Noticiava a
agência Lusa, a 4 de maio, que os
advogados reunirão em assembleia geral extraordinária, dentro de um mês, para
mostrar, “de forma inequívoca”, que não se resignam às alterações ao seu
estatuto profissional, que dizem representar “uma ingerência do Estado” e uma “diminuição
da atuação da advocacia”.
Em
conferência de imprensa, na sede da Ordem dos Advogados (OA), em Lisboa, na
tarde daquele dia, a bastonária, Fernanda de Almeida Pinheiro, ladeada pelos
presidentes de órgãos nacionais e regionais da instituição, assinalou que “o momento
impõe a união da classe” e que, “numa atuação sem precedentes na História desta
instituição”, os vários órgãos “unem esforços, para, de forma clara, indicar ao
governo que a alteração a efetuar ao Estatuto da Ordem dos Advogados não poderá
passar pela diminuição da atuação da advocacia”.
Em
declaração lida aos jornalistas, mas dirigida aos advogados, a bastonária
acrescentou que os advogados não aceitarão que os atos próprios da profissão,
definidos legalmente, “sejam alterados ou possam vir a ser prestados por outros
profissionais que não sejam licenciados em Direito” ou inscritos na OA, a qual “não
aceitará qualquer ingerência do Estado na sua autorregulação”, bem como “não
compactuará com qualquer solução que belisque o sigilo profissional ou possa
pôr em causa a relação de confiança entre advogado e cliente”.
A bastonária
referiu que a assembleia geral será convocada “nos termos legais, em princípio
daqui a 30 dias”, e apelou à mobilização dos advogados, por considerar que “está
em causa o Estado de Direito democrático e os direitos, liberdades e garantias”
dos cidadãos, vincando que é “indispensável ouvir a classe” e consultar os
advogados “sobre o que pretendem fazer a seguir”.
E porfiou
que os advogados se vão fazer ouvir, sendo as medidas de ação tomadas em
conjunto.
Face a
este posicionamento da OA, o professor Vital Moreira, constitucionalista,
observou que a bastonária
parece ignorar que “as ordens são entidades públicas criadas pelo Estado para
desempenharem as tarefas que a lei lhes confere e que, num Estado de direito,
as entidades públicas estão submetidas, de modo qualificado, ao princípio da
legalidade, ficando, por isso, sujeitas a tutela governamental”.
Do meu ponto
de vista, a OA, para lá da autorregulação e do autogoverno, parece arrogar-se
ao exclusivo da defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
E Vital
Moreira sustenta que, sendo a OA uma entidade pública administrativa, a sua rebelião
contra a Lei-quadro das associações públicas profissionais – a revisão
dos seus estatutos, a aprovar pela Assembleia da República [AR], tem de a respeitar
e de a implementar – constitui “lamentável desafio à autoridade do Estado e, em
especial, à autoridade legislativa da AR”. Com efeito, prosseguindo o interesse
público, como definido pelo Estado, estas associações não são grupos de defesa
de interesses privados, pelo que não podem “propor-se resistir ao cumprimento
das leis”.
Além disso, como salienta o renomado constitucionalista, o principal ponto da divergência é a “inevitável
redução da esfera dos chamados “atos
próprios” dos advogados”, os “atos que só eles podem praticar, excluindo
outros profissionais”. E a OA quer manter o elenco legal atual.
Segundo,
Vital Moreira, esse é objetivo impossível, pois o monopólio profissional
injustificado traduz-se numa “restrição ilegítima da liberdade profissional”; a
Autoridade da Concorrência, não tem escondido a oposição aos monopólios
profissionais, “por restrição manifesta da concorrência na prestação de
serviços profissionais”; “a Constituição só reserva aos advogados o patrocínio
forense, sendo este a única tarefa que […] deve ser salvaguardada como
competência exclusiva”; e nenhuma justificação há “para que os demais ‘atos
próprios’ atuais (consulta jurídica, assistência na negociação de
contratos, etc.), embora continuando a ser competência dos advogados, não sejam
abertos a outros profissionais, desde logo outros juristas, tanto ou mais
habilitados para os praticarem”.
***
Casos como
este, que levam ao máximo a defesa dos interesses de um grupo com grande poder
na sociedade e cujos membros atuam em bloco ou com espírito de corpo, costumam
ser encaixados na postura corporativista, não obviamente no corporativismo de Estado,
mas no corporativismo profissional.
O corporativismo de Estado é uma ideologia
política que defende a organização da sociedade por grupos corporativos, associações ou
sindicatos agrícolas, trabalhistas, policiais, militares, científicas ou corporações
de artes e de ofícios (associações de guilda), com base nos seus
interesses comuns. O termo é derivado do latim corpus (corpo). E a ideia é a de que a
sociedade atingirá o apogeu de funcionamento harmonioso quando cada uma das
suas divisões desempenhar eficientemente a sua função, como os órgãos de um
corpo, que contribuem, individualmente, com a sua saúde e funcionalidade, para
o bem-estar da comunidade, para o interesse geral.
As ideias
corporativistas vingaram em várias civilizações antigas, inclusive em
sociedades confucionistas, abraâmicas, etc. e serviram de suporte a uma ampla
gama de sistemas políticos: autoritarismo, absolutismo, fascismo, liberalismo, integralismo
e socialismo.
O Estado Novo,
definindo Portugal como uma república orgânica e corporativa, dispunha da
Câmara Corporativa, como órgão consultivo da Assembleia Nacional. Porém,
Marcello Caetano confessava-se cansado de ouvir falar tanto de corporativismo,
o qual nunca se instalou a sério, em sua opinião. E parece-me que, ao invés do
que sucedeu em Espanha, com o franquismo, em Portugal, a ideia corporativista apenas
serviu de justificação epidérmica para a ditadura, que se afirmava seguidora
dos princípios sociais da Igreja Católica. Tive professores que no-lo diziam
abertamente: a Igreja quer sociedades intermédias (de vários tipos e com
liberdade de expressão e de reunião) entre as famílias e o Estado, mas o Estado
exerce forte controlo sobre os poucos grupos sociais existentes, pondo-os ao
serviço da sua ideologia de Pátria.
O termo “corporativismo”
também pode referir-se ao tripartismo económico que envolve
negociações entre grupos de interesses trabalhistas e comerciais e o governo, para
estabelecer políticas económicas: neocorporativismo ou corporativismo socialdemocrata.
Entre nós, parece funcionar na Concertação Social.
Já na Roma
Antiga (753 a.C – 476 d.C.) havia agrupamentos de trabalhadores do mesmo
ofício, que a lei denominava como corpora ou collegia e que tinham a mesma função que as
corporações das artes e dos ofícios. Com as invasões bárbaras,
desapareceram, mas voltaram, no século XII, como inspiração para o
surgimento das cidades, graças às transformações no feudalismo, com o processo
de reurbanização e com o surgimento dos burgos na Europa Medieval.
Alguns
sustentam que as corporações surgiram para controlo económico dos governantes,
pois, ainda na época agrícola da Idade Média, os reis e senhores feudais
exerciam poder sobre pesos e medidas, a moeda e os mercados. Os artesãos, ao
chegarem às novas cidades, deviam apresentar-se às autoridades locais, já que
os senhores tinham o direito político de controlo de vendas. Nessa ordem de ideias,
os agrupamentos teriam sido constituídos pelos senhores, a fim de melhor
regulamentarem os produtores e os produtos.
Outros defendem
que as cidades – construídas com a união de burgos (fortificações), igrejas e
terrenos – cresceram com o aumento do comércio. A maior parte dos seus
habitantes eram mercadores. Com o passar do tempo, criou-se o embate entre a
lógica feudal e a lógica das cidades, que era comercial. Para solucionar o
conflito, surgiram as corporações, que eram associações de mercadores, com o
objetivo de garantir liberdade para as cidades em que viviam, de modo que
nestas houvesse crescimento contínuo.
O homem da
cidade queria ser livre e, muitas vezes, buscava a liberdade pela violência.
Por isso, muitas das guerras travadas nas cidades foram lideradas pelas
corporações das artes e dos ofícios. Os senhores feudais podiam dar direitos
aos mercadores, através de cartas de atribuição de privilégio. E cada vez mais
as associações monopolizavam o comércio, deixando de fora tanto não membros,
como comerciantes estrangeiros. As mercadorias, ao chegarem à
cidade, deveriam ser, a princípio, analisadas e compradas pelos membros das
corporações. Caso um estrangeiro ou não membro comprasse ou trocasse alguma
mercadoria antes dos membros, o infrator seria punido e o produto confiscado
pelo rei. Com efeito, as instituições de poder estavam diretamente ligadas e
dispostas pelas associações de mercadores, que determinavam os preços, assim
eliminando a concorrência e ganhando cada vez mais poder.
Na Itália,
eram nominadas de mercadantia ou collegia notariorum;
na França, confréries; na Inglaterra, Suécia e Holanda, guilds;
na Alemanha, Innungen, Gilden ou Zünfle e,
por fim, grémios, na Espanha em Portugal.
As
corporações das artes e dos ofícios eram estabelecidas por relações de
solidariedade e de auxílio mútuo e visavam conservar o ofício dos artesãos que
as formavam. Para tanto, criaram rígidos regulamentos que estavam ligados ao
princípio básico de proteção dos produtos e do consumidor e impunham cada vez
mais um padrão a seguir, garantindo a qualidade da mercadoria.
Contudo,
tinham outras atribuições e princípios básicos, como a ajuda mútua, em nome da
qual, pelo espírito de fraternidade, garantiam direitos básicos aos seus
membros mais necessitados (por exemplo na falta de trabalho e na incapacitação por
doença ou por velhice); o controlo direto da indústria, isto é, o monopólio da
produção de específicos, vedando a participação de estrangeiros e de não
membros; a conduta moral entre os membros, sendo proibidas vantagens obtidas
através de golpes entre membros; a sua hierarquia de categorias profissionais e
de competências; e o padrão de qualidade, em nome do qual se visava o nome e o prestígio
da respetiva corporação, através de fiscalizações contínuas, de modo a
assegurar a qualidade dos produtos. E, em contexto de cristandade, as corporações
tinham as suas obrigações cultuais próprias, o seu padroeiro, as suas festas, o
seu pendão e a sua caldeira.
***
Ora, a OA,
aliás como as demais associações profissionais públicas (ordens) estão dotadas
da capacidade de autorregulação e de autogoverno, zelam os direitos dos seus
membros e garantem a qualidade dos seus serviços, a benefício dos clientes –
tal como as velhas corporações. Porém, como lhes cabe, por definição do Estado,
prosseguir o interesse público e desempenhar funções administrativas por delegação
do poder público, não podem refugiar-se no bastião corporativista e reivindicar
monopólios ilegítimos que anulem a necessária concorrência.
2023.05.07 – Louro de Carvalho
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