O Presidente da República (PR) promulgou, a 8 de
maio, o decreto-lei sobre recrutamento
e colocação dos professores. E, como vem sendo hábito, fê-lo com reservas e
tecendo considerações que, a serem levadas a sério, deveriam levar ao veto
presidencial.
Na verdade, uma nota da Presidência da República,
daquele dia, dá conta de que “a Casa Civil
da Presidência da República tem acompanhado, de muito perto, em contacto com o
Governo e recebendo as Associações Sindicais, quer o presente regime legal,
quer a matéria, ainda pendente, da recuperação faseada do tempo de serviço dos
docentes”.
É estranho
que, pública e formalmente, infrinja a separação de poderes. Entendo que uma
cooperação discreta entre altos funcionários afetos ao PR e altos funcionários
afetos ao governo ocorra a propósito de todas as matérias, embora as
assessorias civis e militares, neste âmbito, devam funcionar no aconselhamento
ao PR, na análise tendente à promulgação ou ao veto (político ou constitucional
– este mediante apreciação do Tribunal Constitucional que acorde na
inconstitucionalidade). Não obstante, a
nota vai mais longe, especificando que, no atinente ao diploma em causa, “foram
formuladas várias sugestões e, também, apresentada proposta concreta sobre a
vinculação dos professores, no sentido de a tornar mais estável, sem, com isso,
introduzir desigualdades adicionais às já existentes”.
Ora, se o
referido acompanhamento, explicitamente confessado, já concitava suspeitas, as sugestões
feitas e a “proposta concreta” apresentada “sobre a vinculação dos professores”
denotam ingerência dos serviços do PR nos do executivo – o que nunca tinha
sucedido, mesmo com este chefe de Estado, de forma tão despudorada. É verdade
que todos os PR, em democracia, exerceram pressões sobre os governos, mas todos
se limitaram à discrição dos gabinetes e a mensagens públicas de teor genérico
ou a declarações prévias a dissolução parlamentar ou a propósito de matérias
sobremodo relevantes, como foram os casos dos vetos da Lei da Rádio, da Lei dos
Coronéis (ambas com Mário Soares) e do Estatuto Político-Administrativo dos
Açores (com Mário Soares e com Cavaco Silva). Porém, Marcelo Rebelo de Sousa
(MRS), que nos habituou a comentar os diplomas que promulga, analisando os prós
e os contra, que se arvorou ao direito/dever de, publicamente, chamar ministros
a capítulo e, por várias vezes, foi dando sinais – explícitos ou implícitos – da
necessidade de demissão deste ou daquele governante, tornou-se useiro e vezeiro
a declarar apoios ao governo, bem como distanciamentos e críticas. E, desta vez,
ultrapassou-se a si mesmo. Não fica bem ao PR colocar-se ao lado dos que
reivindicam, ainda que os deva ouvir e possa cooperar na mediação. E,
principalmente, nunca deve dar sugestões ou apresentar propostas formais de
decreto ao governo ou de lei ao Parlamento, muito menos sentir-se desobedecido
ou ultrapassado, por as suas sugestões e propostas não serem seguidas.
A nota
refere que o chefe de Estado promulgou o diploma do governo, “tendo em atenção
a publicação pelo Governo, no Diário da República, da Portaria n.º 111-A/2023,
de 26 de abril, que abre concurso apenas para dois mil professores, para o ano
próximo, fundada na versão da lei vigente e porque a nova lei não foi
promulgada nem publicada e, portanto, não entrou ainda em vigor”. Ora, a dita
portaria parece que abre oito mil vagas e não apenas duas mil.
Mais refere
que “adiar a promulgação” ou recusá-la “representaria adiar as expetativas de
cerca de oito mil professores” e deixaria sem consagração reivindicações
pontuais já aceites.
No entanto, a Federação Nacional dos Professores
(Fenprof) diz que a generalidade do diploma só produz efeitos no ano letivo de
2024-2025, vincando que a não aprovação não poria em causa oito mil
professores, pelo que “a não promulgação poderia abrir um novo espaço de
negociação, do qual poderia resultar a eliminação daquelas que a Fenprof
considerou como linhas vermelhas”. Por isso, avisou que rever o diploma passa a
ser um objetivo da luta dos professores.
Já que se
meteu a fundo na questão, o PR faz bem em esperar “que o diálogo com os
professores prossiga, nomeadamente quanto ao futuro dos professores agora
vinculados por um ano, assim como quanto à recuperação faseada do tempo docente
prestado e ainda não reconhecido”.
E termina
com uma observação em que parece ter razão: “Importaria que o ano letivo de
2023-2024 não fosse, ao menos para alguns alunos e famílias, mais um ano
acidentado, tal como foram, por razões muito diversas, os três que o
precederam.”
Não
obstante, devo dizer que os professores têm toda a razão em bater na exigência
da contagem de todo o tempo de serviço que esteve congelado. Ninguém está a
pedir dinheiro, no imediato. A progressão é um ato de justiça. Em alternativa,
poderá beneficiar-se quem o preferisse em desconto de anos para a idade pessoal
da reforma/aposentação. Há tanta gente que não beneficiou do descongelamento do
tempo de serviço (aposentados, aceitantes da rescisão de contrato por acordo e
falecidos). E, quanto a receios inerentes ao diploma têm razão, nomeadamente
quanto à possível decisão discricionária de colocação em agrupamento
diferentes.
Todavia, é
estranho que o PR, publicamente, se tenha implicado tão claramente na questão.
E também a diversificação das formas de luta e o seu prolongamento no tempo só
se entendem pela inusitada implicação e apoio de pessoas e de organizações que
nunca se envolveram em qualquer tipo de luta reivindicativa. Isto não revela
maior furor sindicalista, mas o refinamento da convergência contra o atual
governo, sobretudo da direita política.
***
Vital
Moreira, professor e constitucionalista chama à atitude presidencial, vertida
no diploma em causa, “modo de litígio institucional”. Efetivamente, no blogue
“Causa nossa, sob a epígrafe “O que o Presidente não deve fazer (36)”, diz que
a postura do PR, no diploma que entendeu “não poder vetar”, culmina “uma
prática inovadora desviante do atual PR que, desde o início, recorreu à promulgação com reservas, demarcando-se
dos atos legislativos, como se, de outro modo, fosse considerado politicamente
corresponsável por eles”.
Tal postura
não é plausível, pois, “constitucionalmente, o PR não compartilha do poder
legislativo” com a Assembleia da República (AR), nem com o governo. Como “as
leis não carecem de sanção (assentimento) do chefe do Estado” ao
invés do “que sucedia na monarquia constitucional”, o “poder de veto presidencial
é um puro ‘poder negativo’, obrigando o legislador a reconsiderar o diploma”
(no caso da AR), pelo que, no dizer do constitucionalista, “a promulgação é um
ato ‘por omissão’, não traduzindo concordância política presidencial”.
Assim, o veto
de diploma da AR “tem de ser justificado, mas a promulgação, não”. Já um
diploma do governo pode ser vetado sem devolução ou sem explicação, que, do
ponto de vista curial, deve ser dada. Por isso, para Vital Moreira, a “promulgação com reservas”, em que o PR “regista
objeções políticas aos diplomas que promulga, como se fosse
colegislador, não tem cabimento constitucional, nem político”. É, diz o
constitucionalista, “um manifesto abuso
de poder”
O caso é especialmente
grave, porque o PR denuncia oficialmente o governo por não ter seguido uma
pressão presidencial para alterar o diploma, incluindo uma “proposta concreta”,
como se o executivo tivesse obrigação de ceder, tal como fez na proposta de
demissão do ministro Galamba, em que denunciou, publicamente, a rejeição das
suas propostas, “como se fossem um desafio à sua autoridade”. Ora o governo não
tem obrigação de seguir os conselhos presidenciais, “quando se trata de
ingerência nos poderes constitucionalmente reservados ao executivo, seja a
condução política do País, seja a demissão de ministros, seja o exercício do
poder legislativo, pelos quais ele não responde politicamente perante o PR, mas
somente perante a AR e [perante] o país”.
Apesar de ser
uma das traves-mestras do Estado de direito constitucional, diz Vital Moreira,
“a separação de poderes não goza de grande consideração em Belém”. Por mim,
digo que Belém assume a vertente epistémica da separação de poderes (fala na
separação tantas vezes), mas não tem em conta a sua vertente deôntica (tantas
vezes a contradiz por atos).
No caso dos
professores, MRS deu “foros oficiais à sua ideia
de o Governo dever ceder na negociação em curso com os professores”, aceitando “uma
recuperação faseada do tempo docente prestado
e ainda não reconhecido”, uma linha vermelha reiterada pelo governo.
Além de não ter precedente, esta deliberada intromissão “no poder negocial do
Estado numa negociação sindical em curso é “uma inaceitável ingerência na
condução da política governamental” e “uma grosseira provocação política ao
Governo” ou a entrada “em modo de litígio institucional aberto contra o governo”,
já sem poupar as armas.
***
MRS quer
seguir a linha dos anteriores PR. Em segundo mandato, todos quiseram levar
avante a sua ideia de governação e “infernizaram” os respetivos executivos.
Ramalho
Eanes, a partir do Palácio de Belém patrocinou a criação de um novo partido,
que não governava, quando o PR terminou o mandato, mas tinha assento
parlamentar com 18% dos votos e protagonizou a moção de censura ao governo
minoritário de Cavaco Silva, secundada pelo Partido Socialista (PS). Mário
Soares, reeleito com apoio do Partido Social Democrata (PSD), não descansou nas
diatribes com o governo (sem se intrometer, publicamente, no processo
legislativo e no da nomeação de membros do executivo), mas deixou no governo o
PS, que fundara. Jorge Sampaio – que se sentiu obrigado a dissolver a AR,
porque António Guterres se demitiu na sequência da derrota em eleições
autárquicas, recusou a dissolução aquando da saída de Durão Barroso para a
Comissão Europeia, apressou-se a dissolver a AR, contra a maioria absoluta que
suportava o executivo de Santana Lopes, e deixou o PS a governar com maioria
absoluta. Cavaco Silva conviveu pacificamente com a maioria absoluta do PS,
mas, na tomada de posse em segundo mandato, apelou ao sobressalto democrático
e, dada a demissão de José Sócrates, dissolveu a AR e o seu partido – o PSD –
ficou a liderar o governo maioritário de Passos Coelho/Paulo Portas. Ter-se-á
adiantado uns meses naquela decisão, pelo que saiu de Belém com o governo nas
mãos de António Costa, que, não tendo vencido as eleições, conseguiu formar
governo com o arranjo parlamentar de então. Saiu deixando, a contragosto, o PS
a governar.
Marcelo
Rebelo de Sousa fez questão de apoiar o mecanismo de governo que o seu
antecessor se sentiu obrigado a aceitar. E, explicava daqui, divergia dali, mas,
em termos globais, estava a favor do governo, para levar a legislatura até ao
fim. As eleições de 2019 deram maioria relativa ao PS e tudo iria bem (a
legislatura terminaria em 2023, ficando o PR com margem de manobra para ajudar
o seu partido). Porém, MRS, cujo segundo mandato foi lançado e apoiado pelo PS,
prometeu a dissolução da AR, caso houvesse rejeição da proposta do Orçamento do
Estado para 2022. O PS ganhou as eleições com maioria absoluta. Ora, se a
legislatura for até ao fim, já MRS não é o Presidente, tendo deixado Belém sem
colocar o seu PSD a governar.
Como a
AR teve a sua primeira reunião em fins de março, devido ao recurso sobre a
votação num círculo eleitoral, MRS teve tempo de pensar. Na posse do governo,
fez o discurso das linhas com que vinculou o executivo (o que Jorge Sampaio fez
a Santa Lopes) e acenou com a dissolução da AR para 2024, caso houvesse mudança
de chefe de governo. E vai daí a primar, em público, por comentários, críticas,
invetivas e intromissões na área governativa, como se vê.
António
Costa, de início, gostou; depois, tolerou; mais tarde, explicava-se; e, por
fim, demarcou-se, remetendo-se à estrita separação de poderes. E a vigilância
presidencial galopa.
2023.05.10 –
Louro de Carvalho
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