Pensam alguns mentores da opinião pública que o
Professor Cavaco Silva não deveria ter-se pronunciado, neste momento, sobre a
situação política do país, enquanto outros pensam que sim e que fez muito bem.
Uns ficaram perturbados e quase zangados, ao passo que outros ficaram alegres,
confortados e reorientados.
Por mim, não lhe nego tal direito de cidadania política e até o dever de intervir, se a consciência política lho exige. Os que ficaram perturbados entendem que o professor exagerou, fez discurso antidemocrático ou discurso de ódio, faz o jogo da direita, se substitui à liderança partidária opositora e extravasou a contenção de um ex-presidente da República (ex-PR); os que se sentiram reorientados alegam que interveio no momento oportuno, face ao descalabro da governação, e dizem que Mário Soares fez o mesmo contra o governo de Passos Coelho (mas nunca em evento oficial de partido).
Devo dizer que, em minha opinião, Cavaco Silva,
não deixando de ser um cidadão, no pleno gozo dos seus direitos políticos,
podia ter intervindo. E, dada a sua larga experiência política e a sua formação
como economista, deveria ter-se pronunciado. A situação de ex-chefe de Estado
não é inibidora de intervenção pública. Ao invés, a inclusão dos ex-presidentes
eleitos no Conselho de Estado significa o reconhecimento dos mesmos enquanto
reserva moral da nação.
Porém, de um ex-presidente espera-se um olhar
mais isento da realidade política, embora crítico, e não a entrada num
campeonato a favor da governação em curso, nem contra ela.
Alega-se que Mário Soares fez o mesmo que
Aníbal Cavaco Silva em relação a Passos Coelho. Todavia, é de referir que nem
tudo o que Mário Soares fez é de elogiar, como os critérios de Jorge Sampaio
para a dissolução ou não do Parlamento estão longe de ser consensuais. Por
outro lado, é de anotar que teceu rasgados elogios à personalidade do então
candidato socialdemocrata à governação. Além disso, por mais erros e disparates
em que o governo tenha caído, nada é parecido com os tempos da troika e da reta final da governação de
José Sócrates.
Dantes, cortaram-nos salários e subsídios de
Natal e de férias; aumentaram-nos brutalmente os impostos (O então ministro das
Finanças, Vítor Gaspar disse: “Este é o maior aumento de impostos de sempre!”);
impuseram-nos uma sobretaxa em sede do imposto sobre o rendimento das pessoas
singulares (IRS) e a contribuição extraordinária de solidariedade (CES) aos
pensionistas (reformados e aposentados); os funcionários públicos passaram a
trabalhar 40 horas por semana, em vez das 35 horas; o desconto para a ADSE –
Instituto Público de Gestão Participada passou a ser de 3,5%; queriam reduzir a
contribuição dos empregadores para a segurança social e aumentar a dos
trabalhadores; e queriam reduzir as pensões em pagamento, o que foi impedido
pelo Tribunal Constitucional.
***
Porém, Cavaco Silva tem mimado adversários e
mesmo correligionários com tiradas demolidoras. Quem não se lembra do artigo da
“má moeda” que acaba por contaminar o terreno da “boa moeda”? O alvo era
Santana Lopes. Ou quem não se lembra da sua reação ao apoio antecipado do
Partido Social Democrata (PSD) a possível eleição presidencial, anunciado por
Santana Lopes? “A política ativa, de momento, é pouco interessante!” (Cito de
cor).
Sobre os partidos à esquerda que viabilizaram o
primeiro governo de António Costa e a legislatura completa, disse que a
realidade se sobrepusera à ideologia. E, em relação à atual governação, o ex-PR
já criticou duramente o Programa “Mais Habitação”, campeando a oposição ao
governo ou alinhando superlativamente com ela.
Agora, como orador proeminente no 3.º encontro
dos autarcas socialdemocratas, a 20 de maio, em Lisboa, fez um dos discursos mais violentos de um antigo
inquilino de Belém em relação a um governo, sendo esta a mais crua intervenção
desde que deixou funções. Chamou “mentirosos” e “incompetentes” aos socialistas,
disse que o primeiro-ministro quer “comprar votos” e apelou a que tenha um
“rebate de consciência” para se demitir, como fez José Sócrates (Rico elogio!):
“Nunca um Governo desceu tão baixo”, acusou quando mencionou o dossiê da TAP.
Elogiou Luís Montenegro, amarrando o PSD a um guião e apontando a Marcelo
Rebelo de Sousa (MRS). Disse que o poder socialista pôs o
país no “caminho da degradação política”, com uma governação
“desastrosa”.
Os qualificativos usados por Cavaco Silva, que teve
mandatos tão institucionalistas, são inéditos num homem que MRS, num comentário
de há anos, classificou como de um PR “herbívoro” na interpretação dos poderes
presidenciais. “Existem duas áreas
em que a governação socialista é especialista: mentiras e truques”,
atirou agora. “Não houve, praticamente,
um dia em que não fosse feita a demonstração de que o governo mente.” O
Partido Socialista (PS) “governa o país aos solavancos”, com uma central “de
propaganda” cujo objetivo é
“desinformar, condicionar, iludir e anestesiar os cidadãos”.
Embora o tremendismo discursivo convocasse Belém para
uma dissolução, como o protocolo dita que um ex-PR não critica o Chefe de
Estado nem se lhe dirige, Cavaco Silva apelou à saída do primeiro-ministro pelo
seu próprio pé: “Em princípio, a
atual legislatura termina em 2026, mas, às vezes, os primeiros-ministros, em
resultado de uma reflexão sobre a situação do país, depois de um rebate de
consciência, decidem apresentar a demissão e dar lugar eleições antecipadas.”
“Foi o que aconteceu em março de 2011”, frisou, quando José Sócrates se demitiu com o país à beira da
bancarrota. A comparação com Sócrates é intencional: António Costa está a
braços com uma “degradação” institucional, com um
governo em que, “na palavra pública e na atitude dos seus membros, escasseia a
competência, mas abunda o populismo e a hipocrisia”. E as suas
iniciativas políticas, como o pacote da habitação, primam pela “falta de
qualidade”.
O ex-PR insinuou que está em causa assegurar o regular funcionamento das
instituições – o que permite a demissão do governo (vd artigo 195.º, n.º 2, da Constituição) –, quando disse que a degradação política, económica e
social que se vivem “são resultado de um primeiro-ministro que perdeu a
autoridade e não desempenha as competências que a Constituição define”.
E, depois, mencionou as competências constitucionais do
primeiro-ministro, “competências que
todos os analistas políticos parecem ter esquecido”: “Dirigir a
política geral do Governo, coordenando e orientando a ação de todos os
ministros”. E endereçou, implicitamente, um recado a MRS: o PSD não só é a alternativa ao PS, como é a única alternativa
credível.
Toda a intervenção de Cavaco, que vê o país cada vez mais na “cauda da
Europa”, sugere, de forma não explícita, uma conclusão: deve haver eleições
antecipadas: “O PSD e a sua liderança têm vindo, e
bem, a denunciar os erros, os abusos de poder, as mentiras, e a falta de ética
política do Governo e falta de sentido de Estado”, apontou Cavaco, a
alavancar Montenegro. “O PSD tem
apresentado alternativas que permitem inverter a política económica e melhorar
a vida dos portugueses”, afirmou, para ressalvar que “é falsa a
afirmação de que o PSD não tem apresentado políticas alternativas ao poder
socialista”, cuja governação tem sido “desastrosa”.
Cavaco Silva surpreendeu, ao fazer um elogio que emocionou o próprio líder
do PSD: “O Dr. Luís Montenegro tem mais
experiência política do que eu tinha quando subi a primeiro-ministro em 1985 e
está tão ou mais bem preparado do que eu estava”. E disse que o PSD
apresentou propostas de resposta à emergência social, de orçamento e de apoio à
habitação mais ambiciosas e mais coerentes do que as do governo. Isto constitui
apoio de peso (excecional em Cavaco em relação aos seus sucessores) e crítica
velada a Marcelo Rebelo de Sousa.
Porém, o elogio é untuoso, pois Cavaco Silva,
antes de ser primeiro-ministro, fora ministro das Finanças e era um dos quadros
do Banco de Portugal, ao passo que Luís Montenegro só tem experiência
parlamentar e autárquica. A diferença é que, em 1985, não estava montado o
mecanismo de captação dos fundos comunitários (a adesão à CEE – Comunidade Económica
Europeia foi acordada com assinatura em junho de 1985, mas o acordo só entrou
em vigor a 1 de janeiro de 1986); e, agora, o mecanismo dos fundos Europeus
está em desenvolvimento, bastando só apanhar seu comboio. Além disso, foi por
sermos “bom aluno” da CEE – e não por Cavaco Silva estar mal preparado – que,
por exemplo, se destruiu a agricultura (em prol da floresta, que arde), quase
desapareceram as marinhas mercante e pesqueira, se reduziu a ferrovia à
expressão mais simples e se aniquilaram a Lisnave e a Setenave, bem como outras
grandes empresas, e se começou a privatizar a esmo.
Ao mesmo tempo, o ex-líder do PSD amarrou Luís Montenegro a um guião de nove quesitos:
O programa eleitoral só deve ser apresentado na proximidade do ato
eleitoral, de modo a ter em conta os recentes desenvolvimentos na cena nacional
e internacional.
O PSD não deve ir a reboque de outros partidos mais preocupados em ser
notícia.
Não se deve anunciar política de coligações, tendo em vista as próximas
eleições legislativas.
Não se deve ceder à tentação
das moções de censura,
que servem os interesses do PS.
É fundamental resgatar o debate político em Portugal,
pois é importante em democracia conferir urbanidade e respeito pelos
adversários.
Não se deve compactuar com políticas que choquem com a socialdemocracia e
com a filosofia humanista que a inspira, na defesa intransigente dos
direitos humanos.
O PSD e o seu líder estão a trabalhar democrática e seriamente para ganhar
as próximas legislativas e formar governo, só faltando convencer 8% a 9% dos
eleitores.
O governo do PSD deve primar pela transparência e ética e falar verdade aos
portugueses.
Ao invés do PS, que interfere na propriedade privada,
quando nem é capaz de gerir os serviços públicos, o PSD tem de saber apoiar a livre
iniciativa e o talento dos portugueses.
Se fosse eu, sentir-me-ia apoucado e demarcar-me-ia do guião público.
Enfim, o ex-PR fez um discurso de guerra política, aceitável num líder da
oposição, mas não num ex-PR, que usurpa o direito e o múnus de oposição. Isto
num homem que disse não ser político!
***
Enquanto o Presidente da República (PR) respondeu a isto com a asserção de
que ele próprio diz tudo enquanto é PR, outros falaram pouco, quando eram
presidentes, e muito, depois, o primeiro- ministro, deixando de parte as acusações de tirada
antidemocrática, enquadrou os ataques do ex-chefe de Estado no “frenesim” da
direita para que haja, “o mais rapidamente possível”, uma “crise política
artificial”. E, num registo que faz lembrar o “deixem-nos
trabalhar”, do governante de 1994, atirou: “Aquilo que me cabe a mim não é
cuidar dos interesses partidários da direita portuguesa. É cuidar do interesse
nacional e garantir que os portugueses irão beneficiar das políticas que têm
vindo a ser seguidas e que têm permitido à economia estar a recuperar.”
António Costa observou que o
ex-PR se limitou a “descer à terra enquanto militante partidário para vir
animar a direita na crise política artificial que pretende criar”. E lembrou
que o professor “teve a enorme frustração de concluir o seu mandato presidencial,
dando posse a um governo [a] que, de todo em todo, não desejava dar posse,
tenho ficado com essa mágoa”. E, portanto, “volta e meia, despe a sua função
institucional”.
Por mim, li as súmulas das propostas
do PSD sobre emergência social, orçamento para 2023 e programa de políticas de habitação.
São materiais ambiciosos e coerentes. Duvido de que fossem exequíveis a cargo
de outro governo. A experiência política do país mostra que se fala e escreve
muito bem na oposição e se borrega bastante, quando estamos no governo.
Além disso, admito que se
chame incompetente a um governante. Mas chamar incompetentes e mentirosos a
todos é excessivamente pesado num homem de Estado. A superna ciência e a
badalada honorabilidade, em exclusivo, nunca foram boas conselheiras.
2023.05.23 – Louro de Carvalho
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