quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Perceção, realidade, extremismos e moderação

 

Na tarde de 11 de janeiro, na sequência da operação da Polícia de Segurança Pública (PSP) que decorreu na rua do Benformoso, no bairro do Martim Moniz, em Lisboa, a 19 de dezembro de 2024, foi levada a cabo uma volumosa manifestação convocada por dezenas de organizações da sociedade civil, por partidos políticos e por associações de imigrantes.

O apelo à manifestação, de mais de 1600 subscritores, foi assinado pelo Bloco de Esquerda (BE), pela Juventude Comunista Portuguesa (JCP), pela Juventude Socialista (JS) e pelo Livre.

Entre os subscritores, contam-se as escritoras Alexandra Lucas Coelho e Ana Margarida Carvalho; os realizadores Cláudia Varejão, João Salaviza e Susana Sousa Dias; as cantoras Cristina Branco e Selma Uamusse e os músicos Luca Argel e Valete; a artista plástica Joana Villaverde; as atrizes Cláudia Semedo e Cucha Carvalheiro; as advogadas Carmo Afonso e Inês Ucha; o jurista Miguel Prata Roque; os jornalistas Anabela Mota Ribeiro e Daniel Oliveira; o humorista Diogo Faro; e historiadores, como Ana Balona de Oliveira, Irene Flunser Pimentel e Manuel Loff. Também se juntaram à convocatória os profissionais de saúde que enviaram carta aberta ao Presidente da República (PR), ao Parlamento e ao governo, contra a exclusão do acesso de estrangeiros em situação irregular ao Serviço Nacional de Saúde (SNS).

A ação de rua, que percorreu a Avenida Almirante Reis, entre a Alameda Dom Afonso Henriques e a Praça do Martim Moniz, teve participação ruidosa, mas ordeira, de milhares de pessoas, incluindo muitos migrantes, a carregar faixas onde se lia “Contra o racismo e a xenofobia” e a gritar palavras de ordem, como “Nem menos nem mais, direitos iguais”, “Juntos na rua, não há terra minha e tua”, “Não ao racismo”. E participaram também representantes do BE, do Partido Socialista (PS), do Partido Comunista Português (PCP), do Livre e do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN).

Participaram também inúmeras organizações antirracistas e de apoio a imigrantes, entre as quais a Solidariedade Imigrante, SOS Racismo e Vida Justa, associações, como a Casa do Brasil de Lisboa e o Moinho da Juventude, e organizações locais da Mouraria e dos Anjos, como Bangladesh Coletivo, Beahmanbaria Community of Portugal, Cozinha Comunitária dos Anjos, Renovar a Mouraria e Sirigaita.

Não se pode dizer que a manifestação era contra a polícia, nem que denotava algum tipo de extremismo (imigrantes a pedirem que os aceitem não é extremismo). Foi, certamente, um ato de protesto contra eventual exagero da PSP, no seu ato de prevenção e de contenção do crime. Também não constitui qualquer apologia, mesmo que implícita, do crime, como não o foi quando a multidão se manifestou, a propósito da morte de Odair Moniz por um agente da PSP. 

Também não se pode clamar que a polícia está a ser instrumentalizada pelo governo – as forças de segurança agem segundo a avaliação da perceção da realidade feita pelas suas hierarquias –, como não é desculpável uma atuação do presente com muitas similares do passado.

Assim como sucedeu por ocasião dos protestos contra a morte Odair Moniz, também desta vez, o Chega campeou uma vigília “pela autoridade e contra a impunidade”, pela defesa da ordem e pelo apoio às forças de segurança, em torno de palavras de ordem, como “Somos polícia”, “Limpar Portugal”, Malhar na esquerda”, “Encostem-nos à parede”. Aí, André Ventura acusou o governo de ter perdido a coragem, em relação às forças de segurança, e pediu mais ações policiais.

É difícil não ver conotação racista, anti-imigratória e xenófoba nesta vigília extremista. Com efeito, é verdade que o crime existe (é a realidade) e que deve ser prevenido, contido e combatido, mas é imoral acreditar na perceção (e aumentá-la) de que o crime está conexo com a imigração. Mais: a PSP e a Guarda Nacional Republicana (GNR) têm a missão de zelar pela manutenção da ordem pública e pela segurança dos cidadãos e dos seus bens, mas de forma proporcionada e equitativa, sem alinhar em falsas perceções.  Ora, há uma imagem que circula e indigna, porque, sem querer ou propositadamente, liga imigrantes ao crime, o que é falso (o crime não escolhe etnias); e há imigrantes que, sendo vítimas de crime, precisam de ser protegidos.

Na sequência da ação policial, em que foram detidos dois cidadãos portugueses, a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) abriu inquérito à ação policial e a Provedora de Justiça recebeu uma queixa subscrita por 700 pessoas, entre as quais deputados socialistas, do BE e do Livre.

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A este respeito, Eugénia Quaresma, diretora da Obra Católica Portuguesa de Migrações (OCPM) e responsável do Secretariado Nacional da Mobilidade Humana (SNMH), da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), sustenta que os cidadãos, independentemente da sua proveniência, “precisam de saber e sentir que a polícia existe para combater o crime”, e os autóctones precisam de saber que “ser imigrante não é crime”. Por conseguinte, segundo a responsável da OCPM, é preciso conhecer e investigar as causas do “alarmante aparato” que levou à circulação de imagens nas redes sociais em que se viam dezenas de pessoas encostadas à parede, de mãos no ar, para serem revistadas pela PSP. Quem passou na rua sentiu que as pessoas foram selecionadas e tinham em comum serem imigrantes. A PSP afirma que apenas dois portugueses foram detidos. Assim, é de questionar porque circula a imagem dos imigrantes.

Segundo Eugénia Quaresma, o senso comum diz que se encosta à parede o criminoso, o suspeito de crime ou a pessoa que desrespeite a autoridade. Não se sabe o que fizeram aquelas pessoas para serem abordadas dessa forma. Assim, preocupa-a o mal feito em nome do bem comum

Convicta de que “o crime não se determina pela proveniência” e de que “ser de uma cultura diferente também não é crime”, a responsável pela OCPM reconhece “o valor preventivo da fiscalização”, mas recorda que “é possível fiscalizar sem diminuir ou maltratar”. E, concluindo que “a ação policial deve ser proporcional à ação criminosa e tem de ser fundamentada”, deixa um apelo: “Mais do que nunca precisamos de conhecer os factos, [de] agir com base na realidade e não em conformidade com as perceções. Porque as aparências enganam.”

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Também D. José Ornelas, presidente da CEP, disse, no dia 11, em Fátima que a manifestação daquela tarde, em Lisboa, sob o lema “Não nos encostem à parede”, é uma “ação bonita” de dizer: “Nós não nos resignamos.”

Em declarações aos jornalistas no final do Encontro Sinodal nacional, que reuniu 300 pessoas das 21 dioceses portuguesas, o também bispo de Leiria-Fátima afirmou não querer fazer política com os acontecimentos, mas sustenta que é preciso um “gesto de dizer que não podemos ficar simplesmente parados e que também a Igreja não pode ficar”. “A sinodalidade tem tudo a ver com o estrangeiro, o migrante, porque a Igreja tem por vocação ser migrante, migrante nas culturas, migrante na História, migrante no tempo e também nas ideias”, afirmou o bispo.

Segundo o prelado do Lis, nem na Igreja nem, na sociedade as pessoas, se devem render à normalidade e à paciência. E a manifestação em causa e a indignação que traduz significam “a defesa da dignidade e significam projeto e a sede de um mundo melhor”.

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Como é do conhecimento público, gerou polémica a operação policial de 19 de dezembro, no Martim Moniz, cujo objetivo, segundo a PSP, foi transmitir à população um sentimento de segurança e agir perante um quadro de “muitas ocorrências de ofensas à integridade física, usando armas brancas”. Porém, a PSP não avançou números, nem há publicamente dados sobre criminalidade naquela área da cidade de Lisboa. As forças de segurança referem apenas um elevado número de ocorrências.

A PSP explicou que “uma operação especial de prevenção criminal”  legitima fazer outro tipo de diligências, nomeadamente, “a revista de cidadãos que se encontrem no local e revista de viaturas” que por ali circulem. No caso, o escopo foi deter suspeitos da prática de crimes de posse ilegal de armas, apreender armas que fossem encontradas no interior de veículos de suspeitos e aumentar o sentimento de segurança das pessoas que habitualmente utilizam os transportes públicos e aqueles espaços. Os resultados desmentem a perceção. A operação resultou em duas detenções e na apreensão de 3435 euros em numerário, de um passaporte e de diversos documentos por suspeita de auxílio a imigração ilegal, de 581,37 gramas de haxixe, de uma faca com mais 10 centímetros de lâmina e de um telemóvel que constava como furtado.

O primeiro-ministro (PM) Luís Montenegro – e é aqui que entra a perceção da suspeita da instrumentalização da PSP por parte do governo – já considerou necessário este tipo de operação, e com visibilidade, para transmitir uma sensação de segurança e de tranquilidade às populações. Até anunciara, em tempos (apesar de Portugal ser um país seguro), uma grande intervenção policial de dissuasão, nas ruas e nas estradas, para os cidadãos terem a perceção de segurança.

Posto isto, o criticável, na atuação policial, é a alegada desproporção de meios para os resultados obtidos. Muitas são as vozes de indignação com as imagens mostradas de cidadãos encostados à parede e as críticas por a operação ter visado essencialmente imigrantes, razão pela qual vários partidos de esquerda chamaram a ministra da Administração Interna ao Parlamento para que prestasse esclarecimentos.

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Entre as suas muitas qualidades, a empatia não parece ser o forte do PM, como ficou, mais uma vez claro, no que disse, no dia 11, quando estavam nas ruas as duas manifestações: “Num dia onde os extremos erguem, cada um, a sua bandeira em contraponto, em conflito aberto para o outro, nós somos o elemento aglutinador, de confluência, de moderação.”

Luís Montenegro não viu uma manifestação contra a polícia e outra a favor, pois teria elogiado a do Chega, e não viu uma manifestação pró-emigração e outra contra, teria elogiado a que juntou as esquerdas. Todavia, há um padrão, no governo, ao falar de segurança e emigração. Já tinha dito, friamente, que a ação que encostou dezenas de emigrantes à parede servia para “dissuasão de conduta criminosa”. Mais tarde, em entrevista ao Diário de Notícias (DN), tentou corrigir o tom: “Honestamente, também não gostei de ver… […]. Mas devo dizer outra coisa, com a mesma honestidade, lembro-me de ter visto muitas mais imagens daquelas, até noutro tipo de operação policial, de rusgas, nomeadamente, com fenómenos ligados à noite.”

Com a mesma sensação de frieza, o governo tratara as minorias, aquando da morte de Odair Moniz e dos tumultos subsequentes em várias zonas da capital. Deu, rapidamente, ordens para a polícia agir, teve muitas palavras para os portugueses que se sentiriam assustados. Porém, não ressaltou uma palavra para a família de Odair, nem um ministro foi ao bairro de Odair naqueles dias ou depois. Ao invés, o PR passou por lá e Isaltino Morais insistiu em defender os seus bairros, como se fossem mesmo seus.

A insensibilidade do governo não é só neste tema incomodante. Por exemplo, o ministro da Presidência apresentou uma lei que aumentava multas aos maquinistas com excesso de álcool no sangue, de forma tão crua que provocou uma greve. A notícia de uma dezena de mortes aquando da greve do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) levou uma secretária de Estado a acusar os jornalistas de “anemia” (por amnésia), quanto a problemas do INEM em governos anteriores, sem uma palavra às famílias enlutadas, que a ministra da Saúde demorou vários dias a fazer, em público. E a ministra da Administração Interna produziu uma Portaria que esteve em vigor nove dias, por não ter ouvido os sindicatos interessados, como a lei obriga.  

Porém, as sondagens sorriem a Luís Montenegro. Segundo a Aximage, a maioria considera positiva a operação policial no Benformoso, pois subiu, nos últimos dois meses, a distância entre a Aliança Democrática (AD) (33%) e o PS (27%). O observador utilitarista entenderá que é curta vantagem para chegar à maioria, mas o humanista dirá que não se governa o país na base da divisão. Parece que muitos querem o “quanto pior, melhor”.

Por isso, é de valorizar o segmento discursivo da ministra da Justiça, na abertura do Ano Judicial, a 13 de janeiro. Surpreendeu ouvir Rita Júdice confrontar o seleto auditório com a morte de uma mulher vítima de violência doméstica – desafio ousado, atirado na cerimónia mais tradicional, num dos mais conservadores setores profissionais, numa das mais pesadas salas do país. Até parecia que a governante requeria que sentissem a morte e a dor dos filhos, dos familiares e dos amigos) para perceberem a urgência de agir. Pondo-se no lugar das vítimas, a governante criou desconforto e conquistou atenções. O discurso teve empatia, o que falta no governo, em geral, e é um problema político.

Rita Júdice focou o problema da violência doméstica, o mesmo que levou o PM a dizer-se “convicto” de que o aumento dos casos reportados se devia ao emento de denúncias, e não a um aumento real. E, como titular da pasta da Justiça, mostrou que é possível juntar empatia e firmeza. Talvez esteja aqui uma nota de esperança, quanto à empatia de que precisamos.

Perante atos e situações sociais graves, não se entende a pretensa equidistância e moderação. A moderação e a proporção são para a feitura de diplomas legislativos e regulamentares e para a atuação das forças da ordem. Todavia, governa-se demasiado para as perceções e para as sondagens, quando se devia governar para a realidade e promover séria pesquisa, sempre que as perceções pareçam iludir a realidade. Não se deve ver extremismo na reivindicação de direitos fundamentais, nem se deve chamar moderação à radicalização. É preciso clamar que os números não concluir pela conexão entre criminalidade e aumento de imigrantes. De facto, há zonas das cidades onde a insegurança aumenta e que merecem séria intervenção, mas não só policial.

Ainda no dia 12, uma rixa no Benformoso causou sete vítimas, tendo sido três hospitalizadas, o que impõe investigação, quiçá julgamento, mas sem generalização, nem antecipação ao juízo dos tribunais. Enfim, precisamos de mais factos e de menos perceções e sensações.

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2025.01.15 – Louro de Carvalho

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