No
silêncio reflexivo, não de luto, mas de convocação da esperança, a Sexta-Feira
Santa oferece aos cristãos o espetáculo da Paixão e Morte do Senhor, um fim considerado
de ignomínia pelos Judeus, que O fizeram condenar à morte por crucifixão, como
se fora um escravo ou um malfeitor, mas em que a árvore-cruz contém em si o esperançoso
germe da vitória final sobre as forças do mal, sobre as estruturas mundanas de
pecado, de opressão, de roubo da dignidade humana.
A Sexta-feira Santa nasceu como dia da morte de Jesus (dia 14
do mês de Nissan, que caiu numa sexta-feira). Trata-se de um dia de luto
silencioso e de compunção, acompanhado de jejum e de abstinência, tendo esta,
depois, sido estendida a todas as sextas-feiras do ano.
A Ação Litúrgica da tarde é composta de três momentos:
Liturgia da Palavra, Adoração da Cruz e Comunhão. Por meio desta liturgia, os
fiéis são convidados a fixar o olhar em Jesus Crucificado, que morreu na cruz
para cumprir a missão salvífica que o Pai lhe havia confiado: “Eis o Cordeiro
de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo
1,19) – dizia João Batista. O profeta Isaías profetizou: “Ele tomou sobre si os
nossos pecados, as nossas dores e sofrimentos, e nós julgamo-Lo castigado por
Deus” (Is 52,13-53,12). Com a sua vida, Jesus pagou um alto preço pela nossa
desobediência, mas fê-lo com amor e por amor: “Sendo rico, Jesus fez-Se pobre
por vós, a fim de vos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9). No contexto desta Sexta-feira Santa, cada um de nós pode
ficar diante da cruz e dialogar com o Senhor Jesus sobre os próprios problemas,
dramas, sofrimentos. Todas as questões sobre a vida são iluminadas pela Cruz, a
ponto de chegarmos a dizer, realmente, que “o coração tem as suas razões, que a razão não pode compreender” (Pascal). O Senhor Jesus deve ser acompanhado com amor, até
ao fim, como Ele o fez.
Não
é dia de luto, mas de contemplação do amor de Deus que Se faz dádiva pelo
homem, que Se faz sacrifício redentor, que Se faz pasto de comunhão envolvendo
a pessoa e a comunidade, tal como na noite de Quinta-Feira Santa, mas agora de forma
cruenta, com o físico derramamento de sangue a selar a nova e eterna Aliança. A
Eucaristia, cuja celebração se omite neste dia, para intensificar a reflexão
orante à luz da copiosa leitura da Palavra de Deus, é o mistério sublime da
nossa fé, gerador da Páscoa de cada semana e de cada dia, mormente ao domingo. Neste
dia de paixão, morte e sepultura, a comunhão é “herança” do dia anterior e é premonição
do dia de Páscoa. Este é o dia entre a instituição da Eucaristia na última Ceia
(a primeira da nova Era) e o esplendor da Páscoa da Ressurreição, não se
celebrando, mas meditando a profundeza do mistério da redenção. É o momento do apelo
à austeridade e à contenção da normal exuberância humana.
Depois, de entregar o discípulo à mãe e a mãe ao discípulo,
sabendo que tudo estava consumado e para que se cumprisse a Escritura, Jesus disse:
“Tenho sede”. Havia ali uma jarra cheia de vinagre. Amarraram num ramo de
hissopo uma esponja embebida em vinagre e levaram-Lha à boca. Ele tomou o
vinagre e disse: “Está consumado”. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito. (vd
Jo 18,28-30).
Perante
este cenário, importa que ajoelhemos a assumir a
humilhação do homem terreno e a nossa coparticipação no sofrimento do Senhor,
que espelha o amor de Deus que chega a sacrificar o próprio Filho, verdadeiro
Cordeiro pascal, para a salvação da Humanidade.
E, para que tenhamos a Cruz presente nas nossas vidas – desde
a purificação do pecado, no Batismo, e da absolvição, no Sacramento da
Reconciliação, até ao último momento da vida terrena, com a Unção dos enfermos
e com o Viático, somos convidados, agora, a adorar a Cruz para o dom da salvação
que conseguimos pela vinda do Filho de Deus ao Mundo, para dar testemunho da
Verdade e fazer com que todos os que são da Verdade ouçam a voz da Verdade,
isto é, de Cristo.
Depois da ascese quaresmal, o cristão está preparado para não
fugir do sofrimento. Por isso, sem pejo e com ternura, durante a liturgia, os fiéis
tocam a Cruz e beijam-na, entrando ainda mais em contacto com a dor de Cristo,
que é a dor de todos, porque Ele carregou na Cruz os pecados de toda a Humanidade
para a salvar. E devemos fazer nossa essa Cruz de Cristo.
***
Na homilia
desta Sexta-Feira Santa, de celebração da Paixão do Senhor, o cardeal
Raniero Cantalamessa, frade capuchinho, reforçou o convite a continuarmos, “mais
convictos do que nunca” – fiéis ao que dizemos a cada missa há dois mil anos,
após a consagração: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a
vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!”.
A Igreja recorda
e anuncia, neste dia, a morte do Filho de Deus na cruz. Porém, como recorda o
pregador da Casa Pontifícia, está viva hoje, no Ocidente descristianizado, a “existência
de uma narrativa diversa” para a “morte de Deus, ideológica, não histórica”,
proclamada “há um século e meio. E Cantalamessa frisou que “esta morte diversa
de Deus encontrou a sua perfeita expressão no conhecido anúncio que Nietzsche
põe na boca do ‘homem louco’, que chega sem fôlego à praça da cidade: – Para
onde foi Deus? – exclamou – É o que vou dizer. Nós matámo-Lo – vós e eu!... Nunca
houve ação mais grandiosa e aqueles que nascerem depois de nós pertencerão, por
causa dela, a uma história mais elevada do que o foi alguma vez toda essa
história.”
É a ideia de
que “a história não seria mais dividida em ‘antes de Cristo’ e ‘depois de
Cristo’, mas antes de Nietzsche e depois de Nietzsche”, ou seja, exalta-se o
homem, o “super-homem”, o “além-homem”, colocando-o no lugar de Deus. Ora, os homens
não demorarão muito a dar-se conta de que, ao ficar só, o homem não é nada,
pois, no dizer do purpurado, “estamos errando como num nada infinito”.
Todavia, “não
nos é lícito julgar o coração de um homem que somente Deus conhece”, vincou o
pregador da Casa Pontifícia, recordando a oração de Jesus na cruz: “Pai,
perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!” (Lc
23,34). Porém, podemos e devemos julgar a consequência que teve o anúncio que
Nietzsche fez da morte de Deus, pois acabou por se tornar moda e declinada nos
mais diferentes tons. O denominador
comum a todas estas diversas declinações é o total relativismo em todos os campos:
ética, linguagem, filosofia, arte e, naturalmente, religião. Nada mais é
sólido; tudo é líquido ou mesmo vaporoso. No romantismo, as pessoas deleitavam-se
na melancolia, ao passo que, hoje, comprazem-se no niilismo. “Como
crentes, devemos mostrar o que está por trás ou sob aquele anúncio, isto é, a
trepidação de uma antiga chama, a erupção repentina de um vulcão jamais extinto
desde o início do mundo” – frisou Cantalamessa, sustentando: “Há uma
verdade transcendente que nenhuma narrativa histórica ou raciocínio filosófico
poderia transmitir-nos.”
E o cardeal
frade expôs tal verdade nos termos seguintes: “Cristo Jesus, existindo em forma divina, não considerou um privilégio ser
igual a Deus, mas esvaziou-Se, assumindo a forma de servo e tornando-Se
semelhante ao ser humano. E, encontrado em aspeto humano, humilhou-se,
fazendo-Se obediente até a morte – e morte de cruz!” (vd Fl 2,6-8).
Mas o
cardeal explicou o motivo por que se deve falar disto numa liturgia destas. Não
é para convencer os ateus de que Deus não está morto, porque, para isso, “são
necessários outros meios, mais do que as palavras de um velho pregador”, meios
que o Senhor não deixará faltar “a quem tem o coração aberto à verdade”.
O grande motivo é preservar os crentes “de serem atraídos para dentro
deste vórtice do niilismo, que é o verdadeiro ‘buraco negro’ do universo
espiritual”.
E o pregador
da Casa Pontifícia finalizou a sua homilia, nestes termos:
“Deus? Nós matámo-Lo – vós e eu! Esta coisa tremenda realizou-se, de facto,
uma vez na história humana, mas em sentido bem diferente do bradado pelo ‘homem
louco. Porque é verdade, irmãos e irmãs: fomos nós – vós e eu – que matamos
Jesus de Nazaré! Ele morreu pelos nossos pecados e também pelos de todo o mundo
(1Jo 2,2). Mas a sua ressurreição assegura-nos que este caminho não
conduz à derrota, mas, graças ao nosso arrependimento, conduz àquela ‘apoteose
da vida’, em vão buscada em outros lugares.”
***
Em Sexta-Feira Santa, morreu o Homem-Deus, mas Deus não está morto.
Continua vivo e operante na nossa vida de peregrinação até que possamos viver contemplando-o,
face a face, tal como Ele é puro e santo. Sexta-Feira Santa dá o cenário do
abraço de Deus à Terra, do abraço de Cristo ao Mundo e a cada ser humano.
2023.04.07 – Louro de
Carvalho
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