O
Presidente da República (PR) tem o direito de discordar do primeiro-ministro
(tal como este) e de o expressar publicamente. No entanto, tal discordância deve
ser contida, sem cair em incoerências, sem resvalar para o fácil populismo e
sem prejudicar os poderes e a honorabilidade de cada um dos órgãos em causa,
bem como das pessoas.
Como o
PR, penso que o ministro das Infraestruturas, não tendo resistido à questão da
TAP (Transportes Aéreos Portugueses), aniquiladora de governantes, não tem
condições políticas de continuar no governo, o que deveria acontecer, quando a
comissão parlamentar de inquérito (CPI) em curso àquela empresa pública, da sua
tutela, finalizasse o seu trabalho.
Porém,
não cabia ao chefe de Estado, à semelhança do que fez a propósito de outros
governantes (e tentou fazer com outros), clamar explícita ou implicitamente
pela exoneração ou pela demissão do ministro. A saída deveria ter sido
combinada a sós com o primeiro-ministro, deixando-lhe margem de liberdade para
aceitar um eventual pedido de demissão do governante e propor ao PR a sua
exoneração ou tomar a iniciativa de propor ao PR a exoneração do ministro.
Como não
sucedeu assim, o PR exorbitou das suas funções. É legítimo o PR recusar a
proposta de nomeação ou, no limite, de exoneração de um ministro feita pelo PM,
mas não tomar a iniciativa. O direito de proposta deve ser respeitado e Marcelo
Rebelo de Sousa (MRS) desrespeitou-o em público, o que seus antecessores não
fizeram.
Tenho
dificuldade em dizer que o governo não responde perante o PR, só respondendo
perante a Assembleia da República (AR). Com efeito, nos termos do artigo 190.º
da Constituição da República Portuguesa (CRP), “o Governo é responsável perante
o Presidente da República e a Assembleia da República”. Por isso, “o
primeiro-ministro é responsável perante o Presidente da República e, no âmbito
da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República”
(CRP, artigo 191.º, n.º 1). E uma das competências do PM é “informar o
Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política
interna e externa do país” (ver alínea c)
do artigo 201.º da CRP).
Já “os vice-primeiros-ministros e
os ministros são responsáveis perante o primeiro-ministro e, no âmbito da
responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República” (CRP,
artigo 191.º, n.º 2). Assim, dificilmente o PR tem autoridade para chamar a
Belém ministros ou ajuizar publicamente sobre o mérito ou demérito do seu
desempenho. E isto não é inédito no PR.
Nem a AR, que faz cair o governo,
através da rejeição do programa, da aprovação de uma moção de censura ou da não
aprovação de confiança, nem os deputados, que podem fazer requerimentos ao
governo, para obterem explicação sobre a ação governativa e sobre o desempenho
dos seus membros, invetivam pessoalmente os ministros e secretários de Estado
Obviamente, no calor do debate
político, deputados e membros do governo exaltam-se e invetivam-se mutuamente,
mas são cordatos no relacionamento institucional.
Assim, penso que foi ignóbil o
destratamento público do ministro por MRS, que usou de uma forma de justiça
popular, antecipando-se ou substituindo-se à justiça formal.
O chefe de Estado fez um discurso
arrasador sobre o ministro, frisando que não estava em causa a honorabilidade
pessoal e até o desempenho, mas relevando a responsabilidade política, explicitando
que o governante é responsável por tudo o que faz e pelo que não faz e pelo que
os outros fazem ou não fazem na área que dirige. É verdade, mas a
responsabilidade política não é o azorrague total, definitivo e único. Em meu
entender, a partir do momento em que o responsável político identifica os
responsáveis materiais pelos erros cometidos e os penaliza adequadamente, no
âmbito das suas competências disciplinares e administrativas ou contratuais,
duvido de que seja legítimo continuar a invocar a responsabilidade política.
O exemplo reiteradamente
apresentado de Jorge Coelho, que se demitiu aquando da queda da ponte de
Entre-os-Rios, não resolveu o problema da responsabilidade material pelo
colapso daquela obra de arte. E é caso para questionar se o PR é responsável por
eventuais desmandos que ocorram na sua Casa Civil ou na sua Casa Militar, após
os debelar e resolver.
O discurso arrasador contra o
ministro e contra o governo pelo que aconteceu no gabinete ministerial – não tendo
sido suficiente pedir desculpas, porque o caso não se apagou, nem se apaga – reconhece
alguma melhoria económica, embora insuficiente, mas acusa a falta de “capacidade, confiabilidade, credibilidade,
respeitabilidade e autoridade” do ministro e do governo.
Identificou
“fraquezas” da governação que causam “maior deterioração” no país, que o que
quer é “ver os governantes a
resolverem os seus problemas do dia a dia, os preços dos bens alimentares, o
funcionamento das escolas, a rapidez na justiça, o preço da aquisição da
habitação”.
Reconheceu
“alguns grandes números muito positivos da nossa economia e de apoios a
famílias e a empresas”, mas sustenta que “esses grandes números ainda não chegaram à vida da maioria dos portugueses”,
que “esperam e precisam de mais e melhor”. “Esperam e precisam de um poder
político que resolva mais e melhor os seus problemas. Isso exige:
capacidade, confiabilidade, credibilidade, respeitabilidade, autoridade”,
avisou.
E sublinhou
que a autoridade, “para existir, ser confiável, ser credível, ser respeitada,
tem de ser responsável”. “Onde não
há responsabilidade – na política como na administração – não há autoridade,
respeito, confiança, credibilidade”, sentenciou.
Ora, sendo verdade o que disse no discurso de 4 de maio – mais gelado que
o gelado que estava a comer, quando os jornalistas o interpelaram sobre as declarações
de António Costa, no dia 2 –, ou seja, se a atuação do ministro das
Infraestruturas e a ação do governo em geral são como diz o PR, só havia uma
saída, a demissão do governo nos termos do n.º 2 do artigo 195 da CRP,
invocando a necessidade de “assegurar o regular
funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado”. Em
alternativa, o PR deveria anunciar, para breve, a dissolução da AR e a marcação
de eleições legislativas. Porque não o fez? Porque não crê na verdade
inequívoca da sua análise? Porque sabe que a oposição não constitui alternativa
credível?
Em
qualquer dos casos, podia dispensar-nos deste discurso demolidor e de quase
inutilidade para o país, a não ser a reiteração de que Ele é que é o Presidente
e que exerce os seus poderes escritos e os não escritos como se estivéramos em
sistema presidencial de governação.
Estaremos
perante um caso de recalcamento de alguém que não conseguiu ser
primeiro-ministro ou perante um exercício de presidência-espetáculo?
O PR
prometeu uma atenção e uma vigilância reforçadas sobre a ação politica e
administrativa do governo e, se for o caso, o uso dos seus poderes, uso de que
não prescinde.
Porém,
incorreu num equívoco: a CRP não lhe reconhece competências na área
administrativa. Essa é uma área do governo, sem que haja órgão superior a este:
“O Governo é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior
da administração pública” (CRP, artigo 182.º). E do artigo 199.º da CRP, que
define a competência administrativa do governo, ressalta que a este compete
“dirigir os serviços e a atividade da administração direta do Estado, civil e
militar, superintender na administração indireta e exercer a tutela sobre esta
e sobre a administração autónoma”, bem como “praticar todos os atos exigidos
pela lei respeitantes aos funcionários e agentes do Estado e de outras pessoas
coletivas públicas”.
Pouco
importa que MRS tenha querido dar uma aula da ciência política na televisão (Queremos
um PR, não um docente!). Afirmar-se professor de todos é uma forma de populismo
como a de dizer que terá o governo sob pressão ou como a de que acredita na
sabedoria do povo. Confiar na sabedoria do povo é uma afirmação que se entende
em maré de eleições ou de epidemia, a não ser que se queira evitar ou promover
qualquer exaltação coletiva contra o status
quo vigente. E dizer que estará atento à distância entre o povo e os poderes
públicos é um populismo indevidamente responsabilizador do governo, quando as
grandes causas são a falta de formação das camadas populares pelas estruturas
partidárias, a despolitização criada pelos detentores de interesses instalados
e a rejeição da formação cívica que as escolas querem implementar.
Há uma
diferença entre PR e PM, mas não uma
“diferença de fundo”, sobre a “questão da responsabilidade política e
administrativa dos que mandam”. E, se o PR quer “estar mais atento e interventivo no dia-a-dia”, para evitar “o
aparecimento e o avolumar de fatores imparáveis e indesejáveis”, que esteja,
mas sem exorbitar das suas funções e sem pôr em causa as pessoas.
Lamenta que,
“desta vez”, não tenha sido possível “acertar agulhas”, mas o erro está em quem
tentou resolver as coisas na ribalta pública, raiando as malhas da interferência.
É irónico
MRS não confiar no governo, que se tornou, alegadamente descredibilizado e
incapaz, e “continuar a preferir a garantia de estabilidade institucional”; ou
criar ou avolumar público de um caso de governação, como se fosse o líder da
oposição, e deixar um aviso aos que o tentam fragilizar e que por “aí andam com
cenários que implicam imediata e direta ou indiretamente o apelo ao voto
popular antecipado”: “Comigo não contem
para criar conflitos ou para deixar crescer tentativas, isoladas ou
concertadas, para enfraquecer a função presidencial envolvendo-a em alegados
conflitos institucionais.”. Lindo!
Fez eco do que a oposição e os comentores disseram do suposto
envolvimento do ministro nas trapalhadas da TAP e fez julgamento sumário
público do que se passou no gabinete ministerial. Porém, disse que “não se
mistura política com justiça”.
É verdade
que “responsabilidade política e
administrativa é essencial para que os portugueses acreditem naqueles e
naquelas que governam”, mas não cabe ao PR ser juiz da mesma.
É certo que
“um governante sabe que, ao aceitar sê-lo, aceita ser responsável por aquilo
que faz e não faz”, bem como “por aquilo que fazem ou não fazem aqueles que
escolhe e nos quais é suposto mandar”. Contudo, a responsabilidade política não
é infinda.
“Não se resolve [um erro] apenas pedindo desculpa
pelo sucedido”, pois “responsabilidade é mais do que pedir desculpa, virar a
página e esquecer, mas é “pagar por aquilo que se faz ou deixou de fazer”.
Todavia, esse pagamento não é determinado pelo chefe de Estado, cujos poderes
não são absolutos, mas exercidos sob condicionantes: proposta, audição prévia,
tendo em conta determinadas circunstâncias. A realidade objetiva contribui para
a formulação da consciência subjetiva. E esta também funciona em política, na
justiça, na economia, na cultura, etc.
É verdade que tudo isto – capacidade, confiabilidade,
credibilidade, respeitabilidade, autoridade – “tem de existir para que os portugueses não se convençam de que ninguém
responde por nada, nem manda em nada”. Porém, impõe-se o respeito pelas
competências de cada órgão, secundado pela cooperação institucional e pela não
desautorização mútua, bem como pela não interferência.
***
Enfim, o PR
faria bem em explicitar a sua discordância sobre um caso, justificando-a, mas
sem queimar pessoas e expor o governo no pelourinho da inutilidade. O povo merece
melhor governo, mas também melhor chefe de Estado.
2023.05.05 – Louro de Carvalho
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