A
solenidade do Domingo de Ramos na Paixão do Senhor comemora a entrada triunfal
de Jesus na sua cidade de Jerusalém, a cidade dos homens que se afastou da
vontade de Deus, e celebra, como os demais domingos, a Paixão, a Morte e a Ressurreição
de Jesus.
Este
domingo é o início da Semana Maior, aquela em que, de forma mais vincada se
celebra a Paixão e tudo o que a ela diz respeito. O aspeto mais vistoso deste
dia é a Festa dos Ramos com que se aclama Jesus, mas esta aclamação tem consigo
a dor e o propósito da Paixão de Cristo pelas pessoas, pelo povo de Deus. Ao
invés do que alguém dizia, hoje também se celebra a Paixão.
A
liturgia deste domingo convida-nos a contemplar o Deus que, por amor, desceu ao
nosso encontro, partilhou a nossa humanidade, Se fez servo dos homens e Se
deixou imolar para vencer o pecado. A cruz, que a liturgia coloca no horizonte
próximo de Jesus, apresenta-nos a lição suprema, o último passo do caminho de
vida nova que, em Jesus, Deus oferece e propõe: a doação da vida por amor.
***
A
primeira leitura (Is 50,4-7), que é
parte do terceiro cântico do “servo de Javé”, prefigura o sofrimento do Senhor,
que assumiu a condição de servo.
O
autor do texto dá a palavra a uma personagem anónima, que fala do seu chamamento
por Deus para a missão. Não se autointitula profeta, mas a narrativa da sua
vocação veste-se dos elementos típicos dos relatos proféticos de vocação.
A
missão que este profeta recebe de Deus tem a ver com o anúncio da Palavra. Com
efeito, o profeta é o homem da Palavra e a proposta de redenção que Deus faz a
todos os que necessitam de salvação/libertação ecoa na palavra profética. O
profeta é modelado por Deus e não opõe resistência, nem ao chamamento, nem à
Palavra que Deus lhe confia. Está na atitude de escuta de Deus, para apresentar,
com fidelidade, a Palavra de Deus para os homens.
E
a missão do profeta concretiza-se no sofrimento e na dor. O anúncio da proposta
de Deus cria resistências que se consubstanciam, quase sempre, em dor e
perseguição para o profeta. Porém, este não desiste, não se demite: a sua
paixão pela Palavra supera o sofrimento.
Por
fim, surge a expressão da viva confiança no Senhor, que não abandona aqueles
que chama. A certeza de que o profeta não está só, mas de que tem a força de
Deus, torna-o mais forte do que a dor, do que a perseguição, do que o insulto e
o opróbrio. Por isso, “não será confundido”.
***
O
Evangelho (Mt 26,14 – 27,66),
proclamado e meditado neste dia, é o relato da Paixão e Morte de Jesus. Porém,
este evento salvífico tem de ser entendido no contexto do que foi a sua vida.
Ora
a versão mateana do Evangelho de Jesus Cristo, não o Evangelho segundo Jesus
Cristo, começa por apresentar Jesus (cf Mt
1,1-4,22). Descreve o anúncio central de Jesus: nas palavras e nos gestos,
Jesus anuncia o mundo novo a que chama o Reino dos céus (cf Mt 4,23-9,35). Desse anúncio nasce a
comunidade dos discípulos, que assimila a proposta de Jesus (cf Mt 9,36-12,50). Instruídos por Jesus,
formados na mentalidade do Reino, os discípulos recebem a missão de o
testemunhar, após a partida de Jesus (cf Mt
13,1-17,27). Na parte final do Evangelho, Mateus assinala a rutura de Jesus com
o judaísmo (cf Mt 18,1-25,46) e o
final da via terrena de Jesus: a paixão, a morte e a ressurreição (cf Mt 26,1-28,15) – dados constitutivos do mistério
pascal.
O
anúncio do Reino, colidindo com a mentalidade da opressão, leva Jesus à morte na
cruz. Contudo, isto não é o fim. Não se pode dissociar o acontecimento da
paixão dos que celebraremos no próximo domingo, pois a ressurreição é a prova
de que Jesus veio de Deus e tinha um mandato do Pai para realizar, no mundo, o
Reino dos céus.
Cedo
Jesus Se apercebeu de que o Pai O chamava à missão de anunciar o mundo novo, de
justiça, de paz e de amor para todos os homens. Para concretizar a missão,
Jesus passou pelos caminhos da Palestina “fazendo o bem” e anunciando a
proximidade do mundo novo, de vida, de liberdade, de paz e de amor. Ensinou que
Deus é amor e que não exclui ninguém, nem mesmo os pecadores: os leprosos, os
paralíticos, os surdos, os mudos e os cegos, não podem ser marginalizados, pois
não são amaldiçoados por Deus; os publicanos e as prostitutas poderão superar,
no Reino dos céus, os que se julgam justos; os pobres e os excluídos são os
preferidos de Deus e os que têm um coração mais disponível para acolher o
Reino; e os ricos, os poderosos, os instalados serão levados à morte pelo
egoísmo, pelo orgulho, pela autossuficiência, pelo fechamento.
O
projeto libertador de Jesus chocou, inevitavelmente, com a atmosfera de opressão
que domina o Mundo. As autoridades políticas e religiosas, incomodadas com a
denúncia de Jesus, não estão dispostas a renunciar aos mecanismos de poder e de
privilégio; não estão dispostas a arriscar, a desinstalar-se e a aceitar a
conversão. Por isso, prenderam-No, julgaram-No, condenaram-No e pregaram-No
numa cruz.
A
morte de Jesus é a consequência lógica do anúncio do Reino: resultou das
tensões e resistências que a sua pregação provocou nos que dominavam o mundo. É
o culminar da sua vida, a afirmação última, porém, a mais radical e genuína
(porque selada no sangue) do que Jesus pregou com palavras e com gestos: o
amor, o dom total, o serviço. Na cruz, aparece o Homem Novo, o protótipo do
homem que ama radicalmente e que faz da vida um dom. Porque ama, assume a
missão da luta contra o pecado, contra as causas do medo, da injustiça, do sofrimento,
da exploração e da morte. E a cruz gera o dinamismo do mundo novo, do Reino.
Mas,
para lá da reflexão holística sobre o sentido da paixão e morte de Jesus,
convém anotar alguns dados exclusivos da versão mateana.
Mateus
insiste na conexão dos acontecimentos com o cumprimento das Escrituras. E,
quando não o refere explicitamente, liga os acontecimentos da paixão de Jesus
com figuras e factos do Antigo Testamento (AT), para mostrar que a paixão e morte
de Jesus fazem parte do projeto de Deus, previsto desde sempre. Na verdade,
este evangelista, escrevendo para cristãos que vêm do judaísmo, faz referência
a citações e promessas do AT – conhecidas de cor por todos os judeus – para
demonstrar que Jesus é o Messias anunciado pelos profetas e cujo destino passa
pela dádiva da vida.
Também
Marcos e Lucas contam como, no Getsémani, quando Jesus foi preso, um dos do
grupo de Jesus agrediu à espada um servo do sumo-sacerdote. Porém, só Mateus
apresenta Jesus a condenar explicitamente o gesto, vincando que o projeto do
Pai não passa pela violência, mas pelo amor e pelo dom da vida, pelo que os
discípulos de Jesus não podem recorrer à violência, mesmo por uma causa justa. O
Reino de Deus nunca passará por esquemas de violência, de imposição, de poder e
de prepotência. No Reino, os fins nunca justificam os meios.
Só
no Evangelho de Mateus aparece o relato da morte de Judas, para deixar clara a
inocência de Jesus e a iniquidade do processo. A forma como Mateus vinca o
desespero e o arrependimento de Judas deixa clara a inocência de Jesus, bem
como o desnorte dos responsáveis pelo processo, empenhados em
desresponsabilizar-se de um processo apoiado na falsidade e no atropelo às leis.
São
exclusivos de Mateus o sonho da mulher de Pilatos e a lavagem das mãos por
parte deste procurador romano. Estes pormenores aparecem com uma dupla
finalidade: deixar claro que Jesus é inocente e que os próprios romanos o reconhecem;
e sugerir que não foi o império romano, mas o judaísmo que rejeitou Jesus e o
Reino. Os pagãos reconhecem a inocência de Jesus; mas o seu próprio Povo
rejeita-O. A frase que, no contexto do julgamento, Mateus atribui ao Povo (“o
seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos”) deve ser entendida neste
enquadramento. Assim, Mateus explica aos cristãos vindos do judaísmo porque é
que o judaísmo, como conjunto, está fora do Reino: rejeitou Jesus e quis
eliminar a sua proposta.
Também
é exclusiva de Mateus a descrição dos factos que acompanharam a morte de Jesus:
“o véu do Templo rasgou-se em duas partes, de alto a baixo; a terra tremeu e as
rochas fenderam-se. Abriram-se os túmulos e muitos dos corpos de santos que
tinham morrido ressuscitaram; e, saindo do sepulcro, depois da ressurreição de
Jesus, entraram na cidade e apareceram a muitos”. Com tais elementos, Mateus
frisa a importância do momento. É o tipo de sinais que, segundo a tradição
apocalítica, precederiam a manifestação de Deus, no fim dos tempos, e mostram
que, apesar do aparente fracasso, Deus está ali, a manifestar-Se como o
salvador e libertador do seu Povo.
E
só Mateus narra o episódio da guarda do sepulcro. Provavelmente, fá-lo com uma finalidade
apologética. Para os cristãos, o sepulcro vazio era a evidência de que Jesus ressuscitou,
mas alguns judeus puseram a circular o rumor de que o corpo de Jesus fora
roubado pelos discípulos. Mateus explica a origem do rumor e nega-o com
veemência.
***
A
segunda leitura (Fl 2,6-11) apresenta-nos
um hino cristológico pré-paulino.
Filipos,
cidade próspera, com uma população constituída maioritariamente por veteranos
romanos do exército, estava organizada ao modo de Roma e fora da jurisdição dos
governantes provinciais, dependendo diretamente do imperador. Gozava, pois, dos
privilégios das cidades de Itália. A comunidade cristã, fundada por Paulo, era entusiasta,
generosa, comprometida, sempre atenta às necessidades de Paulo e do resto da
Igreja, como o revela a coleta em prol da Igreja de Jerusalém. Por ela o
apóstolo nutria especial afeto. Apesar destes sinais positivos, não era uma
comunidade perfeita. O desprendimento, a humildade e a simplicidade não eram
valores apreciados entre os altivos patrícios que compunham a comunidade. É
neste quadro que se situa esta perícopa da Carta aos Filipenses, em que Paulo
convida os Filipenses a encarnar os valores que marcam a trajetória existencial
de Cristo. Para tanto, utiliza um hino recitado nas celebrações litúrgicas
cristãs, expondo Cristo como exemplo de vida.
Cristo
Jesus – nomeado no princípio, no meio e no fim – constitui o motivo do hino.
Porque os Filipenses são cristãos ou visto que Jesus Cristo é o protótipo a
cuja imagem estão configurados, têm a iniludível obrigação de comportar-se como
Cristo.
O
hino alude à antítese entre Adão, o homem que reivindicou ser como Deus e Lhe
desobedeceu, e Cristo, o Homem Novo que responde ao orgulho de Adão com a
humildade e a obediência ao Pai. Adão trouxe fracasso e morte, ao passo que
Jesus trouxe exaltação e vida.
O
hino define o “despojamento” (“kénôsis”) de Cristo: não afirmou, com arrogância
e orgulho, a sua condição divina, mas, fazendo-Se homem, assumiu, com humildade,
a condição humana, para servir, para dar a vida, para revelar aos homens o ser
e o amor do Pai. Sem deixar de ser Deus, quis descer até ao homem, fazendo-Se seu
servidor, para lhe garantir vida nova. Esse abaixamento assumiu foros de
escândalo: Jesus aceitou uma morte infamante – a morte de cruz – para nos
ensinar a suprema lição do serviço, do amor radical, da entrega total da vida. No
entanto, a entrega completa ao plano do Pai não foi perda nem fracasso: a obediência
e entrega de Cristo ao desígnio do Pai resultaram em ressurreição e glória. Em
consequência da obediência, do amor, da entrega, Deus fez d’Ele o “Kýrios”
(“Senhor” – nome que, no AT, substituía o impronunciável nome de Deus); e a humanidade
inteira (“os céus, a terra e os infernos”) reconhece o Senhor em Jesus, que
reina sobre toda a terra e que preside à história.
É
óbvio o apelo à humildade, ao desprendimento, ao dom da vida, que Paulo faz aos
Filipenses e a todos os crentes: o cristão tem como exemplo Cristo, servo
sofredor e humilde, que fez da sua vida um dom a todos. Essa via não leva ao
aniquilamento, mas à glória, à vida plena.
2023.04.02 – Louro de Carvalho
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