O 7.º domingo da Páscoa, em Portugal e nos países em que o
dia da Ascensão não é feriado, cede o passo à solenidade da Ascensão de Jesus
aos Céus, a qual sugere que, no termo do caminho percorrido na doação, está a
vida de comunhão com Deus, devendo nós, enquanto discípulos e seguidores de
Jesus, continuar o projeto libertador de Deus para os homens e para o Mundo.
Para tanto, é oportuno, desde já, convocar a esperança, a
confiança e o sentido acurado da missão. Com efeito, com a ascensão, Jesus não
emigrou, apenas deixou de ser permanentemente visível, não se prendendo aos
limites do Mundo. Como refere a primeira leitura, enquanto Jesus subia e depois
de deixarem de O ver, os apóstolos estavam de olhos fitos no céu – uma atitude
pascal –, mas dois homens vestidos de branco garantiram-lhes: “Esse Jesus, que
do meio de vós foi elevado para o Céu, virá do mesmo modo que O vistes ir para
o Céu.” Ele não nos deixou, não fugiu. A ascensão é para nos dar espaço à
oração e à ação, atitudes pascais também necessárias.
É, pois, firmados nesta atitude de esperança ou de espera
ativa que celebramos a morte do Senhor e proclamamos a sua ressurreição até que
Ele volte.
No Evangelho de Mateus, proclamado neste Ano A, Jesus garante
que está connosco, todos os dias, até à consumação dos séculos. Na verdade,
aquele Jesus que Mateus diz, quase no início do seu relato evangélico, ser o
Emanuel ou Deus-connosco, à despedida, no monte da Galileia, afirma-se, por Si
próprio e não por outrem, o Deus connosco: “Eu estou sempre convosco até ao fim
dos tempos.” Ora, esta promessa de garantia da permanente presença de Jesus
concita a nossa confiança, na certeza de que não estamos sós. E o Espírito
Santo que Ele nos enviou aninha em nós esta certeza inabalável e este afeto
confiante.
Além disso, a esperança e a confiança, que já seriam boas,
por si mesmas, impõem-nos a resposta positiva e ativa ao mandato do Senhor:
“Ide e ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo e ensinando-as a cumprir tudo o que vos mandei.” É a missão que
Ele nos confiou que urge e que exige de nós, saída (ide) afeto e universalidade
(todas as nações), ação (ensinai, batizai).
***
A primeira leitura (At
1,1-11) é um extrato de Atos dos
Apóstolos, livro que se dirige a comunidades que vivem em contexto de
crise. Na década de 80, cerca de 50 anos após a morte de Jesus, passara a fase
da expectativa pela vinda iminente do Cristo glorioso para instaurar o Reino e
havia certa desilusão. As questões doutrinais faziam confusão, a monotonia
favorecia a mediocridade e as comunidades instalavam-se, sem entusiasmo e sem
empenho. O mundo continuava igual e a esperada intervenção vitoriosa de Deus
parecia adiada.
É neste ambiente que se insere o trecho em referência. O
catequista Lucas adverte que o plano de salvação passou (após a ida de Jesus
para junto do Pai) para o coração e para as mãos da Igreja, animada e unificada
pelo Espírito. A construção do Reino é tarefa interminada, que é preciso
concretizar na história e que exige o empenho contínuo de todos os crentes. Os
cristãos são, pois, instados a redescobrir o seu papel, no sentido de
testemunhar o projeto de Deus, na fidelidade ao caminho que Jesus percorreu.
O relato é precedido por um prólogo que relaciona os Atos com o 3.º Evangelho, na referência
ao mesmo Teófilo, a quem o Evangelho foi dedicado, e na alusão a Jesus, aos
seus ensinamentos e à sua ação no mundo (tema fulcral do 3.º Evangelho). Além
disso, o prólogo apresenta os protagonistas do livro: o Espírito Santo e os
apóstolos, ambos vinculados com Jesus.
A seguir, vem o tema da despedida de Jesus. O narrador evoca
os quarenta dias que mediaram entre a ressurreição e a ascensão, durante os
quais Jesus falou aos discípulos “a respeito do Reino de Deus” (o que parece
contradizer o Evangelho, que apresenta a ressurreição e a ascensão no dia de
Páscoa). O número quarenta é, na certa, o número simbólico a definir o tempo
necessário para o discípulo aprender e repetir as lições do mestre. Temos,
portanto, aqui o tempo simbólico de iniciação ao ensinamento do Ressuscitado.
As palavras de Jesus vincam dois aspetos: a vinda do Espírito
e o testemunho que os discípulos são chamados a dar “até aos confins do Mundo”.
É a síntese da experiência missionária da comunidade de Lucas: o Espírito derramar-se-á
sobre a comunidade crente e dar-lhe-á a força para testemunhar Jesus em todo o
Mundo, desde Jerusalém a Roma. O catequista quer mostrar que o testemunho e a
pregação da Igreja entroncam em Jesus e são impulsionados pelo Espírito.
Por fim, vem o tema da ascensão, a interpretar de modo que,
através da roupagem dos símbolos, a mensagem apareça com toda a clareza.
Primeiro, temos a elevação de Jesus aos Céus. Não se trata,
literalmente, de descolagem física da Terra, mas de uma categoria teológica: a
ascensão é uma forma de expressar que a exaltação de Jesus é total e atinge
dimensões supraterrenas; é a forma literária de descrever o culminar de uma vida
vivida para Deus, reentrando na glória da comunhão com o Pai. Mas Jesus não
entra só como Deus, entra também com a nossa natureza humana. Tal como nasceu
Verbo de Deus feito homem, também agora reentra como Deus e homem.
Depois, surge a nuvem, que subtrai Jesus aos olhos dos
discípulos. Pairando a meio caminho entre o Céu e a Terra, a nuvem é, no Antigo
Testamento (AT), símbolo privilegiado da presença do divino. Ao mesmo tempo, esconde
e manifesta, sugerindo o mistério do Deus escondido e presente, cujo rosto o
Povo não pode ver, mas cuja presença se adivinha nos acidentes da caminhada.
Céus e Terra, presença e ausência são dimensões sugeridas a propósito de Cristo
ressuscitado, elevado à glória do Pai, mas a caminhar com os discípulos.
Nos discípulos a olhar para o céu, espelha-se a expectativa ansiosa
da comunidade pela segunda vinda de Cristo, para levar a cabo o projeto de
libertação.
Temos, finalmente, os dois homens vestidos de branco. O
branco sugere o mundo de Deus – o que indica que o testemunho dos discípulos
vem de Deus. Com efeito, os discípulos são chamados a continuar no mundo,
animados pelo Espírito, a obra libertadora de Jesus. Assim, o sentido
fundamental da ascensão não é não ficarmos a admirar a elevação de Jesus, mas
decidirmo-nos a seguir o caminho de Jesus, olhando para o futuro e entregando-nos
à realização do desígnio de salvação no Mundo.
***
O trecho do Evangelho (Mt
28,16-20) situa-nos na Galileia, após a ressurreição (embora não se diga se é
muito ou pouco tempo após a descoberta do túmulo vazio). Segundo Mateus, Jesus
– pouco antes de ser preso – marcara encontro com os discípulos na Galileia; e,
na manhã da Páscoa, os anjos que apareceram às mulheres, no sepulcro, e o
próprio Jesus, vivo e ressuscitado, que a interceta no caminho (mais uma vez a
categoria do caminho) renovam o convite a que os discípulos, droa vate irmãos,
se dirijam à Galileia, para o encontro com o Senhor.
A Galileia – região setentrional da Palestina – era uma
região próspera. A sua situação geográfica tornava-a o ponto de encontro de
muitos povos. Por isso, um número importante de pagãos integrava a sua
população. A coabitação de populações pagãs e judias fazia com que os judeus da
Galileia vivessem a religião de modo diferente dos judeus de Jerusalém e da
Judeia, pois a presença diária dos pagãos levava os galileus à suavização da
prática da Lei e à interpretação menos restritiva das regras que se referiam,
por exemplo, às impurezas rituais contraídas pelo contacto com os não judeus. E
isto levava os judeus de Jerusalém a desprezar os judeus da Galileia e a considerar
que da Galileia não podia sair nada de bom.
Todavia, foi na Galileia que Jesus viveu quase toda a sua
vida e lá começou a anunciar o Evangelho do Reino e a reunir à sua volta um
grupo de discípulos. Isto quer dizer que é preciso recomeçar desde o princípio
e entender o que Jesus disse e fez, à luz na nova realidade da ressurreição.
Por outro lado, na ótica de Mateus, o anúncio libertador de Jesus tem uma dimensão
universal: destina-se a judeus e a pagãos.
Mateus situa este encontro final entre Jesus ressuscitado e
os discípulos num “monte que Jesus lhes indicara”, que nós não sabemos qual é,
mas que Mateus terá ligado com a montanha da tentação e com a montanha da
transfiguração. De qualquer forma, o “monte” é sempre, no A T, o lugar onde
Deus se revela aos homens.
O trecho em referência divide-se em duas partes.
A primeira (vv 16-18) descreve o encontro com o Ressuscitado,
que Se revela aos discípulos, os quais O reconhecem e O adoram. Não obstante,
alguns ainda duvidaram. Isto mostra que a fé não é uma certeza científica e que
não exclui a dúvida. Porém, a dúvida constante dos discípulos – expressa em
vários momentos, ao longo do caminho para Jerusalém – agora, perde razão de
ser.
Ao reconhecimento e à adoração dos discípulos, segue-se a
manifestação do mistério de Jesus, que reflete a fé da comunidade: Jesus é o “Kýrios”,
que possui todo o poder sobre o Mundo e sobre a História. É “o mestre”, cujo
ensinamento será sempre a referência para os discípulos. É o Deus-connosco, que
acompanha, pari passu, a caminhada
dos discípulos pela História.
A segunda parte (vv 19-20) descreve o envio dos discípulos em
missão pelo Mundo. A Igreja é, essencialmente, uma comunidade missionária, cuja
missão é testemunhar no mundo a salvação que Jesus veio trazer aos homens e que
deixou no coração e nas dos discípulos.
Como notas da missão, sobressaem: a universalidade (para
todas as nações); as duas componentes, ensino e batismo (o discipulado começava
pelo catecumenato – palavras e gestos de Jesus – a que se seguia o batismo, a
selar a íntima vinculação do discípulo com o Pai, o Filho e o Espírito Santo e
a plena inserção na comunidade); e a presença perpétua de Jesus com os
discípulos. Esta última nota expressa a convicção – dos crentes da comunidade
mateana – de que Jesus ressuscitado está sempre com a sua Igreja,
acompanhando-a na sua marcha pela História, ajudando-a a superar as crises e as
dificuldades da caminhada. E, ao mesmo tempo, está junto do Pai a interceder
por nós.
***
Por fim, o trecho da segunda leitura (Ef 1,17-23), que aparece
na primeira parte da Carta aos Efésios, faz parte de uma ação de graças a Deus
pela fé dos Efésios e pela sua caridade para com todos os irmãos na fé. À ação
de graças, o Apóstolo une fervorosa oração a Deus, para que os destinatários
conheçam “a esperança a que foram chamados”. A prova de que o Pai tem poder
para realizar a esperança de conferir aos crentes a vida eterna como herança é
o que Ele fez com Jesus Cristo: ressuscitou-O e sentou-O à sua direita,
exaltou-O e deu-Lhe a soberania sobre todos os poderes angélicos (Paulo
preocupa-se com a tendência de alguns cristãos para a excessiva importância aos
anjos, pondo-os até acima de Cristo). A soberania sobre os anjos estende-se à
Igreja, o corpo de que Jesus Cristo é a cabeça.
A ideia de que a comunidade cristã é um corpo – o “corpo de
Cristo” – formado por muitos membros, já havia aparecido nas “grandes cartas”,
acentuando, sobretudo, a relação dos vários membros do corpo entre si. Porém, mas,
nas “cartas do cativeiro” (e esta carta é uma delas), Paulo retoma a noção de
corpo de Cristo, para refletir sobre a relação da comunidade com Cristo. Há,
aqui, dois conceitos significativos para definir a relação entre Cristo e a
Igreja: o de cabeça e o de plenitude (em grego, “plêroma”).
Dizer Cristo como cabeça da Igreja significa que os dois
formam uma comunidade indissolúvel e que há, entre os dois, uma comunhão total
de vida e de destino. Porém, Cristo é o centro à volta do qual o corpo se
articula, a partir do qual e em direção ao qual o corpo cresce, se orienta e se
constrói. Cristo é a origem e o fim desse corpo. Ao mesmo tempo, a Igreja-corpo
está submetida à obediência a Cristo-cabeça: só de Cristo a Igreja depende e só
a Ele deve obediência.
Dizer que a Igreja é a plenitude de Cristo significa dizer
que nela reside a totalidade de Cristo. Ela é o recetáculo pelo qual Cristo Se
torna presente no Mundo e através do qual realiza, todos os dias, o plano de
salvação em favor dos homens. Assim, Cristo enche o mundo e atrai a Si o
universo inteiro, até que o próprio Cristo “seja tudo em todos”.
Em suma, a ascensão é, da parte de Cristo, poder, presença,
intercessão; da parte da Igreja, unida a Cristo, é esperança, confiança,
missão. E importa que a Igreja fale mais de Jesus do que de si.
2023.05.21
– Louro de Carvalho
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