santos tem mérito nos bons resultados da TAP. E o Governo tem
uma maioria absoluta que só deve ser julgada no fim da legislatura – foi assim
que o presidente do PS fez, nas redes sociais, o ponto de situação política
sobre a TAP e as revelações já feitas na CPI. E, como muitas vezes tem
acontecido, quando há polémica que envolva o chefe de Estado, foi o presidente
do partido que lhe deixou recados e, desta vez, para tentar dissipar as sombras
da dissolução parlamentar.
O dirigente do PS distingue entre Santana Lopes, que
logrou a dissolução da AR, e a atual situação, frisando que Santana Lopes era
primeiro-ministro por procuração e não pela legitimidade de eleição (eu
discordo), quando o PS obteve, há pouco mais de um ano, a maioria absoluta,
ganhando legitimidade igual à do Presidente da República. Depois, observou
que “vivemos um período especialmente sensível nos planos nacional, europeu e
internacional, quer nos perigos quer nos desafios”, importando, como reconheceu
o PR, o bom governo de Portugal e que as oposições sejam bem melhores do que
são. Por outro lado, recordou que os resultados desta governação com apoio
parlamentar devem ser avaliados pelo povo no tempo próprio, o termo da
legislatura e que “só se conhecem e debatem casos que
suscitam dúvidas ou críticas, porque as instituições estão a funcionar
regularmente e a democracia [está] no seu adequado exercício”.
***
Tudo certo, do ponto de vista racional. Todavia, em
política, a racionalidade não basta. Há as ideologias, os interesses, as
ambições, as verbas da Europa. Por isso, afigura-se-me que t(r)apalhada da TAP
continuará por mais uns meses e ajude a contaminar o devir político do país,
como grande aliada de outros escolhos da governação. E não creio como pode
Pedro Nuno Santos ficar associado a lucros da TAP milagrosamente conhecidos
despois da exoneração da CEO.
Parece que o Ministério Público vai investigar o
percurso da TAP nos últimos seis anos. Se é certo que os ilícitos de gestão
danosa têm prazo curto para a prescrição, seria útil, do ponto de vista
político, haver conhecimento público dos desmandos ocorridos na empresa de
bandeira nos últimos 50 anos. Adorava saber. O caso de Alexandra Reis não passa
da ponta do icebergue.
2023.04.10 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário