Num
artigo de opinião, de 26 de abril, subordinado ao título “Rui Rocha, um
lugar-comum”, Carmo Afonso, jornalista do Público
assinala o “25 de Abril” como “o dia preferido das novas direitas para
fazerem tristes figuras”.
Na
verdade, há sintomas de que os partidos mais à direita sentem dificuldade em
assumir a data da revolução abrilina no seu cariz fundacional do regime democrático
e preferiam a celebração do 25 de Novembro, por ter sido, supostamente, a data
da libertação da onda mais esquerdista do PREC (processo revolucionário em
curso). Dá a impressão de que o motivo por que participam na sessão solene
comemorativa, no Parlamento, se prende com a obrigação institucional de marcar
presença e, adicionalmente, de aproveitar a oportunidade para fazer vincar a
ideia de que o 25 de Abril não tem um dono, sobretudo um dono à esquerda.
Não
reparam que também os partidos à esquerda e, mesmo, os partidos considerados do
arco democrático moderado lamentam a insuficiência das realizações pós-abrilinas
e até alguns recuos no processo evolutivo da democracia. Se reparassem nisso, poderiam
afirmar, claramente, o seu ideário de democracia e fazer um discurso mais
construtivo. Porém, entendem marcar a diferença pelo combate ao uso do cravo,
como se fosse este o ex-libris dos comunistas.
Ora,
a história da presença do inocente, mas agora temível, cravo no epicentro visível
da revolução é muito simples.
Naquele
dia de abril de 1974, passando o aniversário do restaurante Franjinhas, o
proprietário havia encomendado muitos cravos vermelhos para decoração do seu
espaço, naquele dia festivo, até porque iria inaugurar um serviço de self-service,
o primeiro em Lisboa.
A
empregada de mesa Celeste Caeiro, ao chegar ao restaurante, de manhã, com os
cravos encomendados, recebeu a notícia de que o estabelecimento não abriria ao
público, por estar a decorrer uma revolução. Porém, o patrão recomendou que as
flores não fossem desperdiçadas.
Celeste
Caeiro recolheu os cravos e dirigiu-se ao Rossio, onde estavam concentrados os
soldados à espera de ordens do comando geral. Um soldado, precisando de fogo
para acender o seu cigarro, aproximou-se e perguntou se a senhora fumava. A
interpelada, não fumadora, disse que não e que só podia oferecer-lhe um cravo vermelho.
O militar aceitou e enfiou-o no cano da metralhadora, gesto que foi sendo replicado
pelos demais camaradas. Assim, todos os cravos foram distribuídos. E o cravo
passou a ser o símbolo da revolução que não derramou nenhuma gota de sangue.
Todos
os partidos políticos com assento parlamentar usaram da palavra na sessão
comemorativa do 25 de Abril e todos acentuaram o que entendem como ameaças à
democracia e as ambiguidades da mesma. Porém, o Chega, para lá de patrocinar e
organizar uma manifestação (prometida) enorme (mas reduzida a umas dezenas de
manifestantes) nas imediações do Parlamento, contra a presença do presidente do
Brasil na Casa da Democracia, transportou para a sessão parlamentar, em que o
chefe de Estado do país irmão discursava, pelas mãos e pelos gestos dos seus
deputados, o protesto de rua, alegadamente contra a corrupção. E o discurso do
líder, na sessão subsequente, a comemorativa da Revolução dos Cravos, foi
demolidor, sem um ponto construtivo (até disse que vivemos um “dos momentos mais negros”), apesar de citar a carta de São
Paulo aos Romanos.
Até
poderíamos ser levados a pensar que a corrupção, a insuficiência da Justiça, a
má governação, a fome e a precariedade na vida, no trabalho, na segurança, na
saúde, na habitação, na educação e na proteção social são marcas da democracia.
André
Ventura não conhece o país da ditadura. Caso contrário, teria vergonha de perorar
como o fez. A sua retórica, cheia de contradições (por exemplo, elogia os
operadores da Justiça por terem a coragem de dizer que o lugar do ladrão é a
prisão, mas deu como certo que os grandes indicados da praça nem serão
julgados), é destrutiva, irreal e não concretizável, no futuro, mas concita a simpatia
dos descontentes e dos detratores da democracia.
É
certo que a Iniciativa Liberal (IL) não tem feito, na sessão comemorativa da Revolução
dos Cravos, o que o Chega fez neste ano. Contudo, o seu posicionamento é, no
mínimo, ambíguo.
Na sessão comemorativa do 25 de Abril,
em 2022, Bernardo Blanco defendeu que falta “o inconformismo de Abril para
romper a estagnação” e que a guerra na Ucrânia evidencia que “a democracia é
difícil de conquistar mas fácil de perder”. E Abril, como disse, “confiou-nos
esta difícil missão: a de continuar a querer saber – da política, de Portugal,
da Europa e do Mundo –, a de continuar a querer saber do futuro.”
Neste ano, o novo líder da IL, Rui Rocha, recordou que, a 25 de abril de 1974, “Portugal
fez-se de novo outra vez” e que a revolução não tem donos. E defendeu que, “em
democracia, há sempre alternativa” e que “o vento da mudança já começou a
soprar”. Porém, na rede social Twitter, escreveu: “25 de Abril sempre.
Fascismo, comunismo e outros totalitarismos, jamais.”
E
é este segmento que a jornalista em referência considera que, na data em que
celebrámos “o fim do fascismo”, o presidente liberal veio “desagravá-lo”,
anotando que “os liberais não conseguem criticar o fascismo sem falar de
comunismo” e “fazendo uma equivalência entre ambos”.
Não
me vou meter, agora, nas diferenças e semelhanças entre comunismo e fascismo,
nem na precisão sobre o tipo de fascismo que a ditadura emoldurou. Contudo, é
de vincar que as gerações que viveram no tempo da ditadura e as que fizeram a revolução
bem sabem como era cruel a ausência e o sofrimento da juventude na guerra colonial,
como era difícil viver na dureza do trabalho para subsistir, na depauperação em
quase todos os aspetos da vida, com o ónus do silêncio, quando a palavra fosse de
crítica, e com a coação à palavra e ao aplauso, quando o poder o exigia. Sou
desse tempo, sem estradas, sem transportes, sem hospitais e sem escolas
pós-primárias. As novas gerações deviam conhecer esse tempo pelo estudo da
História.
Quanto
ao comunismo, é preciso dizer que nunca vivemos sob esse regime e que as
experiências conhecidas, nesse âmbito, tinham pouco de comunismo na forma
original.
Todavia,
como diz Carmo Afonso, devemos aos comunistas portugueses “uma luta fervorosa
contra o Estado Novo” e “a liberdade democrática”. Sabemos que “milhares de
comunistas foram presos e torturados e outros chegaram a perder a vida, por
serem a [principal] resistência ao regime”. Mas Rocha expôs anticomunismo numa
data também “de vitória para os comunistas”.
O povo, por “uma sociedade nova”, “confrontou
as classes dominantes”, pondo em causa o seu poderio. Ora, se recuasse no
tempo, a luta da IL, provavelmente, privilegiaria “os interesses económicos que
defende”, pondo-se no “lado do fascismo e do colonialismo, nunca no do povo”.
Se calhar, há muitos que terão os
mesmos objetivos, mas acantonam-se em partidos que, em termos programáticos, acreditam
na socialdemocracia e na democracia cristã, para não terem o rótulo de
liberais. São mais perigosos, pois, não dando o rosto, disfarçam as intenções.
Na página da IL, estão inscritos os
valores que enformam a missão do partido: a liberdade, a responsabilidade, a
civilidade, a comunidade e a igualdade. Porém, sublinha-se, no âmbito da
liberdade, a soberania individual. Por outro lado, a igualdade proclamada cinge-se
a iguais direitos políticos, ou seja, o direito ao voto e a, eventualmente, ser
eleito.
Ora, é certo que os direitos do cidadão
são uma peça fundamental na democracia. Todavia, não podemos cingir-nos aos
aspetos individuais, nem aos aspetos económicos. É de prosseguir na promoção do
exercício dos direitos sociais (ao trabalho, à saúde, à educação, à proteção social),
culturais e políticos, bem como zelar pela promoção e pela defesa do interesse
geral. O povo, que não se reduz a mero somatório de indivíduos dum território,
é que é o detentor do poder soberano, não cada pessoa considerada singularmente.
Por outro lado, embora as pessoas tenham direito à diferença, há que promover a
necessária igualdade económica, social e cultural.
Assim, se o 25 de Abril não pode ser
presa dos comunistas, também não o pode ser de socialistas, de socialdemocratas,
de democratas-cristãos ou de liberais. Na certa, a revolução não se fez para promoção
do liberalismo ou do neoliberalismo. Talvez fosse interessante revisitar o programa
do Movimento das Forças Armadas na redação anterior às emendas exigidas por
António de Spínola.
Como acentua Carmo Afonso, a postura
liberal “tem pouco que ver com a luta contra o fascismo”; é, antes, “um combate
declarado ao ideário socialista”. O que a relaciona ao 25 de Abril “é o pregão
da liberdade”. Mas a sua liberdade “é individual e económica”, que “desprotege
os mais fracos e que nada tem que ver com liberdade coletiva e material”. Ora,
não há liberdade sem “paz, pão, habitação, saúde e educação”. E, ao exigir
menos Estado e menos impostos, a IL é contra um Estado que assegure os direitos
económicos e sociais. É o velho “laissez faire, laissez passer”.
Por trás do pregão da
responsabilidade deveria estar a assunção das consequências dos atos praticados
por cada um, bem como as suas omissões. Contudo, sob a capa da obrigação de
cada um zelar pela conservação e pelo aumento do seu património, pode estar a
culpa de cada um pela sua pobreza e pela falta de “inteligência” para a sua capacitação
académica e profissional.
Rui Rocha posicionou-se contra a ida
de Lula da Silva ao Parlamento, no 25 de Abril, por causa das declarações do
estadista brasileiro sobre a guerra na Ucrânia. André Ventura fez o mesmo,
argumentando com a corrupção. Assim, é bom de entender que – diz Carmo Afonso –
“não é só o anticomunismo genético que une os dois partidos”, mas também uma
postura de equívoca democraticidade. Assim, a previsão de Cotrim de Figueiredo,
de que o novel líder a IL seria muito mais popular do que ele, não está a
cumprir-se.
Após as lideranças fortes de Carlos
Guimarães Pinto e de João Cotrim de Figueiredo, esperava-se que Rui Rocha fosse
mais claro, chegasse a mais públicos e trouxesse uma abordagem mais popular ao
partido. Porém, a sua liderança circunscreve-se a gerir o ruído à direita, em
parceria com o Chega e com algumas tiradas menos democráticas de alguns socialdemocratas.
E a democracia precisa de propostas
claras – à esquerda, ao centro e à direita (sem extremismos e sem arruaças) de governação
do país, para os eleitores poderem escolher, em tempo oportuno, entre as
diversas alternativas, que deveriam ter peso e credibilidade.
2023.05.01 – Louro de Carvalho
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