A Solenidade do Pentecostes celebra a efusão do Espírito Santo
sobre a Igreja, oferecendo-lhe a plenitude do dom de Deus. Não pode mais a
Igreja colocar-se a jeito, a ponto de Jesus a interpelar: “Se conhecesses o dom
de Deus e quem é Aquele que te diz: ‘Dá-me de
beber’…”.
Podemos, numa linha de distração, pensar que o Espírito Santo
desceu sobre os doze apóstolos e sobre Maria, a mãe de Jesus e a rainha dos
apóstolos, esquecendo que a Igreja nascente, a que se refere o livro dos Atos dos Apóstolos, estava reunida em oração
no Cenáculo, que o corpo apostólico estava restabelecido com a eleição de
Matias para a vaga deixada por Judas Iscariotes, que estavam a participar outras
mulheres e outros discípulos. Só que as línguas de fogo apenas de visualizaram
em Maria e nos Doze. Não obstante, Pedro, no seu discurso alarga o fenómeno a
todos os filhos e filhas de Deus, em conformidade com a profecia de Joel.
Razão tinha, por isso, o sacerdote que, neste dia, na Igreja
da Misericórdia de Santa Maria da Feira, clamava que o Espírito Santo não é propriedade
do Papa, dos Bispos ou dos sacerdotes e que ninguém pode ter a veleidade de
fechar a portas do coração ao Espírito de Deus.
Efetivamente, o Pentecostes é a confirmação da Páscoa, é o
selo de Deus sobre a paixão glorificadora do Filho, é a confirmação de toda a
caminhada da aprendizagem pascal por parte dos novos discípulos, que somos
todos nós. Sobre todos os discípulos derramam-se os sete dons do Espírito Santo
(sapiência, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus),
a terceira Pessoa da Santíssima Trindade, que nos santifica – que mais não são
do que a plenitude (“plêroma”) ou a totalidade do dom de Deus – todo e em todos
os crentes.
***
O Evangelho, neste Ano A (Jo
20,19-23), apresenta-nos a comunidade cristã, reunida à volta do Ressuscitado.
Esta comunidade, de pusilânime e tímida, passa a ser comunidade viva, recriada,
nova, a partir do dom do Espírito, que leva superar o medo e as limitações e a
dar testemunho, no Mundo, do amor que Jesus viveu até às últimas consequências.
O trecho em referência, já proclamado no segundo domingo da
Páscoa situa-nos no cenáculo, no dia da ressurreição. A comunidade ainda não se
tinha encontrado com Cristo ressuscitado e não tomara consciência das
implicações da ressurreição. Era comunidade fechada, insegura. Precisava de fazer
a experiência do Espírito, para, depois, assumir a sua missão no Mundo e dar
testemunho do plano libertador de Deus, em Jesus.
Enquanto Lucas, nos Atos
dos Apóstolos, narra a descida do Espírito sobre os discípulos no dia do
Pentecostes, 50 dias após a Páscoa (por razões teológicas e a fazer coincidir a
descida do Espírito com a festa judaica do dom da Lei e da constituição do Povo
de Deus), João situa-nos no fim da tarde da Páscoa, para contemplarmos a receção
do Espírito pelos discípulos, ainda sem reflexos no exterior. No Pentecostes, a
Igreja sai para a praça! Põe-se em marcha!
João releva a situação da comunidade. O “anoitecer”, as
“portas fechadas”, o “medo” são o quadro que espelha a situação da comunidade
desamparada em ambiente hostil e, portanto, desorientada. É uma comunidade que
perdeu as suas referências e a sua identidade e que não sabe, agora, a que se
agarrar. Porém, Jesus aparece “no meio deles”.
Os discípulos, experienciando o encontro com Jesus
ressuscitado, redescobrem o seu centro, a coordenada fundamental à volta do
qual a comunidade se constrói e toma consciência da sua identidade, pois a
comunidade cristã só existe, se está centrada em Jesus ressuscitado. Jesus saúda-os,
desejando-lhes a paz (“shalom”, em hebraico), um dom messiânico. E, aqui significa
a transmissão da serenidade e da confiança que permitem aos discípulos vencer a
insegurança.
Em seguida, Jesus “mostrou-lhes as mãos e o lado”, sinais que
evocam a entrega de Jesus, o amor total expresso na cruz. É nestes sinais que
os discípulos reconhecem Jesus, o mesmo de sempre. O facto de esses sinais
permanecerem no Ressuscitado, indica que Jesus é, de forma permanente, o
Messias cujo amor se derrama sobre os discípulos e cuja entrega alimenta a
comunidade.
O gesto de Jesus de soprar sobre os discípulos reproduz o
gesto de Deus ao comunicar a vida ao homem de argila (João utiliza o mesmo
verbo do texto grego de Gn 2,7). Com
o sopro de Deus, o homem tornou-se um ser vivente; com este sopro, os
discípulos adquirem a vida nova e nascem como homens novos. Possuindo a vida em
plenitude, estão capacitados – como Jesus – para fazerem da vida dom de amor
aos homens. Assim, de discípulos Jesus faz apóstolos: “Como o Pai Me enviou,
assim Eu vos envio.” E, animados pelo Espírito (“pneûma”), formam a nova
comunidade da aliança e são chamados a testemunhar, em gestos e em palavras, o
amor de Jesus.
Por fim, Jesus explicita a missão dos discípulos: a
eliminação do pecado. As palavras de Jesus não significam que os discípulos
possam ou não – conforme os seus interesses ou a sua disposição – perdoar os
pecados, mas são chamados a testemunhar no mundo a vida que o Pai oferece a
todos os homens. O perdão dos pecados é o objetivo de Jesus, o Cordeiro de Deus
que tira o pecado do Mundo, como será o objetivo da Igreja, que deve semear o
perdão e não anatematizar.
Paz, serenidade, vida nova, Espírito Santo, apostolado,
perdão são cambiantes do dom ou fruto da Páscoa em Jesus e no Espírito Santo (“pneuma
hágion”). Quem aceitar este dom será integrado na comunidade de Jesus; quem não
o aceitar, continuará em rotas de egoísmo e de morte. A comunidade, animada
pelo Espírito, será a mediadora (não a dona) desta oferta de salvação.
***
A 1.ª leitura (At 2,1-11) sugere que o Espírito é a lei nova
que orienta a caminhada dos crentes, que gera o novo Povo de Deus e faz com que
os homens sejam capazes de ultrapassar as diferenças e de comunicar, unindo os
povos de todas as etnias e culturas na comunidade de amor.
A apresentar a sua catequese, Lucas recorre às imagens, aos
símbolos, à linguagem poética das metáforas, que é preciso descodificar para
chegarmos à interpelação essencial do que esta catequese nos deixa. Uma interpretação
literal desta narrativa far-nos-ia reparar na roupagem exterior e ignorar o
fundamental. Ora, o interesse fundamental de Lucas é apresentar a Igreja como a
comunidade que nasce de Jesus, que é assistida pelo Espírito e chamada a
testemunhar aos homens o projeto libertador.
Lucas situa a experiência
do Espírito no dia de Pentecostes, festa judaica celebrada 50 dias após a
Páscoa. Originariamente, era a festa agrícola em que se agradecia a Deus a
colheita da cevada e do trigo; mas, no século I, tornou-se a festa histórica
que celebrava a aliança, o dom da Lei no Sinai e a constituição do Povo de
Deus. Ao situar neste dia o dom do Espírito, Lucas sugere que o Espírito é a
lei da nova aliança – pois Ele, no tempo da Igreja, dinamiza a vida dos crentes
– e que, por Ele, se constitui a nova comunidade do Povo de Deus, a comunidade
messiânica, que viverá da lei inscrita, pelo Espírito, no coração de cada
discípulo (cf Ez 36,26-28).
Na narrativa da manifestação do Espírito, o Espírito Santo é
apresentado como “a força de Deus”, através de dois símbolos: o vento de
tempestade e o fogo – símbolos da revelação de Deus no Sinai, quando Deus deu
ao Povo a Lei e constituiu Israel como Povo de Deus. Estes símbolos evocam a
força irresistível de Deus, que vem ao encontro do homem, comunica com o homem
e que, dando ao homem o Espírito, constitui a comunidade de Deus.
A força de Deus é apresentada como língua de fogo. A língua é
a expressão da identidade cultural de um grupo humano e a sua maneira de
comunicar, estabelecendo laços duradouros entre as pessoas, criando comunidade.
Temos, aqui, o reverso de Babel (cf Gn 11,1-9):
lá, os homens escolheram a ambição desmedida que gerou a dispersão e o
desentendimento; aqui, regressa-se à unidade, à relação, à construção da
comunidade capaz do diálogo. Surge a Humanidade unida pela partilha da mesma
experiência, fonte de liberdade, de comunhão. A comunidade messiânica é a
comunidade onde a ação de Deus, pelo Espírito, transforma as relações humanas,
levando à partilha, à relação, ao amor.
É neste enquadramento que devemos entender os efeitos da
manifestação do Espírito: todos “os ouviam proclamar, na sua própria língua, as
maravilhas de Deus”. O elenco dos povos convocados e unidos pelo Espírito
atinge representantes de todo o mundo antigo. A todos deve chegar a proposta de
Jesus, que faz de todos os povos uma comunidade de amor e de partilha.
Ouvir na própria língua as maravilhas de Deus outra coisa não
é do que a comunicação do Evangelho, que gera a comunidade universal. Sem
deixarem a sua cultura e as suas diferenças, todos os povos escutarão Jesus e
podem integrar a comunidade da salvação, onde se fala a mesma língua e onde
todos podem experimentar o amor e a comunhão, que tornam irmãos povos tão
diferentes. O essencial é a experiência do amor que, no respeito pela liberdade
e pelas diferenças, deve unir todas as nações da terra.
O Pentecostes dos Atos dos
Apóstolos é a página programática da Igreja e anuncia o que será o
resultado da ação das testemunhas de Jesus: a humanidade nova, a antiBabel,
nascida da ação do Espírito, onde todos serão capazes de comunicar e de se
relacionar como irmãos, porque o Espírito reside no coração de todos como lei
suprema e fonte de amor e de liberdade.
***
Na segunda leitura (1Cor
12,3b-7.12-13), Paulo avisa que é o Espírito, a fonte de onde brota a vida da
comunidade cristã, quem concede os dons que a enriquecem a comunidade e fomenta
a unidade de todos os membros.
Por isso, os dons não podem ser usados para benefício
pessoal, mas postos ao serviço de todos.
A comunidade cristã de Corinto era viva, mas não exemplar no atinente
à vivência do amor e da fraternidade: as divisões, as contendas e as rivalidades,
perturbadoras da comunhão, constituíam contratestemunho. A polémica dos
carismas (dons concedidos pelo Espírito a algumas pessoas ou grupos para
proveito de todos) agudizava-se: os supostos detentores desses dons consideravam-se
os eleitos de Deus, apresentavam-se como iluminados e assumiam atitudes de
autoritarismo, que prejudicavam a fraternidade e a liberdade; e os que não
tinham sido dotados destes dons eram desprezados e considerados como cristãos
de segunda.
Na Primeira Carta aos Coríntios, Paulo corrige, admoesta, dá
conselhos e mostra a incoerência destes comportamentos, incompatíveis com o
Evangelho.
No trecho em referência, acha
que é preciso saber ajuizar da validade dos dons carismáticos, para que não se
fale em carismas a propósito de comportamentos que pretendem garantir os
privilégios de certas figuras. O verdadeiro carisma é o que leva a confessar
que “Jesus é o Senhor” (não há oposição entre Cristo e o Espírito) e que é útil
para o bem da comunidade. Com efeito, é o Espírito quem nos move a rezar e a
dizer: “Jesus é o Senhor”. E é preciso que os membros da comunidade tenham
consciência de que, apesar da diversidade de dons, é o mesmo Espírito que atua
em todos; apesar da diversidade de funções, é o mesmo Senhor Jesus que está
presente em todos; apesar da diversidade de ações, é o mesmo Deus que age em
todos. É o Espírito Santo, que habita em nós, quem edifica a unidade do corpo
na diversidade de membros, de dons, de funções e de ações.
Não há cristãos de primeira e de segunda. O que é importa é
que os dons resultem no bem de todos e sejam usados, não para melhorar a
própria posição, mas para o bem de toda a comunidade.
E Paulo compara a comunidade cristã a um corpo com muitos
membros. Apesar da diversidade de membros e de funções, o corpo é um só. Em
todos os membros circula a mesma vida, pois todos foram batizados num só
Espírito e “beberam” um único Espírito (alusão à agua viva que Jesus prometeu à
Samaritana e que disponibilizou para todos os que acreditassem)
O Espírito é, pois, apresentado como Aquele que dá vida ao
“corpo” de Cristo e o alimenta. E, assim, fomenta a coesão, dinamiza a
fraternidade e é o responsável pela unidade desses diversos membros que formam
a comunidade. Além disso, é Ele que, ao longo do tempo, inspira novas formas de
oração, novos modos de pregação e novos movimentos na Igreja e até novos modos
do ser e do agir da Igreja. Há que fazer sempre o côngruo discernimento, antes
de uma rejeição.
***
Este, sem deixar de ser o tempo do Pai e do Filho, é, por excelência
o tempo do Espírito Santo, com o qual a Igreja deve viver em parceria, na
referência ativa ao Senhor Jesus.
Mais do que encerrar o Tempo Pascal, o Pentecostes leva a Páscoa
ao quotidiano da vida!
2023.05.28 – Louro de Carvalho
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