Independentemente
das simpatias ou das antipatias que se nutram pelo atual primeiro-ministro, é
de saudar a clarificação a que procedeu com a comunicação ao país, no passado
dia 2 de novembro, sobre o escândalo ocorrido no gabinete do ministro das
Infraestruturas, João Galamba, na sequência da exoneração de um dos seus
adjuntos. A minha distância partidária, apesar de pontuais simpatias ou
críticas por atitudes e por medidas deste ou daquele partido, permite-me refletir,
com à vontade, sobre o caso.
A
crítica persistente do Presidente da República (PR) à ação do governo e aos
seus elementos estava a tornar-se insustentável. Desde logo, a indicação de
linhas programáticas no discurso presidencial de tomada de posse do XXIII
Governo Constitucional, suportado pela maioria parlamentar do Partido
Socialista (PS); depois, a invectiva concreta contra uma das ministras, por
causa da execução das medidas do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR); a
referência pública ao mérito de antigos líderes partidários; a adjetivação com
que mimoseou esta maioria: requentada e desgastada; a tergiversação opinativa
sobre muitas das medidas tomadas pelo governo, para aliviar os cidadãos e as
empresas dos efeitos perversos da crise económico-social (boas, já não boas,
insuficientes, tardias, melão, lei-cartaz, PowerPoint,
etc.); a banalização do discurso sobre dissolução; a renacionalização das
eleições europeias, podendo ser ocasião para novo ciclo governativo; a
insatisfação por não haver ainda uma alternativa credível à atual maioria
parlamentar; e a declaração antecipada da necessidade de tirar consequências
políticas deste ou daquele caso atinente a governantes em concreto.
Dificilmente
se compreenderá que a tessitura dos comentários do PR ao relatório da
Inspeção-Geral de Finanças (IGF) sobre a saída de uma administradora da TAP
(Transportes Aéreos Portugueses), antecipando-se ao eventual juízo do Tribunal
de Contas (TdC).
E, no
aludido caso do escândalo ocorrido no gabinete de João Galamba, a excecional
parcimónia de palavras do chefe de Estado (que a primeira pessoa com quem iria
falar seria o primeiro-ministro) deram lugar à asserção de que a situação era
melindrosa e deveria ser tratada discretamente; e, mais tarde, se deveriam tirar
consequências (demissão) e que os leves sinais de crescimento económico podiam
não ser suficientes.
Do meu
ponto de vista, uma remodelação governamental deveria – e deve – ser feita.
Porém, não deve ser feita aos pingos, mas na hora certa. Aliás, o presidente do
Parlamento, Augusto Santos Silva, na sessão parlamentar comemorativa da
Revolução dos Cravos, fez o discurso do tempo, conjunturalmente necessário,
para cada uma das instituições: tempo para analisar, para programar, para
executar, para avaliar, para tomar decisões.
Na hora
certa – que entendo, na atual conjuntura, ser o conhecimento do relatório final
da comissão parlamentar de inquérito (CPI) à TAP – devem sair os/as governantes
cuja prestação é fraca ou pouco mobilizadora politicamente, por inabilidade ou
por inépcia das assessorias, como devem manter-se aqueles/as cuja prestação
política é nevrálgica. E, para que não se corra o risco de não mobilizar gente
para a ação governativa, devem as incompatibilidade e os impedimentos cingir-se
à intervenção direta os titulares de cargos públicos sobre assuntos dos
familiares, dos amigos e das respetivas empresas.
É de
efeito perverso, por exemplo, um candidato à governação ter de vender a sua
quota empresarial ou ser arrastado em processos do cônjuge. Criam-se artificial
e hipocritamente incompatibilidades; e pessoas que poderiam dar um contributo
temporário à política deixam espaço livre à elite do aparelho partidário, gente
que engoliu as cartilhas políticas, mas, o mais das vezes, sem grande experiência
profissional. E, com gente maioritariamente do aparelho, a governança torna-se
uma translúcida cápsula esférica, com dificuldade em concitar o apoio do
partido que sustenta o governo, partido que é postergado para um mundo à parte,
sem capacidade de escrutínio construtivo.
Compreende-se
– e é benéfica – a trovoada constante na Assembleia da República (AR), entre os
partidos políticos com assento parlamentar, pois foram eleitos, uns, para
apoiarem a governação, sugerindo emendas de percurso e de processo ou
acrescentando mais-valias, e outros, para enriquecerem o debate, ora
concordando, ora opondo-se fortemente, ora abstendo-se. Ao invés, é de rejeitar
o irritante chuvisco com que, em regime de quase permanência, o Palácio de
Belém envolve o governo, com a intermitência de algumas réstias de sol de
inverno.
O PR não
pode fazer coro com a oposição e, muito menos, substituí-la. Tem o poder da
palavra. E a sua palavra, quando devidamente pensada e se utilizada no momento
oportuno, é um poder simbólico de que podem surgir consequências concretas. Se
é usada sempre e em todas a parte, a propósito de tudo e de nada, perde
eficácia. E a propalada magistratura de influência pode reduzir-se a
comentário, a desgaste, a vingança ou a marcação de agenda política.
Com o professor e constitucionalista Vital Moreira, digo que me parece ser
esta “a primeira vez, no sistema político-constitucional de 1976, que um PR faz
saber publicamente que entende que um ministro deve ser demitido e que, depois,
vem anunciar oficialmente que discorda da opção do primeiro-ministro [PM] de
recusar o pedido de demissão, entretanto apresentado pelo próprio ministro em
causa”. E o constitucionalista critica o entendimento do PR, no sentido de que
“detém um poder de superintendência e [de] tutela política quotidiana sobre o
PM, quer para efeitos de recorrente crítica e de recomendações públicas sobre a
atividade governativa, quer para se permitir, como agora, censurar e propor
publicamente a demissão de ministros”.
Por mim, entendo que o PR pode não concordar com proposta de nomeação
(ainda não publicada) que o PM lhe apresente. Porém, como a exoneração é
assunto mais delicado, o PR não pode, ao menos publicamente, exigir a
exoneração de um governante. O que está em causa não é a confiança do PR no
governante, mas a do PM, que é o detentor da prerrogativa de proposta.
E o constitucionalista recorda: “Não existe nenhuma base constitucional
para tal poder de tutela presidencial, pois o
governo não deriva a sua legitimidade política das mãos do PR, nem é politicamente
responsável perante ele, mas somente perante a AR. De igual
modo, é domínio reservado ao primeiro-ministro manter ou não a confiança
nos seus ministros e decidir sobre eventual remodelação governamental.”
É sabido – ele o disse – que Mário Soares insistiu, em privado, com o então
PM Cavaco Silva para que propusesse a exoneração de uma das suas ministras, o
que o chefe do Governo não aceitou, estribado na sua ideia institucionalista.
Porém, quando Cavaco Silva propôs a Mário Soares a nomeação de um ministro para
vice-primeiro-ministro, o PR não aceitou a proposta. E tudo se passou no
segredo dos gabinetes do Palácio de Belém.
É claro que, agora, para respaldar algumas possíveis atitudes de Marcelo
Rebelo de Sousa, se fala do exemplo de Jorge Sampaio. Ora, sem desprimor pelo
exercício presidencial de Sampaio (não gostei da sua eleição, mas entendo que
foi um homem cordato, bom autarca e, globalmente, bom chefe de Estado), o ter
forçado, intempestivamente, embora em privado, a exoneração de dois ministros
de António Guterres, só abona a fraqueza deste PM. Fez bem, em minha opinião,
não aceitar a proposta, feita por Santana Lopes, de um determinado governante
para ministro dos Negócios Estrangeiros. Todavia, explicitar, no discurso de
posse de Santana Lopes como primeiro-ministro, que o governo ficava sob
vigilância em determinadas matérias, que especificou (por exemplo, Finanças e
Justiça), merecia que o PM, acabado de empossar, aproveitasse o discurso da
posse para colocar o lugar à disposição do PR.
E, sobretudo, está por explicar cabalmente a dissolução da AR quando o
governo tinha por base uma maioria parlamentar que não lhe criava problemas. Se
fosse dado mais tempo ao PM, provavelmente os eventuais conflitos suscitados
pelos barões do partido seriam resolvidos. Assim, não pode dizer-se outra
coisa, a não ser que o PR cedeu à opinião de comentadores e do próprio partido
de que era originário. Estou à vontade para o referir, pois o escrevi então.
Também penso que os episódios do gabinete de João Galamba puseram em causa
a imagem do governo e a credibilidade do ministro, pelo que o normal (e o que
eu esperava) era que houvesse demissão (por iniciativa do próprio) ou
exoneração (proposta pelo PM e decidida pelo PR).
Por isso, António Costa apresentou e reapresentou aos portugueses o formal
pedido de desculpa. Não obstante, por ter sido posto o carro à frente dos bois
(e em público), o PM fez bem em distinguir as responsabilidades dos dois
titulares de órgãos de soberania. Cabe ao PM propor a nomeação e a exoneração
de governantes e o PR decidir, e não o inverso.
No governo minoritário de António Costa, apoiado por três partidos à
esquerda do PS, o PR chamou a Belém o ministro das Finanças, por via do caso da
administração da Caixa Geral de Depósitos (CGD), vindo a dizer, posteriormente,
que o ministro se mantinha por causa da necessidade de obviar ao equilíbrio das
contas públicas; e, em discurso público, a partir de Oliveira do Hospital,
quase exigiu a saída da ministra da Administração Interna, que pediu a
demissão. No segundo governo minoritário de António Costa, foi clara a
exigência pública do PR da demissão do ministro da Administração Interna, mas
sem êxito, até que o governante foi indiciado em processo-crime. E, neste breve
período de governação maioritária, os mimos públicos a governantes em concreto
têm sido useiros e vezeiros.
Portanto, a ostensiva recusa da exoneração, querida pelo PR, e a não aceitação
do pedido de demissão do ministro, por parte do PM, revela que o chefe do Governo,
contra tudo e contra todos, resolveu não aceitar passivamente quaisquer passos
na ingerência de Belém na esfera governativa e de não continuar a suportar
discretamente, como até agora – diz Vital Moreira –, “o abuso de poder
presidencial, tornando-se conivente com a manifesta subversão do quadro constitucional
sobre o sistema de governo”.
Em meu entender, fê-lo tarde (devia tê-lo feito a seguir à entrevista à RTP1, de 9 de março – a da maioria
requentada). Mas fê-lo. Resta saber qual o impacto que esta clarificação terá sobre
Belém. Em todo o caso, cada um – PR e PM – assume as suas responsabilidades. Há
erros, mediocridade e incompetência, mas as reais instituições democráticas estão
a funcionar e o governo está a fazer trabalho. O PR quer dissolver a AR? Que o
faça, mas sem imputar responsabilidade e causas, a não ser a si próprio e à sua
eventual agenda política.
A procissão de comentadores já saiu do adro a classificar a decisão do PM de deslavado desafio ao chefe de Estado.
Até dizem que perdeu a cabeça. Porém, é o PR quem, sem precedente histórico no
atual regime constitucional, vem desafiando o exclusivo da autoridade do PM
sobre o governo, ao exigir, publicamente, a demissão de um ministro em
concreto.
A separação de poderes agradece, quando o que estava a
acontecer não era interdependência, nem cooperação, mas confusão e interferência,
para lá dos limites do razoável.
Se querem eleições, não temos pressa, mas estamos
dispostos a ir votar!
2023.05.03 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário