Na tarde de 11 de janeiro, na sequência
da operação da Polícia de Segurança Pública (PSP) que decorreu na rua do Benformoso, no bairro do Martim Moniz, em Lisboa, a 19 de
dezembro de 2024, foi levada a cabo uma volumosa manifestação convocada por
dezenas de organizações da sociedade civil, por partidos políticos e por
associações de imigrantes.
O apelo à manifestação, de mais de 1600
subscritores, foi assinado pelo Bloco de Esquerda (BE), pela Juventude
Comunista Portuguesa (JCP), pela Juventude Socialista (JS) e pelo Livre.
Entre os subscritores, contam-se as escritoras
Alexandra Lucas Coelho e Ana Margarida Carvalho; os realizadores Cláudia
Varejão, João Salaviza e Susana Sousa Dias; as cantoras Cristina Branco e Selma
Uamusse e os músicos Luca Argel e Valete; a artista plástica Joana Villaverde;
as atrizes Cláudia Semedo e Cucha Carvalheiro; as advogadas Carmo Afonso e Inês
Ucha; o jurista Miguel Prata Roque; os jornalistas Anabela Mota Ribeiro e Daniel
Oliveira; o humorista Diogo Faro; e historiadores, como Ana Balona de Oliveira,
Irene Flunser Pimentel e Manuel Loff. Também se juntaram à convocatória os
profissionais de saúde que enviaram carta aberta ao Presidente da
República (PR), ao Parlamento e ao governo, contra a exclusão do acesso de
estrangeiros em situação irregular ao Serviço Nacional de Saúde (SNS).
A ação de rua, que percorreu a Avenida Almirante Reis,
entre a Alameda Dom Afonso Henriques e a Praça do Martim Moniz, teve
participação ruidosa, mas ordeira, de milhares de pessoas, incluindo muitos
migrantes, a carregar faixas onde se lia “Contra o racismo e a xenofobia” e a
gritar palavras de ordem, como “Nem menos nem mais, direitos iguais”, “Juntos
na rua, não há terra minha e tua”, “Não ao racismo”. E participaram também representantes do BE, do Partido
Socialista (PS), do Partido Comunista Português (PCP), do Livre e do partido
Pessoas-Animais-Natureza (PAN).
Participaram também inúmeras organizações
antirracistas e de apoio a imigrantes, entre as quais a Solidariedade
Imigrante, SOS Racismo e Vida Justa, associações, como a Casa do Brasil de
Lisboa e o Moinho da Juventude, e organizações locais da Mouraria e dos Anjos,
como Bangladesh Coletivo, Beahmanbaria Community of Portugal, Cozinha Comunitária
dos Anjos, Renovar a Mouraria e Sirigaita.
Não se pode dizer que a manifestação era contra a
polícia, nem que denotava algum tipo de extremismo (imigrantes a pedirem que os
aceitem não é extremismo). Foi, certamente, um ato de protesto contra eventual
exagero da PSP, no seu ato de prevenção e de contenção do crime. Também não
constitui qualquer apologia, mesmo que implícita, do crime, como não o foi
quando a multidão se manifestou, a propósito da morte de Odair Moniz por um
agente da PSP.
Também não se pode clamar que a polícia está a ser
instrumentalizada pelo governo – as forças de segurança agem segundo a
avaliação da perceção da realidade feita pelas suas hierarquias –, como não é
desculpável uma atuação do presente com muitas similares do passado.
Assim como sucedeu por ocasião dos protestos contra a morte Odair Moniz,
também desta vez, o Chega campeou uma vigília
“pela autoridade e contra a impunidade”, pela defesa
da ordem e pelo apoio às forças de segurança, em torno de palavras de ordem,
como “Somos polícia”, “Limpar Portugal”, Malhar na esquerda”, “Encostem-nos à parede”. Aí, André
Ventura acusou o governo de ter perdido a coragem, em relação às forças de
segurança, e pediu mais ações policiais.
É difícil não ver conotação racista, anti-imigratória e xenófoba nesta
vigília extremista. Com efeito, é verdade que o crime existe (é a realidade) e
que deve ser prevenido, contido e combatido, mas é imoral acreditar na perceção
(e aumentá-la) de que o crime está conexo com a imigração. Mais: a PSP e a
Guarda Nacional Republicana (GNR) têm a missão de zelar pela manutenção da
ordem pública e pela segurança dos cidadãos e dos seus bens, mas de forma
proporcionada e equitativa, sem alinhar em falsas perceções. Ora, há uma imagem que circula e
indigna, porque, sem querer ou propositadamente, liga imigrantes ao crime, o
que é falso (o crime não escolhe etnias); e há imigrantes que, sendo
vítimas de crime, precisam de ser protegidos.
Na sequência da ação policial, em que foram detidos dois
cidadãos portugueses, a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) abriu
inquérito à ação policial e a Provedora de Justiça recebeu uma queixa subscrita
por 700 pessoas, entre as quais deputados socialistas, do BE e do Livre.
***
A este respeito, Eugénia Quaresma, diretora da Obra
Católica Portuguesa de Migrações (OCPM) e responsável do Secretariado Nacional
da Mobilidade Humana (SNMH), da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP),
sustenta que os cidadãos, independentemente da sua proveniência, “precisam de
saber e sentir que a polícia existe para combater o crime”, e os autóctones
precisam de saber que “ser imigrante não é crime”. Por conseguinte, segundo a
responsável da OCPM, é preciso conhecer e investigar as causas do “alarmante
aparato” que levou à circulação de imagens nas redes sociais em que se viam
dezenas de pessoas encostadas à parede, de mãos no ar, para serem revistadas
pela PSP. Quem passou na rua sentiu que as pessoas foram selecionadas e tinham
em comum serem imigrantes. A PSP afirma que apenas dois portugueses foram
detidos. Assim, é de questionar porque circula a imagem dos imigrantes.
Segundo Eugénia Quaresma, o senso comum diz que se
encosta à parede o criminoso, o suspeito de crime ou a pessoa que desrespeite a
autoridade. Não se sabe o que fizeram aquelas pessoas para serem abordadas
dessa forma. Assim, preocupa-a o mal feito em nome do bem comum
Convicta de que “o crime não se determina pela
proveniência” e de que “ser de uma cultura diferente também não é crime”, a
responsável pela OCPM reconhece “o valor preventivo da fiscalização”, mas
recorda que “é possível fiscalizar sem diminuir ou maltratar”. E, concluindo
que “a ação policial deve ser proporcional à ação criminosa e tem de ser
fundamentada”, deixa um apelo: “Mais do que nunca precisamos de conhecer os
factos, [de] agir com base na realidade e não em conformidade com as perceções.
Porque as aparências enganam.”
***
Também D. José Ornelas, presidente da CEP, disse, no
dia 11, em Fátima que a manifestação daquela tarde, em Lisboa, sob o lema “Não
nos encostem à parede”, é uma “ação bonita” de dizer: “Nós não nos resignamos.”
Em declarações aos jornalistas no final do Encontro
Sinodal nacional, que reuniu 300 pessoas das 21 dioceses portuguesas, o também
bispo de Leiria-Fátima afirmou não querer fazer política com os acontecimentos,
mas sustenta que é preciso um “gesto de dizer que não podemos ficar
simplesmente parados e que também a Igreja não pode ficar”. “A sinodalidade tem
tudo a ver com o estrangeiro, o migrante, porque a Igreja tem por vocação ser
migrante, migrante nas culturas, migrante na História, migrante no tempo e
também nas ideias”, afirmou o bispo.
Segundo o prelado do Lis, nem na Igreja nem, na
sociedade as pessoas, se devem render à normalidade e à paciência. E a
manifestação em causa e a indignação que traduz significam “a defesa da dignidade
e significam projeto e a sede de um mundo melhor”.
***
Como é do
conhecimento público, gerou polémica a operação policial de 19 de dezembro, no
Martim Moniz, cujo objetivo, segundo a PSP, foi transmitir à população um
sentimento de segurança e agir perante um quadro de “muitas ocorrências de
ofensas à integridade física, usando armas brancas”. Porém, a PSP não avançou
números, nem há publicamente dados sobre criminalidade naquela área da cidade
de Lisboa. As forças de segurança referem apenas um elevado número de
ocorrências.
A PSP
explicou que “uma operação especial de prevenção criminal” legitima fazer
outro tipo de diligências, nomeadamente, “a revista de cidadãos que se
encontrem no local e revista de viaturas” que por ali circulem. No caso, o
escopo foi deter suspeitos da prática de crimes de posse ilegal de armas,
apreender armas que fossem encontradas no interior de veículos de suspeitos e
aumentar o sentimento de segurança das pessoas que habitualmente utilizam os
transportes públicos e aqueles espaços. Os
resultados desmentem a perceção. A operação resultou em duas detenções e
na apreensão de 3435 euros em
numerário, de um passaporte e de diversos documentos por suspeita de auxílio a
imigração ilegal, de 581,37 gramas de haxixe, de uma faca com mais 10
centímetros de lâmina e de um telemóvel que constava como furtado.
O
primeiro-ministro (PM) Luís Montenegro – e é aqui que entra a perceção da
suspeita da instrumentalização da PSP por parte do governo – já considerou
necessário este tipo de operação, e com visibilidade, para transmitir uma
sensação de segurança e de tranquilidade às populações. Até anunciara, em
tempos (apesar de Portugal ser um país seguro), uma grande intervenção policial
de dissuasão, nas ruas e nas estradas, para os cidadãos terem a perceção de
segurança.
Posto isto,
o criticável, na atuação policial, é a alegada desproporção de meios para os
resultados obtidos. Muitas são as vozes de indignação com as imagens mostradas
de cidadãos encostados à parede e as críticas por a operação ter visado
essencialmente imigrantes, razão pela qual vários partidos de esquerda chamaram
a ministra da Administração Interna ao Parlamento para que prestasse
esclarecimentos.
***
Entre as suas
muitas qualidades, a empatia não parece ser o forte do PM, como ficou, mais uma
vez claro, no que disse, no dia 11, quando estavam nas ruas as duas
manifestações: “Num dia onde os
extremos erguem, cada um, a sua bandeira em contraponto, em conflito aberto
para o outro, nós somos o elemento aglutinador, de confluência, de moderação.”
Luís Montenegro
não viu uma manifestação contra a polícia e outra a favor, pois teria elogiado
a do Chega, e não viu uma manifestação pró-emigração
e outra contra, teria elogiado a que juntou as esquerdas. Todavia, há um padrão,
no governo, ao falar de segurança e emigração. Já tinha dito, friamente, que a
ação que encostou dezenas de emigrantes à parede servia para “dissuasão de
conduta criminosa”. Mais tarde, em entrevista ao Diário de Notícias (DN),
tentou corrigir o tom: “Honestamente, também não gostei de ver… […]. Mas devo dizer outra coisa, com a mesma honestidade,
lembro-me de ter visto muitas mais imagens daquelas, até noutro tipo de
operação policial, de rusgas, nomeadamente, com fenómenos ligados à noite.”
Com a mesma sensação de frieza, o governo tratara as
minorias, aquando da morte de Odair Moniz e dos tumultos subsequentes em várias
zonas da capital. Deu, rapidamente, ordens para a polícia agir, teve muitas
palavras para os portugueses que se sentiriam assustados. Porém, não ressaltou
uma palavra para a família de Odair, nem um ministro foi ao bairro de Odair naqueles
dias ou depois. Ao invés, o PR passou por lá e Isaltino Morais insistiu em
defender os seus bairros, como se fossem mesmo seus.
A insensibilidade do governo não é só neste tema
incomodante. Por exemplo, o ministro da Presidência apresentou uma lei que
aumentava multas aos maquinistas com excesso de álcool no sangue, de forma tão crua
que provocou uma greve. A notícia de uma dezena de mortes aquando da greve do Instituto
Nacional de Emergência Médica (INEM) levou uma secretária de Estado a acusar os
jornalistas de “anemia” (por amnésia), quanto a problemas do INEM em governos
anteriores, sem uma palavra às famílias enlutadas, que a ministra da Saúde
demorou vários dias a fazer, em público. E a ministra da Administração Interna
produziu uma Portaria que esteve em vigor nove dias, por não ter ouvido os sindicatos
interessados, como a lei obriga.
Porém,
as sondagens sorriem a Luís Montenegro.
Segundo a Aximage, a maioria considera positiva a operação policial no
Benformoso, pois subiu, nos últimos dois meses, a distância entre a Aliança
Democrática (AD) (33%) e o PS (27%). O observador utilitarista entenderá que é curta
vantagem para chegar à maioria, mas o humanista dirá que não se governa o país na
base da divisão. Parece que muitos querem o “quanto pior, melhor”.
Por isso, é de valorizar o segmento discursivo da ministra
da Justiça, na abertura do Ano Judicial, a 13 de janeiro. Surpreendeu
ouvir Rita Júdice confrontar o seleto auditório com a morte de uma mulher
vítima de violência doméstica – desafio ousado, atirado na cerimónia mais
tradicional, num dos mais conservadores setores profissionais, numa das mais pesadas
salas do país. Até parecia que a governante requeria que sentissem a morte e a
dor dos filhos, dos familiares e dos amigos) para perceberem a urgência de
agir. Pondo-se no lugar das vítimas, a governante criou desconforto e conquistou
atenções. O discurso teve empatia, o que falta no governo, em geral, e é um problema
político.
Rita Júdice focou o problema da violência doméstica, o
mesmo que levou o PM a dizer-se “convicto” de que o aumento dos casos
reportados se devia ao emento de denúncias, e não a um aumento real. E, como
titular da pasta da Justiça, mostrou que é possível juntar empatia e firmeza.
Talvez esteja aqui uma nota de esperança, quanto à empatia de que precisamos.
Perante atos e situações sociais graves, não se entende a
pretensa equidistância e moderação. A moderação e a proporção são para a
feitura de diplomas legislativos e regulamentares e para a atuação das forças
da ordem. Todavia, governa-se demasiado para as perceções e para as sondagens,
quando se devia governar para a realidade e promover séria pesquisa, sempre que
as perceções pareçam iludir a realidade. Não se deve ver extremismo na
reivindicação de direitos fundamentais, nem se deve chamar moderação à radicalização.
É preciso clamar que
os números não concluir pela conexão entre criminalidade e aumento de imigrantes.
De facto, há zonas das cidades onde a insegurança aumenta e que merecem séria intervenção,
mas não só policial.
Ainda
no dia 12, uma rixa no Benformoso causou sete vítimas, tendo sido três hospitalizadas,
o que impõe investigação, quiçá julgamento, mas sem generalização, nem antecipação
ao juízo dos tribunais. Enfim, precisamos de mais
factos e de menos perceções e sensações.
***
2025.01.15 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário