O Conselho da Europa (CoE), de que Portugal faz
parte, há 47 anos, esteve reunido nos dias 16 e 17 de maio, em Reiquiavique, na Islândia, tendo a guerra da
Ucrânia como impulsionadora e a principal prioridade na agenda. Portugal fez-se
representar pelo primeiro-ministro António Costa, que emparceirou com os
representantes dos outos 45 Estados-membros.
Esta cimeira já estava nos planos,
mas a guerra na Ucrânia foi, segundo os observadores, o gatilho para a
marcação. Em quase 75 anos de história,
este foi apenas o quarto encontro ao mais alto nível da mais antiga
instituição europeia em funcionamento, que é a “principal organização de defesa
dos direitos humanos no continente”.
Em Reiquiavique, a Ucrânia foi “a prioridade número um, dois e
três da agenda”, como apontara, previamente, Tiny Kox, presidente da Assembleia
Parlamentar do CoE, em entrevista de antevisão a jornalistas portugueses, em
Estrasburgo no final de abril. “O
ponto principal será como podemos reafirmar a nossa solidariedade, a
solidariedade de toda a Europa.”
E a expectativa era que tal
demonstração resultasse de unanimidade. A este respeito, dizia, então, disse
Bjørn Berge vice-secretário-geral do CoE: “Creio que, em princípio, veremos todas as decisões levadas à cimeira,
assim como as declarações, a serem adotadas por consenso. Há também a
possibilidade de adotá-las por voto, mas a nossa esperança e intenção é que
possamos mostrar unidade, que todos os 46 Estados-membros concordam com os
textos.”
É o poder do Conselho. Dizia Tiny
Kox: “Não temos exército e não temos dinheiro. Mas temos o nosso conjunto de
regras com o qual todos os Estados-membros se comprometeram”.
E Bjørn Berge vincava o mérito desta
via: “Sem o Conselho da Europa, sem o Tribunal dos Direitos do Homem, sem todo
o sistema de convenções e toda a maquinaria que construímos na Europa, a Europa
teria parecido muito, muito diferente, quando se trata de proteger os direitos
humanos, a democracia e o Estado de direito.”
No atinente à Ucrânia, o foco é a
responsabilização. Uma grave violação do direito internacional absorveu dezenas
de milhares de vidas, provocou milhões de fugas (de casa, da terra e do país) e
causou enormes danos. Por isso, o
Conselho da Europa, enquanto guardião dos direitos humanos, tinha de encontrar
maneiras de garantir que a justiça seja feita ao Estado da Ucrânia, às suas
estruturas da Ucrânia e aos seus cidadãos. E quem inicia a guerra será
responsabilizado mais cedo ou mais tarde. Porém, como os
tribunais responsáveis por julgar estes crimes demoram “anos e anos e anos”, é
importante dar um “sinal” o “mais rápido possível” de que será feita justiça.
Nesse sentido, o CoE dá o primeiro passo, ao nível
da responsabilização dos que tiverem cometido crimes e ao da compensação para
os que os sofreram. Assim, sobressai a importância de “um registo onde todos
e cada um dos cidadãos da Ucrânia que se sintam vítimas da guerra podem
registar os danos que sofreu, que será a
base da criação de um mecanismo de compensações, que possa indemnizar os que
sofreram perdas no conflito.
A declaração final da cimeira, segundo a expectativa
criada, deveria mencionar a criação de um tribunal especial. É
certo que estes assuntos deveriam ser resolvidos pelo Tribunal Penal
Internacional (TPI). No entanto, como a Rússia nunca o reconheceu, este não tem
jurisprudência para julgar crimes de agressão cometidos por Moscovo. Portanto,
a Assembleia Parlamentar do CoE foi a primeira a dizer que é necessário um
tribunal ad hoc para lidar com o crime de agressão. A ideia
parecia estranha, pois o último tribunal especial deste género foi o de Nuremberga,
que julgou os crimes dos nazis na Segunda Guerra Mundial. Contudo, em 2022, a
União Europeia (UE) apoiou a ideia. E, como a maioria dos países europeus e os
EUA estão de acordo, a probabilidade de haver efetivamente um tribunal
internacional aumentou.
Este tema tem estado na agenda
internacional há vários meses. Contudo, se a sua existência é cada vez menos
disputada, os moldes em que irá acontecer ainda não são consensuais.
Sobre o papel do Conselho no
processo, Tiny Kox opinou que não seria organizado pelo CoE, mas que este
ofereceria os seus serviços, pois dispõe de larga quantidade de especialistas
em Direitos Humanos, Democracia e Estado de Direito, nos vários organismos.
Outra proposta cuja provação que
Bjørn Berge esperava era a declaração
quanto às crianças que foram deportadas – algo com um acordo alargado entre os
46 Estados-membros do CoE.
O tema esteve em discussão na sessão
plenária de Primavera da Assembleia Parlamentar (que decorreu entre 24 e 28 de
abril). Na altura, o deputado
Paulo Pisco, como relator do CoE, apelou, na apresentação de um relatório, que
todas as crianças fossem devolvidas à Ucrânia e que a Rússia parasse
imediatamente as deportações, o que foi aprovado por unanimidade.
Um pedido inscrito no relatório foi
que toda a comunidade internacional e as organizações internacionais
mantivessem o tema em cima da mesa para discussão, “para que sejam encontradas
as soluções e para que haja uma cooperação que permita que todas as crianças
que foram deportadas possam regressar ao seu país, às suas famílias ou aos seus
tutores legais”.
Todavia, o âmbito da cimeira não se esgotou na Ucrânia. Entre as preocupações na agenda esteve o preocupante. “retrocesso democrático”, que
está a afetar toda a Europa, com a sociedade civil a “perder espaço de manobra”.
Há novos desafios relacionados com a proteção da liberdade de imprensa e com a
independência dos tribunais. Há uma certa desilusão com as instituições
democráticas. Há o problema da corrupção. São desafios que não pertencem a um
pequeno grupo de países. Embora a níveis diferentes, afetam todos os 46 Estados-membros.
Por isso, era de esperar a adoção de um
conjunto de princípios de democracia, uníssono e comum a todas as democracias
europeias, o que será um bom princípio para o trabalho subsequente do
CoE, que atua numa lógica de estabelecer standards,
que monitoriza e ajuda a implementar.
Por último, há que melhorar o funcionamento do
conselho da europa.
Em 2022, o CoE foi pioneiro ao ser a
primeira instituição internacional a expulsar a Rússia na sequência da invasão
da Ucrânia (decisão que ficou efetivada menos de um mês depois do início da
guerra) – uma medida extrema, a primeira do género alguma vez tomada.
Porém, as tensões com a Rússia vêm de
antes da guerra. Moscovo estava a ser pressionado por não cumprir as decisões
do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH ou ECDR, na sigla inglesa), que
definiu, por exemplo, a libertação de Alexei Navalny, advogado, ativista,
blogueiro e político russo. Por outro lado, a Rússia não está isolada nas tensões por casos
julgados pelo ECDR, cujas decisões são vinculativas para os Estados-membros. É
disso exemplo o caso de Osman Kavala, ativista turco e opositor de Erdogan, que
foi condenado a prisão perpétua pela organização dos protestos do Parque Gezi,
em 2013. O TEDH decidiu que o ativista devia ser imediatamente libertado, mas
Ancara rejeita a deliberação.
Interpelado sobre a contradição de o
“guardião” europeu dos direitos humanos manter Estados-membros em violação destes
princípios, Tiny Kox respondeu: “Todos estes Estados assinaram e ratificaram
voluntariamente os estatutos do Conselho da Europa e a Convenção Europeia de
Direitos do Homem. Por isso, se há uma contradição, é uma contradição causada
pelos próprios Estados. Eles assumiram esta obrigação, por isso eles têm de
garantir que fazem aquilo com que se comprometeram.” Admitiu que, em alguns, como
na Turquia e no Azerbaijão, os governos têm problemas em cumprir o que
prometeram em larga escala e que, também na pequena escala, como nos Países
Baixos, em certos momentos, há problemas em cumprir as obrigações. É a
consequência de ter uma organização tão ampla baseada num tratado. No entanto,
salvaguardou: “A boa notícia é que, cada vez mais, os veredictos do tribunal
são executados. Há muito trabalho bom feito e vidas são salvas por causa das
sentenças nos tribunais.”
Porém, como há um número crescente de
casos muito importantes em que os Estados se recusam a fazer o que o tribunal
diz, um dos pontos em agenda era a melhoria do sistema.
***
Na conferência de imprensa que
assinalou o final da cimeira, a primeira-ministra da Islândia, Katrín
Jakobsdóttir, defendeu que a cimeira do Conselho da Europa (CoE) alcançou
“decisões concretas” que terão “impacto direto” na atividade da instituição
internacional e na vida dos mais de 700 milhões de cidadãos que representa. Com
efeito, o encontro tinha por objetivos fortalecer o apoio à Ucrânia e reafirmar
o compromisso com os valores basilares do CoE.
A principal decisão prendeu-se com a
criação de um Registo de Danos sofridos
na Ucrânia. Esta será a “primeira
componente de um futuro mecanismo de compensação”. Para
isso, reunirá dados sobre danos, perdas e ferimentos causados pela invasão, podendo incluir uma comissão
de reivindicações e um fundo de compensação. E fica patente a obrigação da Federação Russa de pagar pelos
danos causados pela sua guerra de agressão.
O primeiro-ministro da Ucrânia, Denys
Shmygal, defendeu que todos os envolvidos na invasão devem ser
responsabilizados, desde os oficiais de topo aos soldados, e que são necessárias garantias
para que a agressão não se repita. E a
secretária-geral do CoE, Marija Pejčinović Burić, sublinhou este compromisso
com a responsabilização: “Não é possível pôr por palavras o choque com o horror
vivido na Ucrânia.”
O CoE apoiará a reconstrução da Ucrânia, inclusive pelo
financiamento e pela implementação do Plano de Ação do Conselho da Europa para
a Ucrânia ‘Resiliência, Recuperação e Reconstrução’, comprometendo-se a usar
todos os meios disponíveis no Conselho, incluindo o Banco de Desenvolvimento do
Conselho da Europa. Posiciona-se a
favor da criação de um tribunal especial para julgar os crimes de agressão
no decurso da invasão (que caem fora da jurisdição do TPI). E apela à Federação Russa para que cumpra com suas
obrigações internacionais e retire imediata, completa e incondicionalmente, a suas
forças da Ucrânia, da Geórgia e da República da Moldávia, tal como apela
à “libertação imediata de todos os
civis que foram transferidos à força ou deportados ilegalmente para o
território da Federação Russa ou para as áreas temporariamente controladas ou
ocupadas”, sobretudo dos menores.
Sobre a situação das crianças na
Ucrânia, o CoE apoia as autoridades ucranianas para “garantir o retorno
imediato” de todos os que foram ilegalmente transferidos ou deportados pelas
forças russas, tal como apoia os Estados que acolhem temporariamente as crianças
ucranianas.
Manifestando preocupação com a tendência do retrocesso
democrático em vários países, o CoE avançou com a adoção de um conjunto
de princípios democráticos, nomeadamente: participação democrática, independência
dos parlamentos e instituições democráticas, separação de poderes, imparcialidade
dos órgãos judiciais, luta contra a corrupção e liberdade de expressão. E
reiterou o compromisso com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pedra basilar do CoE.
Das decisões da cimeira, destaca-se
também o reconhecimento político do direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável como um direito
humano, bem como as prioridades da adesão da UE ao CoE, do
estabelecimento de novos standards para
salvaguardar os Direitos Humanos na era digital (sobretudo quanto à
inteligência artificial), da promoção dos direitos sociais na Europa através da
Carta Social, da cooperação contínua com as forças de oposição democrática da
Bielorrússia, bem como com os defensores dos direitos humanos da Bielorrússia e
da Rússia e com os meios de comunicação.
Ficou ténue a reforma do sistema de
funcionamento do CoE. Não obstante, a cimeira constitui um avanço notável, que
é de saudar. Assim se concretize a vontade política dos 46 Estados.
2023.05.17 – Louro de Carvalho
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