A 15 de maio, no âmbito de uma série de selos comemorativos do Vaticano, foi apresentado, pelo Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, o selo e o carimbo, para venda a 16 e a 17, comemorativos da XXXVII Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que acontecerá de 1 a 6 de agosto, em Lisboa.
Numa alusão
à caravela estilizada do Padrão dos Descobrimentos, o monumento português,
situado em Lisboa, na margem direita do rio Tejo, a evocar a expansão além-mar
de Portugal, o selo trocava a figura do Infante D. Henrique, o propulsor da
expansão, pela figura cimeira do Papa Francisco, o timoneiro da Igreja
missionária dos nossos dias, não a conduzir, propriamente, portugueses, com
qualquer objetivo de conquista ou combate proselitista, mas a conduzir jovens
na conquista solidária de si mesmos e do futuro de que são herdeiros. E, como
marca de Portugal, ostentava a nossa bandeira.
É
tradicional a imagem da Igreja figurada na barca de Pedro e era suposto que a
mensagem papal junto de jovens tivesse escolhido um monumento dos que figuram
na cidade que vai acolher a JMJ de 2023, enfatizando a importância de seguir um caminho de
discernimento, com prontidão, mas nunca ansiosos.
A emissão
deste selo comemorativo pelo Vaticano emparceira com a emissão do selo dos 825
anos da Dedicação da Catedral da cidade italiana de Spoleto; do selo do bicentenário
da União Lateranense; e do centenário da Comissão Permanente para a Proteção
dos Monumentos Históricos e Artísticos da Santa Sé. Por outro lado, a emissão
de uma série especial sobre a Europa é dedicada à paz, “o maior valor da
humanidade”, ao acolher a proposta do Operador Postal da Ucrânia, para mostrar
solidariedade ao país martirizado pela guerra. Serão dois selos dessa
iniciativa: um a reproduzir o momento em que Francisco, na Audiência Geral de 6
de abril de 2022, mostrou a bandeira ucraniana recém-chegada da cidade de
Bucha, recém-massacrada.
É de
recordar que a cidade de Lisboa foi anunciada, como local da JMJ em 2022, na
edição anterior, em janeiro de 2019, no Panamá, pelo cardeal Kevin Joseph
Farrell. Mas a pandemia fez com que o evento de Lisboa passasse de 2022 para
2023. O tema escolhido pelo Papa para a JMJ de Lisboa é “Maria levantou-se e
saiu apressadamente” (Evangelho de Lucas 1,39).
O Vaticano
descreve o monumento que evoca a expansão além-mar de Portugal, numa das
margens do Tejo, no bairro de Belém, em Lisboa: “O monumento – de 56
metros de altura e 46 metros de comprimento – foi construído em 1960, passados
500 anos da morte do Infante, para celebrar a era dos Descobrimentos
portugueses, como por exemplo, a chegada ao território brasileiro em 22 de
abril de 1500, considerado um dos momentos mais marcantes das grandes
navegações realizadas por eles, durante todo o século XV.” Da mesma forma como
o timoneiro D. Henrique lidera a tripulação na descoberta do novo mundo, assim,
no selo do Vaticano, o Papa conduz os jovens e a Igreja, representada pela
barca de Pedro, na descoberta desta “mudança de época” – como afirmou o
Pontífice por ocasião da Conferência Eclesial de Florença, sem se resignar a
navegar apenas em águas rasas, a ponto de ignorar a realidade do porto que os
aguarda.
Desenhado
pelo artista Stefano Morri, o selo retrata, assim, o Papa na proa de um barco,
inspirado na caravela do Padrão dos Descobrimentos, que conduz os jovens para o
futuro. No canto superior esquerdo, encontra-se o logótipo do encontro feito
pela jovem designer portuguesa
Beatriz Roque Antunez. Este delineia, sobre o fundo de uma grande cruz, o
dinamismo de Maria ao visitar Isabel, segundo o tema escolhido para o evento:
“Maria levantou-se e partiu apressadamente”.
Numa videomensagem
dirigida aos jovens, na preparação para a JMJ de Lisboa, o Papa exortou: “Neste
encontro, nesta Jornada, aprendei sempre a olhar para o horizonte, a olhar
sempre para além. Não levanteis uma parede diante da vossa vida. As paredes
fecham-te, o horizonte faz-te crescer. Olhai sempre para o horizonte com os
olhos, mas olhai sobretudo com o coração. Abri o coração a outras culturas, a
outros rapazes, a outras raparigas que vêm também a esta Jornada.”
O selo
(formato 48 x 32mm) tinha o valor facial de 3,10 euros com uma tiragem de
45 mil unidades, mas sem disponibilidade para venda online, conforme informava
o site oficial do departamento comercial de selos e moedas do
Vaticano. Já o carimbo comemorativo, em formato circular,
que representa o logotipo oficial da XXXVII JMJ de Lisboa, foi usado
pela agência dos correios “Arco delle Campane” (no ponto de vendas do
braço de Carlos Magno, na Praça São Pedro) nos dias 16 e 17 de maio.
***
Entretanto,
o selo levantou polémica em Portugal, pelo que o Vaticano o retirou da
circulação, sem qualquer explicação ou comentário. Por isso, escrevi os verbos
no pretérito imperfeito.
A
notícia da retirada de circulação do selo, foi avançada, na tarde de 17 de
maio, pelo jornal online 7Margens,
que tinha pedido a “um funcionário do Vaticano” que lhe comprasse um exemplar.
“No
posto de correios oficial da Praça de São Pedro, o empregado que atendeu disse
que era impossível fazer a venda, por ordens superiores, pois o mesmo iria ser
retirado”, referiu o jornal.
A
notícia da retirada de circulação do selo foi confirmada pela Rádio Renascença junto da Santa Sé, que
não apresentou quaisquer explicações.
Após
a divulgação da imagem do selo, foram vários comentários negativos publicados
nas redes sociais, que remetiam para o imaginário gráfico do Secretariado de
Propaganda Nacional do Estado Novo e para o colonialismo. Muitas
publicações nas redes sociais até recuperaram a capa do antigo Livro de Leitura
da 3.ª Classe, para fazer a comparação.
O
desenho do selo, lançado conjuntamente com um carimbo comemorativo, com o
logótipo da JMJ, é da autoria de Stefano Morri.
Questionado
no dia 16, a propósito da polémica gerada, o bispo português D. Carlos Moreira
Azevedo, delegado do Comité Pontifício para as Ciências Históricas, considerou
de “péssimo mau gosto” a imagem do selo comemorativo da JMJ lançado pelo
Vaticano.
Para
Carlos Azevedo, o selo “recorre a uma obra muito conotada” e “evoca epicamente
uma realidade pastoral que não corresponde a esse espírito”.
Também
no mesmo dia, a organização da JMJ esclareceu que o selo comemorativo apresentado
pelo Vaticano visava apenas “promover” o encontro de jovens com o Papa,
afastando leituras que o identificassem com o Estado Novo ou com o colonialismo
português.
Rosa
Pedroso Lima, porta-voz da Fundação JMJ Lisboa 2023, disse à agência Lusa que “o selo foi feito por um
ilustrador italiano, Stefano Morri, que tem trabalhado, muitas vezes, com os
serviços de numismática do Vaticano” e cuja leitura para a ilustração do selo é
“uma imagem do Papa num monumento de Lisboa, simbolizando, numa espécie de
alegoria, a barca de S. Pedro e o Papa conduzindo os jovens e a Igreja para uma
nova época”.
E
Rosa Pedroso Lima admite: “Haverá sempre várias leituras sobre o que quer que
seja numa obra de arte, seja ela um selo ou uma ilustração. Esta é a leitura
que o Vaticano faz e o objetivo é o de promover a Jornada Mundial da Juventude.”
***
Do meu
ponto de vista, foi pena ter-se eclipsado um ícone da mensagem e do objetivo
papal para esta JMJ, bem como uma visão forte e atual da missão da Igreja. É
impensável que o Vaticano tivesse como objetivo canonizar a expansão portuguesa
na totalidade, mormente no que ela teve de pior. O que se passou foi uma
leitura abusiva, por suposta visão nacionalista e obscurantista perpetuada no
monumento. Muito do volume crítico da opinião pública portuguesa ainda não se
redimiu do passado. Estão como os que não cantam “Grândola Vila Morena” por a
verem colada ao Partido Comunista. Se os comunistas rezarem “Pai Nosso”, os
cristãos deixarão de o rezar? Sei lá! Já deixaram perder para a esquerda a
fraternidade, a igualdade e a socialização…
Ora, a
descoberta europeia marítima de novas terras, nos séculos XV e XVI,
protagonizada por Espanhóis e por Portugueses, é um facto indesmentível: com
muitos erros (sobretudo à luz dos critérios da atualidade, mas também segundo certos
critérios coevos, incluindo alguns do Infante D. Henrique); e com
virtualidades, que as houve, do ponto de vistas dos contactos e miscigenações,
da permuta económica, do encontro de rotas alternativas. E, sobretudo, originou
um belo painel de países que falam ao Mundo em Língua Portuguesa, como há outro
painel de países falantes de Língua Espanhola.
Por mais
que nos pintemos, não somos raça pura lusitana. Há, na nossa constituição
somática, sangue azul, negro, judeu, árabe, latino, anglo-saxónico, indiano, etc.
Mal ou bem, é com este fenómeno ecuménico que temos de conviver e de avançar na
vida.
O pobre
padrão dos descobrimentos é vestígio do Estado Novo e do colonialismo. E a Ponte
25 de Abril é vestígio de quê? É óbvio que era de escolher um monumento de
Lisboa. Seria preferível o Papa ir como timoneiro de jovens num barco rabelo ou
num moliceiro? Mas um cacilheiro, de Lisboa, é símbolo “reconhecido” de quê? Pergunto-me
se os inocentes dos meus amigos doentes se recusam a ser atendidos, por
exemplo, no Hospital de São João ou no Hospital de Santa Maria. É que foram
edificados no Estado Novo. Os monumentos são fruto de uma época e é natural que
transportem a marca desse tempo, mas o tempo torna-os maiores que o tempo. Tive
pena que se aniquilasse à nascença um ícone da missão eclesial, graças a uma
leitura umbilical do símbolo.
O
silêncio do Vaticano, a este respeito, é mais eloquente do que uma explicação,
não tendo de alinhar com leituras parcelares da simbólica, nem de as
contrariar. A catolicidade tanto se faz pela palavra tonitruante como pelo silentium loquens. De minimis non curat praetor – é máxima latina.
2023.05.20 –
Louro de Carvalho
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