A SIC revelou, a 17 de janeiro, que o
diretor executivo do Serviço Nacional de Saúde (SNS), já demitido, acumulou,
durante mais de dois anos, as funções de diretor da delegação do Norte do Instituto
Nacional de Emergência Médica (INEM), sediada no Porto, com as de médico
tarefeiro nas Urgências de Faro e de Portimão.
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Em 22 de maio de 2024, o Ministério da Saúde anunciou
que tinha escolhido o médico militar António Gandra D’Almeida para suceder a
Fernando Araújo como diretor executivo do SNS e, no mês seguinte, o Conselho de
Ministros aprovou a sua designação para o cargo.
O agora demissionário, de 45
anos, é licenciado em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade
Nova de Lisboa e é tenente-coronel médico dos quadros permanentes do Exército e
especialista em cirurgia geral. Tem a competência em gestão de serviços de
saúde, emergência e medicina militar pela Ordem dos Médicos (OM). Foi diretor da delegação do INEM a partir de novembro
de 2021. Nas Forças Armadas (FA), acumulou funções de chefia e de coordenação.
E ocupava o cargo de
diretor-executivo do SNS, desde maio de 2024.
Foi escolhido pelo governo na sequência do pedido de
demissão apresentado por Fernando Araújo no final de abril de 2024, depois de
liderar a Direção Executiva do SNS (DE-SNS) durante cerca de 15 meses, alegando que não
queria ser obstáculo ao governo, nas políticas e nas medidas que considerasse
necessário implementar, até porque lhe foi exigido, intempestivamente,
minucioso relatório de avaliação do programa de reformas, então em curso, na
área da Saúde.
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De acordo com a lei (artigo 22.º do Estatuto do Gestor Público, aprovado
pela Lei n.º 71/2007, de 27 de março, cuja última alteração foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 50/2022, de 19 de julho), aquela acumulação era incompatível, mas
António Gandra D’Almeida conseguiu que o INEM o autorizasse, com a garantia de
que não receberia vencimento. No entanto, de acordo com os documentos a
que a SIC teve acesso, recebeu mais
de 200 mil euros, por esse serviço.
Os contratos dos hospitais eram celebrados com uma
empresa que Gandra D’Almeida criou com a mulher e da qual era gerente. Os
contratos dizem que os serviços médicos seriam prestados pelo cirurgião geral
nas unidades hospitalares e que esse trabalho valia 50 euros à hora.
Um especialista em direito administrativo ouvido pela Investigação SIC garante que é
irrelevante que os contratos e a cobrança fossem feitos pela empresa, porque
pertencia a Gandra D’Almeida.
Embora considere que a reportagem da SIC tem “imprecisões e falsidades” que “lesam”
o seu nome, o visado apresentou, de imediato, o pedido de demissão do cargo de
diretor executivo (CEO) do SNS, pedido logo aceite pela ministra da Saúde.
Numa nota enviada aos órgãos de comunicação social, o militar
explica: “Embora entenda que não cometi qualquer ilegalidade ou irregularidade,
para defesa do SNS e, com não menos importância, para proteção da minha Família
e do futuro que queremos seja de dignidade, pedi, hoje mesmo, a Sua Excelência
a Ministra da Saúde, que me dispense, de imediato, do exercício das minhas
atuais funções.”
A
Ministra da Saúde, “atendendo às circunstâncias e a importância de preservar o
SNS”, aceitou o pedido de demissão, agradecendo o “trabalho competente”
realizado por Gandra D’Almeida, esperando que “a situação se esclareça no mais
breve prazo”. E anunciou que o sucessor “será anunciado nos próximos dias”.
Por seu turno, a Inspeção-Geral das
Atividades em Saúde (IGAS) adiantou que irá abrir um processo de inspeção.
Gandra D’Almeida sustenta que a peça da SIC” contém imprecisões e
falsidades que lesam” o seu “bom nome e, portanto, a condição primeira para que
possa servir, com toda a liberdade o SNS, os seus profissionais e os seus
utentes, e honrar o convite que” lhe “foi feito pelo governo”.
De acordo com uma notícia do Público,
de 28 de novembro, o diretor executivo do SNS estava a ser investigado pela IGAS,
após denúncia anónima sobre eventual incumprimento “das normas e orientações
técnicas do Sistema Integrado de Gestão do Acesso [SIGA SNS]”. Ou seja,
o IGAS estava a averiguar se a cirurgia plástica a que o visado foi submetido,
em outubro, no Hospital de Gaia, terá respeitado as regras relativas às listas
de espera no SNS ou se terá passado à frente de outros doentes na mesma
situação.
As listas de espera para cirurgia têm tempos que variam de acordo
com a urgência do procedimento, podendo ir dos três dias (em caso de urgência)
aos 180 dias (no caso da “prioridade normal”). A cirurgia do diretor do SNS não
seria urgente.
Porém,
como era de esperar, Gandra D’Almeida garantiu que “tudo foi feito segundo as
regras”.
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A reportagem da SIC e a demissão de Gandra D’Almeida (com
apóstrofo) constituíram surpresa para a opinião pública. No entanto, as reações
não se fizeram esperar.
O bastonário da Ordem dos Médicos (OM) considerou, a 18 de
janeiro, que o governo tem de encontrar “muito rapidamente” um novo
diretor-executivo do SNS e que a escolha terá de ser técnica e não
político-partidária. “A nomeação tem de
ser fundamentalmente técnica e não, como, muitas vezes, vemos, nomeações político-partidárias,
que é a última coisa que deve ser feita neste setor e, sobretudo, à frente da
direção executiva do Serviço Nacional de Saúde”, declarou Carlos Cortes à Lusa,
vincando que o lugar “não pode ficar vazio durante muito tempo”.
“Eu julgo que, no início da próxima semana, agora já na
segunda-feira, tem de haver um nome a ser apresentado pelo governo, porque nós
não estamos, propriamente, numa situação tranquila. Há enormes preocupações
sobre o Serviço Nacional de Saúde, e nós precisamos, efetivamente, de uma
liderança forte, para resolver os problemas do SNS”, disse, frisando que o pedido de demissão de Gandra
D’Almeida “é compreensível” e que “até reflete uma grande dignidade, tendo em conta
as suspeitas que foram levantadas num programa de televisão e que ainda têm de
ser confirmadas”. E salientou que o caso põe “uma
nuvem negra sobre a intervenção do diretor-executivo do SNS”, mas dá uma
oportunidade ao governo de escolher um perfil de diretor executivo com caraterísticas
muito diferentes daquelas que tinha o anterior, embora ressalve não estar a
referir-se à pessoa em si.
O bastonário defende que o diretor-executivo tem de conhecer, “muito
bem, o sistema de saúde, em primeiro lugar, mas, sobretudo, necessariamente, o
Serviço Nacional de Saúde” e deve ser pessoa que “possa atravessar as mudanças
de governos e estar sempre focado, dedicado à direção executiva do Serviço Nacional
de Saúde, sem interferências político-partidárias”. Além disso, deverá ter
capacidade de liderança operacional, o que não tem acontecido.
“A criação da direção executiva foi muito importante, mas tem de
ser uma organização de chapéu, do ponto de vista técnico, que implementa
aquelas que são as diretrizes do governo, do Ministério da Saúde, mas que tem
uma grande capacidade de gestão, uma capacidade operacional, junto das ULS [Unidades
de Saúde Local], junto dos hospitais, junto dos centros de saúde”, sublinhou.
Já
a Federação Nacional dos Médicos (FNAM) considera que a demissão do
diretor-executivo do SNS demonstra o “desnorte” em que está o Ministério da
Saúde. “Este tipo de
situações são lamentáveis e demonstram bem o desnorte em que está, no fundo,
todo o Ministério da Saúde, liderado por Ana Paula Martins”, declarou à Lusa a
presidente da FNAM, Joana Bordalo e Sá.
De acordo com a presidente da FNAM, um elemento que integra um
cargo daquela natureza tem de ter, acima de tudo, competência técnica e um
currículo “que seja exímio” e que não seja dado a “conflitos de interesse”. “Aqui, um dos responsáveis por
tudo isto – não é o único, mas será o principal, porque foi quem escolheu – é,
mais uma vez, o Ministério da Saúde, de Ana Paula Martins, que optou por esta
escolha”, afirmou Joana Bordalo e Sá, considerando a necessidade de saber como
as escolhas são feitas, sublinhando que estas devem ter “uma participação ativa
dos profissionais” e vincando que todos os processos de escolhas para os cargos
de chefia que há nas diferentes instituições devem ser baseados “em processos
transparentes, democráticos e com participação dos profissionais”.
A dirigente sindical lamentou que, por vezes, se trate de “puras
nomeações e escolhas políticas” nas quais não se consegue prevenir que as
pessoas “não tenham este conflito de interesses”. Ora, “as duas grandes questões são
que Ana Paula Martins “não mostrou competência neste assunto”: no dia-a-dia, garantir
mais médicos no SNS; e, acima de tudo, na gestão do SNS.
Também o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) lamentou a
instabilidade na DE-SNS, apontando a necessidade de o diretor ser substituído,
“rapidamente”, para continuar a reforma em curso. “O SIM lamenta, antes de mais,
a instabilidade na direção e espera que a ministra [da Saúde] arranje um
substituto ou uma substituta, muito rapidamente, que seja alguém com créditos
firmados e que permita que os profissionais se revejam na sua competência e
liderança”, disse o secretário-geral do SIM, Nuno Rodrigues, em declarações à Lusa.
Para o dirigente sindical, é importante que o caminho que estava a
ser feito, “a reforma do SNS, iniciada pelo professor Fernando Araújo,
continuada pelo doutor Gandra D’Almeida e agora por quem vier a seguir, que
realmente se concretize”. Porém, reconhece que o SNS precisa de
“estabilidade e de objetivos” e de que a reorganização em curso aconteça de
facto. “E, por isso, precisamos de estabilidade na direção-executiva do
SNS, que foi criada até com esse propósito, mas que, infelizmente, por outras
[razões], de natureza distinta, as duas substituições [aconteceram]”,
considerou.
O secretário-geral do SIM lembrou os acordos, já firmados, do governo
com os técnicos do INEM, com os farmacêuticos e com os médicos, salientando que,
“pela parte salarial, está a ter a evolução no sentido correto”, faltando a
parte “da organização do SNS e da competitividade que todos queremos que o SNS
tenha”, falta essa concretização. Por isso, espera-se que “a ministra
encontre a pessoa certa para que esta reforma vá adiante”.
Também o secretário-geral do Partido Socialista (PS) acusou o governo
de incompetência, de desnorte e de falhar no setor da
Saúde, considerando que a demissão do diretor-executivo
do SNS fragiliza o executivo de Luís Montenegro. “O governo fez tudo para
que o [ex] diretor executivo, Fernando Araújo, se demitisse. Um
diretor executivo competente, consensual na sociedade portuguesa e que estava a
fazer um trabalho importante. Fez tudo para que o anterior diretor executivo
saísse de funções e não fez nada para ter um diretor executivo novo à altura
dos desafios que temos no SNS”, disse Pedro Nuno Santos aos jornalistas, à
chegada a Guimarães, para um almoço de apresentação da candidatura de Ricardo
Costa à autarquia local.
“O problema na saúde é de pessoas, é de equipas, e isso é
responsabilidade do governo, mas é também de políticas. E esta instabilidade
nas chefias, reparem, nós já vamos no terceiro presidente do INEM e já vamos
para o terceiro diretor executivo do SNS, num governo que tem dez meses. A
situação é grave e, neste momento, não temos nem uma equipa ministerial nem um
governo à altura para dar resposta a uma das áreas mais importantes da nossa
vida que é a Saúde”, defendeu o secretário-geral do PS.
Por
sua vez, o Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda (BE) anunciou que vai pedir
uma audição urgente de António Gandra D’Almeida e da ministra da Saúde.
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O caso impõe o tecimento de algumas considerações. Desde
logo, se o visado entende (alegou-o publicamente) que a reportagem contém “imprecisões
e falsidades”, deverá especificá-las. Além disso, não se percebe como, à face
dos deveres do militar do quadro permanente, tentou iludir a administração pública
(AP) que integra, como requisitado, autorizado ou em comissão de serviço.
Não se percebe como um ramo das FA tenha autorizado (se é que
autorizou) que o militar tenha constituído uma empresa familiar e seja seu gerente,
sem estar em regime de licença registada.
A lei deveria proibir o exercício do pagamento de serviço
subordinado por empresas constituídas ou a constituir, sobretudo se for só para
isso.
Depois, não é crível que o Hospital de Faro e o de Portimão contratassem
um médico (mesmo tarefeiro), sem conhecerem o seu currículo e que não
suspeitassem de que a empresa Gandra D’Almeida não
tinha a ver com o visado ou com a família. Irá a IGAS aferir se os
administradores dos referidos hospitais também terão culpas no cartório e
responsabilizá-los-á?
É de estranhar que só agora se levante um coro quase uníssono
contra as nomeações político-partidárias para a gestão dos serviços do Estado e
se venha a exigir um perfil de liderança, a nível de gestão, de firmeza, de comunicação
e diálogo, de transparência e de competência operacional.
A DE-SNS, aliás como todos os departamentos de topo da AP,
não é político-partidária (nem o cargo de secretário-geral do governo) e deve ultrapassar
as barreiras das legislaturas, embora respeitando as orientações superiores de politica
geral e setorial. Estes cargos não são de comando supremo, mas de comando
operacional, para cuja designação devem ser ouvidos os profissionais.
Não podemos ser governados por propagandistas, nem administrados
por oportunistas!
2025.01.18
– Louro de Carvalho
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