Está a criar alguma polémica a orientação n.º 002/3023, de 10 de maio, da
Direção-Geral da Saúde (DGS), nos termos da qual os partos considerados normais
ou de baixo risco poderão ser assegurados por enfermeiros especialistas em
enfermagem de saúde materna e obstétrica (EEESMO), deixando, assim, de ser
feitos, obrigatoriamente, por médicos obstetras.
Esta alteração, constante da referida orientação da DGS – proferida ao
abrigo da alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto Regulamentar n.º 14/2012,
de 26 de janeiro, que define a missão da DGS – resulta de uma proposta da Comissão de Acompanhamento da
Resposta em Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e Bloco de Partos, liderada por Diogo Ayres de
Campos, que estuda soluções para a falta de médicos nesta especialidade, e oficializa uma prática levada a cabo por
alguns hospitais, pretendendo solucionar problemas decorrentes da falta de
obstetras, anestesistas e pediatras, que agravam a pressão nas urgências
obstétricas do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Os médicos de Obstetrícia e Ginecologia mantêm-se sempre nos partos mais
complexos, para os quais são exigidos instrumentos. Já os partos normais, de
baixo risco, são assegurados pelos enfermeiros especialistas, desde o
internamento até às primeiras horas de vida do bebé.
O intuito da DGS, segundo o documento-síntese da orientação, desdobra-se em
uniformizar os
cuidados de saúde hospitalares, durante o trabalho de parto (TP); clarificar o
papel dos vários profissionais de saúde intervenientes no TP; e
identificar tarefas, autonomias e responsabilidades, promovendo a partilha de
um modelo de cuidados comum que favoreça o verdadeiro trabalho de equipa, a
segurança e a qualidade dos cuidados prestados durante o TP.
O principal objetivo a atingir é a promoção de cuidados de
saúde de qualidade, com foco principal na segurança materno-fetal, bem como
numa experiência positiva no parto para a grávida e para a família.
Os cuidados de saúde durante o TP devem ser assegurados por
uma equipa multidisciplinar, com a clara definição de atividades, de tarefas e de
responsabilidades dos diferentes intervenientes, tendo em conta as competências
legalmente estabelecidas, de acordo com os riscos de saúde individuais de cada
parturiente e com a necessidade de resposta a cada momento.
Por fim, a orientação, subscrita pelo Dr. Rui Portugal,
subdiretor-geral da Saúde, preconiza que a avaliação da implementação do
presente instrumento deve ser contínua e executada através das Direções
Clínicas Hospitalares e das Direções dos Serviços de Obstetrícia e
Ginecologia.
Em suma, é clarificado o papel da cada profissional de saúde nos trabalhos
de partos de baixo risco (que se estima serem 80%) e nos que exigem maior vigilância.
O enfermeiro especialista passa a assegurar o internamento da grávida em
trabalho de parto de baixo risco, sendo, preferencialmente, o responsável pelo
parto. Só nos casos em que o TP for
considerado mais complexo é que é chamado o médico (obstetra, anestesista e
pediatra).
Segundo a orientação da DGS, “deve
ser privilegiada a rentabilização dos recursos humanos e o desenvolvimento das
competências de toda a equipa de saúde”, de modo a concretizar o intuito
e objetivo estabelecidos.
No entanto, apesar destas alterações, Diogo Ayres Magalhães, ouvido pelo Jornal de Notícias, tem dúvidas de que esta
orientação da DGS ajude a aliviar as equipas médicas, que já estão muito reduzidas.
Permitirá, não obstante, rentabilizar os recursos humanos, quando faltam
médicos especialistas em muitos hospitais do país.
***
A
matéria não é nova, embora pareça que terá surgido de repente. Com efeito, a 6
de julho de 2022, a Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde
Materna e Obstétrica da Ordem dos Enfermeiros (OEnf), estribada num documento
da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 1996, entregava à ministra da Saúde,
na sequência dos constrangimentos severos a que se vinha assistindo, a Tomada
de Posição n.º 1/2022, sobre o parto fisiológico saudável e normal – centros de
parto normal.
O
documento defendia a criação de centros de parto normal junto dos serviços de
obstetrícia, como propõe a OMS, como forma de rentabilizar os recursos humanos,
designadamente os EEESMO, e garantir a acessibilidade aos cuidados de saúde
materna e obstétrica.
Tal modelo permitiria
que os hospitais com centros de parto normal – conceito constante do referido
documento da OMS, em 1996 – necessitassem de menos médicos de apoio à sala de
partos, libertando também médicos e enfermeiros de família das consultas de
gravidez, que devem ser realizadas pelos EEESMO das Unidades de Cuidados na
Comunidade (UCC). É a própria OMS que reconhece que os EESMO “podem lidar com a
maioria das gestações com segurança e têm as habilidades para encaminhar
situações complexas a um médico”.
“Este modelo
seria, por isso, o garante da continuidade dos cuidados, entre o pré-natal e o
pós-natal, por exemplo, na assistência na amamentação e na recuperação
pós-parto”, defende a Ordem dos Enfermeiros, lembrando que Portugal dispõe de
um número significativo de EEESMO, técnica e cientificamente reconhecidos,
habilitados com as competências decorrentes da Diretiva n.º 2005/36/CE de 7 de
setembro, transposta pela Lei n.º 9/2009, de 4 de março, e pelo Regulamento n.º
391/2019, de 3 de maio.
Os centros de
parto normal constituirão, assim, oportunidade para rentabilizar os recursos e
contribuir para uma experiência positiva de parto.
Segundo
a OMS e a OEnf, os centros de parto normal surgiram com o objetivo de resgatar
o direito à privacidade e à dignidade da mulher durante o TP e no pós-parto,
num local semelhante ao seu ambiente familiar, e de garantir cuidados seguros,
oferecendo-lhe recursos tecnológicos apropriados em casos de eventual
necessidade. Espera-se que disponham de um conjunto de elementos destinados a
receber a parturiente e seus acompanhantes, permitindo um TP ativo e
participativo, com recurso a práticas baseadas em evidências recomendadas.
***
Conhecida
que foi a orientação da DGS, a Ordem dos Médicos (OM) agendou uma reunião de urgência,
de que resultou o propósito de pedir a revogação imediata de tal documento.
Em comunicado, a OM, que alega ter tomado conhecimento
da orientação da DGS pela comunicação social, refere que a revogação será
pedida “em prol de um processo que seja discutido, inclusivo e transparente, e
que garanta a melhor qualidade dos cuidados de saúde às mães e às crianças”.
Segundo o comunicado, a OM não esteve na origem da decisão,
não se revendo no documento, porque, alegadamente, os médicos nomeados não
foram ouvidos durante o processo. E
diz a ordem: “Os membros indicados pelo Colégio de Ginecologia e
Obstetrícia da Ordem dos Médicos apresentaram a sua demissão da referida
comissão, assim como os representantes dos colégios de anestesiologia e de
pediatria, não estando, nestas circunstâncias, considerada a sua
substituição.”
A instituição liderada por Carlos Cortes criticou ainda
não ter sido previamente remetida à OM o relatório final da Comissão de
Acompanhamento da Resposta em Urgência de Ginecologia e Obstetrícia e Blocos de
Parto, para efeitos de pronúncia técnica.
“É absolutamente lamentável que a OM não tenha
sido consultada antes da tomada de decisão, sobretudo porque se trata de uma
questão com impacto dos cuidados de saúde e da segurança das mães e das
crianças”, vincou o bastonário, citado no comunicado, dizendo que o
facto de o Ministério da Saúde e a DGS terem excluído a OM do documento final é
falha difícil de entender.
Entretanto, a DGS contraria a versão da OM, dizendo que
os médicos estiveram no processo “desde o início até ao fim dos trabalhos”,
tendo aprovado o documento final. Segundo a DGS, a OM nomeou, ao todo, cinco
médicos. O documento, segundo a DGS, “foi validado por todos os elementos”.
“Enquanto entidade técnico-normativa, e tal como nas orientações até
agora publicadas, a DGS constituiu um grupo de trabalho com representantes de
diferentes entidades, nomeadamente de Ordens Profissionais, e respetivos Colégios
das especialidades envolvidas, bem como de sociedades científicas”, afirmou a
DGS.
Devo apontar que não é raro, nesta sociedade
hipercrítica e pouco audaz, elementos que participam num projeto, ao perceberem
que o mesmo não é bem aceite, virem dizer que nada tiveram a ver com o assunto.
***
Como a propósito de outras matérias, é apontada à OM a
atitude corporativista sob a capa da qualidade (Aliás mencione-se a primeira
ordem profissional que não raciocine segundo os seus interesses! E mal é quando
se sobrepõem ao interesse geral.). Porém, desta feita, a DGS desmente a OM e os
médicos obstetras parecem estar do lado da DGS.
À primeira vista, parecerá que estamos perante um
retrocesso. E estamos de facto e não só por estas alterações. Não podemos
esquecer que o interior do país não teve igual acesso ao acompanhamento na
saúde materna e na saúde infantil por parte do SNS. Em muitos lugares, andou-se
para trás (Ainda me lembro de os médico irem às escolas fazer saúde escolar e
de os centros de saúde distribuírem leite às criancinhas). E pessoas que tinham
necessidade de acompanhamento de obstetra e de pediatra deslocavam-se à capital
do seu distrito e pagavam consulta privada.
Nos últimos tempos, profissionais de saúde têm
dificuldade em estabelecer-se e manter-se no interior, onde faltam muitas
coisas; muitos médicos e enfermeiros saem do setor público (que não remunera
satisfatoriamente e não dá perspetiva de carreira) para o privado, onde a
remuneração é mais compensatória, ao menos no imediato. E não há coragem
política para inverter a situação, permitindo que a saúde seja tratada como
mercadoria: quanto mais faturar a instituição, mais satisfeita se apresenta.
Todavia, nem sempre o serviço é satisfatório, apesar de bem publicitado.
Embora se deva pugnar pelas condições do parto em
circunstâncias de privacidade e da normalidade do que é viver em família,
devemos estar de sobreaviso para a hipótese de, repentinamente, um parto
considerado normal se complicar.
Em todo o caso, parece-me temerário querer,
desproporcionadamente, mobilizar uma plêiade de especialistas para um episódio
que, em princípio, é natural e normal.
No atinente ao papel de cada profissional, é de referir
que, embora um percurso académico longo, forneça um volume de conhecimento
científico e tecnológico maior do que um percurso académico mais breve, hoje,
os enfermeiros são dotados de um patamar de conhecimento e de experiência considerável.
Não são meros técnicos, como alguém pode supor. Por isso, sem me ater à
preconização das equipas multidisciplinares de que fala a DGS (neste aspeto,
estamos perante uma orientação-cartaz), entendo que é melhor ser atendido por
alguém do que andar quilómetros e quilómetros para ser atendido. E é uma
vergonha um SNS resignar-se a encerrar maternidades ou blocos de partos ou ter
serviços a funcionar alternadamente. Assim, qualquer um pode ser ministro da
Saúde, diretor-geral ou coisa que o valha.
2023.05.20 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário