sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

AR não muda nome da CPI ao caso das gémeas luso-brasileiras

 

O caso das gémeas luso-brasileiras que foram tratadas no Hospital Santa Maria volta a ser notícia. A mãe das meninas Daniela Luzando Martins apresentou uma intimação contra a Assembleia da República (AR) e, a 9 de janeiro, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) deu-lhe razão.

A queixa sustenta que o nome da comissão parlamentar de inquérito (CPI) prejudica “o direito à privacidade, ao bom nome, e, acima de tudo, ao desenvolvimento psicológico digno” das meninas.

A intenção da mãe das crianças era que o nome da CPI em causa fosse alterado, para “garantir que o nome de Maité e [de] Lorena não continue a ser utilizado indevidamente, prejudicando o seu direito à privacidade, ao bom nome, ao esquecimento e, acima de tudo, ao seu desenvolvimento psicológico”. Face a tais argumentos, os juízes conselheiros consideraram “procedente a intimação […] por se julgar provada a violação dos direitos fundamentais ao bom nome, à reserva da vida privada e à autodeterminação pessoal”, condenando a AR a “deixar de utilizar pública, formal, informal e comunicacionalmente, a designação Comissão Parlamentar de Inquérito – Gémeas tratadas com o medicamento Zolgensma”.

Entretanto, a CPI ao caso das gémeas luso-brasileiras decidiu, a 10 de janeiro, solicitar ao presidente da AR que recorra da decisão do STA para mudar o nome, passando a usar a designação oficial completa.

A decisão foi anunciada pelo presidente da comissão, Rui Paulo Sousa, do Chega, em declarações aos jornalistas, após reunião de mesa e coordenadores, o qual revelou que a decisão do STA para mudar o nome não será acatada, mantendo-se o termo “gémeas” na designação da CPI, mas que passará a ser usada a denominação oficial, como também é sugerido pelo mesmo tribunal. Assim, a comissão passará a designar-se por “Comissão Parlamentar de Inquérito para verificação da legalidade e da conduta dos responsáveis políticos alegadamente envolvidos na prestação de cuidados de saúde a duas crianças (gémeas) tratadas com o medicamento Zolgensma”.

Porém, a comissão vai pedir ao presidente da AR, José Pedro Aguiar-Branco que avance com o recurso da decisão do STA e levará o assunto à conferência de líderes, devido à natureza política da questão. “[É] a própria Assembleia que está em causa, porque isto abre um precedente a que mais tarde, no futuro, um tribunal superior possa dizer qual o nome que se deve ou não deve usar em determinadas comissões ou até em outros eventuais grupos de trabalho”, frisou Rui Sousa, referindo que esta foi uma posição não unânime entre os coordenadores da CPI, pois mereceu a oposição do Livre, que pediu o acatamento da decisão do tribunal, numa reunião em que estiveram presentes o Partido Social Democrata (PSD), o Partido Socialista (PS), o Chega e a Iniciativa Liberal (IL), que se uniram na rejeição da decisão do tribunal.

Para o presidente da CPI, a decisão do STA viola a separação de poderes e constitui “ingerência num órgão de soberania”, com o objetivo de “alterar algo que vem do plenário da Assembleia”. “Uma das bases em que este acórdão assenta é que a Comissão efetua atos administrativos, o que é completamente errado, porque as Comissões de Inquérito, no fundo, tratam de atos políticos e não administrativos. Portanto, a própria base do acórdão, da decisão judicial emanada do Supremo Tribunal Administrativo está errada logo de base”, argumentou Rui Paulo Sousa, acrescentando que que não faz sentido trocar o nome da comissão de “gémeas” para “crianças”, uma vez que as gémeas não são as únicas no Mundo, não estando, assim, em causa a sua privacidade. 

O requerimento para levar a decisão do STA à conferência de líderes e para recorrer da deliberação judicial, foi votado, após a primeira audição da tarde do dia 10, e aprovado com votos favoráveis do PSD, do PS e do Chega, tendo merecido a abstenção do Livre e recebido apenas o voto contra de Paulo Muacho, deputado do Livre. Não estiveram presentes nas votações a IL, o Bloco de Esquerda (BE), o Partido Comunista Português (PCP), o partido do Centro Democrático Social-Partido Popular (CDS-PP) e o partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN).

A questão foi debatida em comissão, com António Rodrigues, deputado do PSD a manifestar-se surpreendido com a decisão do tribunal, por entender que constituiu uma violação do princípio da separação de poderes, posição secundada por André Ventura, líder e deputado do Chega.

O deputado do PS André Rijo sublinhou a importância de esta matéria ser levada à conferência de líderes, porque pode estar em cima da mesa a abertura de um “precedente grave” com a deliberação do STA. E Paulo Muacho, do Livre, disse não acompanhar a ideia de que as deliberações da AR não possam ser alvo de uma decisão judicial, referindo que a constituição, além da separação de poderes, prevê a sua interdependência e sublinhou que a decisão do STA merece a reflexão dos deputados.

***

Contudo, há mais novidades quanto à CPI. António Lacerda Sales, ex-secretário de Estado da Saúde, será ouvido no dia 24, e o mesmo vai acontecer com a ministra Ana Paula Martins no dia 17. A informação foi confirmada à agência Lusa pelo presidente da comissão.

Lacerda Sales, arguido no processo, juntamente com Nuno Rebelo de Sousa (filho Presidente da República) e o ex-diretor clínico do Hospital Santa Maria Luís Pinheiro, regressa à AR, oito meses depois, na sequência de pedido do Chega, de caráter obrigatório, após vários depoentes referirem a possível interferência do antigo governante no pedido de marcação da primeira consulta das crianças. Na primeira vez que foi ouvido, a 17 de junho, disse não estar disponível para “servir de bode expiatório num processo político-mediático, a qualquer custo”, no caso das crianças tratadas com medicamento Zolgensma, no Hospital Santa Maria, em Lisboa, em 2020. E salientou que “nenhum membro do Ministério da Saúde pode ter interferência na marcação de consultas ou na administração de medicamentos”, criticando o relatório da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) e a auditoria do Hospital Santa Maria. “Eu não posso aceitar o relatório da IGAS e a auditoria do Hospital Santa Maria. No entanto, apesar das suas limitações, a auditoria [do Santa Maria] concluiu bem que não houve qualquer favorecimento nestas crianças. As regras clínicas foram respeitadas. Ninguém passou à frente”, declarou.

Já a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, será ouvida na qualidade de presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), à data que o caso foi noticiado.

Por sua vez, o ex-presidente do conselho de administração do CHLN, Daniel Ferro, será ouvido, no dia 14 de janeiro, no em que deporá o presidente do grupo Lusíadas Saúde, Vasco Antunes Pereira.

jornalista da TVI/CNN Sandra Felgueiras, que deu a conhecer o caso em novembro de 2023, será ouvida em 21 de janeiro.

Estas deverão ser as últimas audições na CPI, depois de serem ouvidos, a 10 de janeiro, o médico Tiago Proença dos Santos, do Hospital Santa Maria, e o diretor do Serviço de Medicina Física e Reabilitação da mesma unidade, Francisco Sampaio.

A comissão, constituída em maio de 2024, poderá ouvir ainda o Presidente da República (PR), já que Marcelo Rebelo de Sousa remeteu uma decisão para depois de concluídas as restantes audições e caso exista “matéria que o justifique”. O Chega insistiu neste pedido de audição, para pressionar uma resposta do chefe de Estado. De acordo com o Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares, “o Presidente da República, bem como os ex-presidentes da República, por factos de que tiveram conhecimento durante o exercício das suas funções e por causa delas, têm a faculdade, querendo, de depor perante uma comissão parlamentar de inquérito, gozando, nesse caso, se o preferirem, da prerrogativa de o fazer por escrito”.

Caso o PR decida não ser ouvido, a CPI deverá terminar as audições presenciais no dia 24, quando ouvirá, novamente, António Lacerda Sales, restando apenas o tempo necessário para elaborar e aprovar o respetivo relatório. Assim, existe o risco de o tribunal responder ao recurso, depois de audições terminarem.

Em causa está o tratamento hospitalar de duas crianças luso-brasileiras que receberam o Zolgensma, em 2020. Na altura, este tratamento, que visa controlar a propagação da atrofia muscular espinal, uma doença neurodegenerativa, custou dois milhões de euros, por pessoa.

***

No meio do caos das declarações na CPI, vale a pena atentar nas declarações do neuropediatra Tiago Proença dos Santos, a admitir que a médica Teresa Moreno foi “pressionada” a marcar a primeira consulta para as duas crianças tratadas com o medicamento Zolgensma, no Hospital Santa Maria. “Para mim é óbvio que houve. Alguém fez alguma coisa. Quem foi, não sei”, disse, a 10 de janeiro, o responsável pela marcação de primeiras consultas no Hospital de Santa Maria. 

O médico disse ter ouvido “vários dos nomes que aqui foram falados”, mas considerou que “só a doutora Teresa pode dizer quem a pressionou”. Referiu que nunca teve “interferência política na marcação de uma consulta”, nem nenhum colega lhe manifestou que tal tenha ocorrido. E revelou ter sido a pessoa que tomou a iniciativa e que redigiu a carta à administração do hospital, em novembro de 2019, que todos os neuropediatras do Santa Maria assinaram, a qual denunciava a existência, no Serviço Nacional de Saúde (SNS), de casos de “pessoas com a vida estável nos seus países de origem” que “vêm legalmente para o nosso país com o propósito único de terem cuidados de saúde gratuitos”. 

Porém, considera que a administração do Zolgensma a estas crianças foi a terapêutica “correta” e que “nunca” foi da opinião que “estas doentes não deviam a ser tratadas”. “Se elas viessem à minha consulta, eu seria o primeiro a prescrever o Zolgensma”, afirmou, vincando que não havia preocupação com uma possível “cunha”, cuja dimensão diz não ter tido conhecido, até o caso ter sido tornado público. 

Mais declarou que a missiva visava alertar para as implicações da primeira consulta, pois implicaria tratamento de custo elevado. “Não se tratava de ver uma criança com uma dor de cabeça que se resolvia na altura”, frisou, manifestando indignação por ter ouvido responsáveis políticos a afirmar que quatro milhões de euros (o custo do tratamento) era uma “gota” no orçamento do SNS, quando o hospital Santa Maria dá consulta, há vários anos, num pavilhão pré-fabricado a necessitar de obras e a construção de um novo pavilhão (que foi estimada em cerca de um milhão de euros) ainda não avançou, precisamente pelos custos.

O neuropediatra fala numa “preocupação ética” com a vinda das crianças para Portugal, quando a viagem implicava riscos para a saúde destas. “As crianças não estavam a morrer em casa dos pais. Estavam noutro país, a ser muito bem acompanhadas e, à data da primeira consulta, nem reuniam condições para se deslocar ao nosso país”, esclareceu, vincando: “Nós não salvámos estas doentes. Elas estavam salvas pelo tratamento que fizeram no Brasil” com o Nusinersen.  O primeiro e-mail da mãe enviado a Teresa Moreno não era um “pedido inocente”, a solicitar uma segunda opinião. Era explícita a vontade da família na administração do Zolgensma (por, sendo de administração única, contribuir para uma melhor qualidade de vida destas crianças.

***

Não se percebe a pertinência desta posição de interferência do STA no funcionamento da AR, britando, sem razão de peso, a separação de poderes. Como responde o presidente da CPI, não vale a pena não falar de “gémeas” para falar de “crianças”, pois, há muitas gémeas no Mundo e, no futuro, confrontando datas, lugares e intervenientes, qualquer investigador descobre os nomes destas duas crianças. Aliás, eles têm sido bem badalados fora da AR. É certo que as decisões dos tribunais prevalecem, mas só quando definitivas e com fundamentação sustentável. Além disso, embora seja compreensível que mãe e pai façam tudo pelos filhos, algumas diligências comportam riscos. Toleramos, compadecemo-nos (nem todos), mas não gostamos de ser fintados.

2025.01.10 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário