A 6 de janeiro, o cardeal Américo Aguiar, na qualidade
de representante da Igreja Católica, entregou ao presidente da Assembleia da
República (AR) um pedido para uma amnistia para reclusos, no quadro do apelo do
papa, no início do Jubileu de 2025, uma celebração que ocorre, de modo
ordinário, a cada 25 anos, juntando várias celebrações, para assinalar a fé e para
responder aos desafios de cada época.
Este é 27.º jubileu ordinário da Igreja Católica e o
primeiro deste papa, que segue a tradição de, a cada 25 anos, celebrar um “Ano
Santo” dedicado à consolidação da fé e à solidariedade e durante o qual a
Igreja concede indulgências e o perdão das culpas e das penas.
Francisco dedicou este Jubileu ao tema da esperança e
sublinhou essa mensagem quando abriu a Porta Santa, a 26 de dezembro, na prisão
de Rebibbia, em Roma, numa tentativa de dar aos reclusos a esperança de um
futuro melhor.
A este respeito, o também bispo de Setúbal declarou à Lusa: “Podemos ter, como diz o papa, um gesto
de esperança e de confiança, em relação àqueles nossos concidadãos que, em
certo momento da sua vida, cometeram uma falha, cometeram um crime e estão a
cumprir as consequências daquilo que foram os seus atos.”
O pedido de amnistia e de perdão de dívidas surgiu
pela voz do Papa, na “Spes non confundit” (A esperança não confunde), de 9
de maio de 2024, a bula de
proclamação do Jubileu católico e foi repetido aquando da abertura da Porta
Santa, a 24 de dezembro de 2024, e os bispos portugueses cumprem assim o pedido
formal para que os deputados discutam a proposta.
Como explicou o purpurado, o pedido foi entregue ao presidente da AR, José Pedro
Aguiar-Branco, e será também dirigido aos diferentes grupos parlamentares.
Portugal celebra também os 50 anos do regime
democrático e Américo Aguiar espera que os deputados discutam, em 2025, uma
petição já entregue, “apresentada por associações ligadas ao trabalho junto dos
reclusos”, para uma amnistia. “Essa petição está à espera de agendamento para ser avaliada” e “nós
vimos pedir que atendam a esse pedido”, disse o bispo, que remeteu para os
eleitos a decisão sobre os moldes da amnistia, desde que se garanta alguma “transversalidade”,
como foi pedido por Francisco, “dentro daquilo que é a sensibilidade e a
legislação de cada país”.
Em Portugal, “nós sabemos, por exemplo, que as pessoas
são muito sensíveis a que se exclua, por exemplo, aquilo que são os crimes de
sangue e aquilo que são os crimes de violência muito significativa e que estão
tipificados”, disse Américo Aguiar, recordando que a amnistia de crimes para
jovens na Jornada Mundial da Juventude (JMJ), em Lisboa, gerou “um sentimento
de revolta e de tristeza” junto de quem não cumpria os requisitos etários então
definidos.
O trabalho pastoral dos movimentos católicos junto da
comunidade prisional é uma prioridade da igreja, admitiu o cardeal. “Infelizmente, só se preocupam com os presos a
sua família, os seus amigos, os seus conhecidos e o mundo do voluntariado que
trabalha nas cadeias”, porque o resto da sociedade “não tem muita atenção, nem
muita sensibilidade” para os seus problemas. “Aliás, teoricamente até temos
um sentimento em relação aos presos de que quanto pior, melhor”, o que “é
triste” e mostra que não se olha para os reclusos como pessoas de pleno
direito.
Ora, “como Estado de direito, temos de entender que os
presos só estão limitados na sua liberdade” e não na sua “dignidade”, pelo que
ainda há “muito caminho para fazer”, seja nas infraestruturas dos
estabelecimentos prisionais, seja nas condições de habitabilidade das prisões.
Por isso, o bispo de Setúbal, que esteve na manhã do
dia 6, no estabelecimento prisional do Montijo, pede ao Estado “um investimento”
adequado para corrigir as lacunas existentes. “Queria dar uma palavra de agradecimento ao corpo da guarda
prisional, aos trabalhadores administrativos e dirigentes do mundo das cadeias,
porque fazem milagres com os meios cada vez mais limitados ao seu dispor”,
vincou.
***
O
Chega, a Iniciativa Liberal (IL) e o partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN)
foram rápidos a mostrarem-se contra o pedido da Igreja Católica de concessão de
amnistia a reclusos, enquanto o Partido Comunista Português (PCP) pondera
acompanhar a proposta e o Bloco de Esquerda (BE) irá apresentar uma iniciativa
própria. O Chega mostra-se “contra qualquer tipo de redução-perdão de penas”, o
que não surpreende, dada a sua linha ideológica securitária e xenófoba.
A
IL diz que, “por princípio”, é contra uma “intromissão reiterada do poder
político em matérias que são da competência da justiça” e que a amnistia aprovada
por ocasião da JMJ, há pouco mais de um ano, esgotou, de momento, a
oportunidade para este tipo de iniciativas”.
Ora,
alegar intromissão reiterada do poder político em matérias da competência da
justiça não persuade. Com efeito, o poder judicial é poder político; e a Constituição,
tal como sustenta que as decisões dos tribunais prevalecem sobre as de quaisquer
outras autoridades, estabelece, como competência do Presidente da República, a concessão
de indultos (que é reiterada, todos os anos) e, como competência da AR, fazer
leis, incluindo a amnistia.
O
PAN esclareceu que não apresentará qualquer lei de amnistia, defendendo que
esta medida “não faz sentido”, recordando que se opôs, há dois anos, à “amnistia
papal”, e frisando que, sendo Portugal um Estado laico, “não deve indexar
amnistias penais a eventos religiosos”, como o Jubileu de 2025. Todavia, sugere
que, se se quer “evocar o Jubileu 2025, os políticos devem inspirar-se na
encíclica Laudato Si, que apela à promoção do respeito pela Natureza e
à erradicação da crueldade para com os animais”.
Do
meu ponto de vista, o PAN infirma de incoerência: o Estado é laico, tratando-se
de assunto atinente a pessoas, mas não o será, no atinente à Natureza e aos animais.
Além disso, a Igreja Católica, mais não faz do que formular um pedido ou
reforçar o pedido já formulado por outras entidades, nomeadamente, Obra
Vicentina de Auxílio a Reclusos (OVAR).
Por
seu turno, o PCP disse à Lusa que “pondera
acompanhar a iniciativa” e que irá “avaliar o enquadramento e os critérios”. E
o BE lembra que deu entrada na AR uma petição, subscrita online por
mais de 5800 pessoas, que pedia “uma amnistia-perdão de penas, de aplicação
ampla, de âmbito generalizado e de dimensão significativa”, por ocasião dos 50
anos do 25 de Abril. E assinala que interveio, “ativamente, no debate promovido
pelos promotores da petição”, na sua audição, e acompanhou as “conclusões do
relatório aprovado pela Comissão de Assuntos Constitucionais”. Por isso, “intervirá
na discussão da petição em plenário, estando a trabalhar no sentido da
apresentação de uma iniciativa própria”.
Ainda não se pronunciaram o Partido Social Democrata (PSD), o
Partido Socialista (PS), o partido do Centro Democrático Social-Partido Popular
(CDS-PP) e o Livre.
***
O Papa não podia ter sido mais claro, na bula de proclamação
do Ano Jubilar, ao pedir “formas de amnistia ou de perdão de pena” para os
reclusos. Porém, “é necessário que toda a Igreja se una em torno desse ponto 10
da bula”, apela o presidente da OVAR, Manuel Almeida dos Santos.
Relevando o gesto do cardeal Américo, que entregou, a 6 de
janeiro, uma carta na AR a pedir a amnistia para os reclusos, e das palavras do
administrador apostólico da Guarda (D. Manuel Felício) e do arcebispo de Évora (D.
Francisco Senra Coelho) – que referiram o pedido do Papa nas suas referências ao
Ano Jubilar –, defende “que muitos mais deveriam seguir o exemplo”. “Estamos
agradecidos ao D. Américo por ele ter corporizado a ideia do Papa, em relação
aos atos de clemência, perdão e misericórdia para com os reclusos. É a primeira
vez, que eu me recorde, que um bispo em Portugal se envolve, de uma forma tão
direta, numa questão de amnistia”, afirmou Manuel Almeida dos Santos, em
declarações ao 7MARGENS. “E também estamos
agradecidos aos bispos da Guarda e de Évora, que fizeram menções à
amnistia nas suas homilias de abertura do Ano Jubilar. Pensamos que as posições
deles podem ser decisivas para que os partidos olhem com outros olhos para a
petição que já havíamos entregado na Assembleia da República no ano passado e
que deverá em breve ser discutida no plenário”, continuou.
Não é a primeira vez que um bispo em Portugal se envolve numa
questão de amnistia. O cardeal D. Américo empenhou-se no caso da amnistia
decretada por ocasião da JMJ, embora o tenha feito como presidente da Fundação
JMJ, e não em representação da Igreja.
A petição em
causa, encabeçada pela OVAR e pela Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
(APAR), conta com mais de sete mil subscritores e foi entregue a 8 de maio de
2024, mas aguarda agendamento para discussão na AR. “O que pedimos é um perdão
de penas, de aplicação ampla, de âmbito generalizado e de dimensão
significativa. Até porque, como católicos, não podemos defender qualquer
discriminação de reclusos e de crimes. O perdão de penas deve ser para todos,
na linha daquela que tem sido a posição da Igreja, que acolhe todos, todos,
todos”, sublinha o presidente da OVAR.
***
O bispo de Setúbal recordou, a 29 de dezembro, aquando da
abertura da Porta Santa na sua diocese, a bula de proclamação do Jubileu 2025,
para defender uma amnistia para os presos, como sinal de “esperança” e visando
a reinserção na sociedade. E anunciou o perdão das dívidas pessoais e
individuais à Diocese de Setúbal, como forma de assinalar o Jubileu convocado
pelo Papa, que se inaugurou solenemente, naquele dia, em todas as dioceses.
Por sua vez, o administrador apostólico da Guarda diz que as dimensões
mais materiais e práticas do Jubileu foram esquecidas, pois o que se nota no
anúncio dos Jubileus é a prática da Indulgência, as peregrinações e visitas aos
lugares jubilares e a oração recomendada nesses lugares. Todavia, a “Spes non confundit”
retoma as preocupações do ano jubilar, segundo a tradição judaica. E cita as
palavras do papa sobre os reclusos: “Penso nos presos… E proponho aos governos
que, no ano jubilar, tomem iniciativas que lhes restituam a esperança, como
sejam formas de amnistia ou de perdão da pena que ajudem as pessoas a recuperar
a confiança em si mesmas e na sociedade, com percursos de reinserção na
comunidade aos quais corresponda um compromisso concreto de cumprir as leis.”
E diz o prelado emérito egitaniense: “Todos compreendemos que a
realidade das cadeias é um mundo difícil de tratar, mas que não nos pode deixar
parados. Prestamos homenagem aos serviços da pastoral prisional, com os seus muitos
voluntários, que não cessam de levar aos prisioneiros o conforto e o
acolhimento que a sociedade lhes deve, acompanhando-os com o conforto da
esperança que nos vem da Pessoa de Jesus.”
Depois, refere que, segundo Francisco, “os bens da terra se destinam a
todos”. Assim, o papa renova o apelo para, “com o dinheiro usado em armas e
outras despesas militares, se constituir um fundo global para acabar com a fome
no Mundo”, e pede aos países mais ricos, que estabeleçam o perdão das dívidas
dos países mais pobres, que, de facto, nunca poderão pagá-las, pelo menos,
enquanto as circunstâncias atuais se mantiverem”. Daí, o seu apelo
premente: “Reformulemos as dívidas injustas e insolventes e saciemos os
famintos.” E D. Manuel Felício frisa que a preocupação por atender os que
correm o risco da exclusão social está presente no Decreto sobre a Indulgência
Jubilar, publicado em data de especial significado para os Portugueses, o dia
13 de maio último. Nele se diz que o benefício da Indulgência Jubilar se pode
adquirir, cumpridos os requisitos gerais, pela prática das obras de misericórdia,
lembrando “a visita aos doentes e aos que vivem em solidão; a visita aos presos
e, principalmente, a partilha de bens em favor dos mais necessitados”.
Também o arcebispo de Évora, na abertura do Ano Santo, a nível
diocesano, pediu que o Jubileu 2025 tenha “sinais de esperança” para os doentes
e para os profissionais de saúde. “Que sinais de esperança cheguem aos doentes
e [aos] profissionais de saúde, na promoção das qualidades exigidas aos espaços
e [aos] serviços hospitalares. Igual esperança deve ser dada aos cidadãos com
deficiências e debilidades. Também os idosos devem contar com sinais de
esperança e valorização até ao fim natural das suas vidas”, declarou, na
homilia da Missa a que presidiu na Catedral diocesana, recordando o percurso
dos jubileus, desde 1300, e vincando “a preocupação do coração do Papa em que o
Jubileu não se reduza apenas à incentivação do turismo religioso”.
“O Ano Santo pede-nos a valorização exclusiva da peregrinação
religiosa, que visa atingir o objetivo do Jubileu de Esperança que é a
interioridade da indulgência jubilar”, indicou D. Francisco Senra Coelho,
referindo uma série de situações que o Ano Santo pode ajudar a superar, com
apelos à “reconciliação pessoal, interpessoal, social, nacional e
internacional”.
O fim da “tragédia da guerra” e o “entusiasmo no futuro”,
para superar o “dramático envelhecimento populacional”, foram algumas das
preocupações apresentadas, bem como o desejo de “condições de educação,
recuperação e reinserção” para os reclusos, recordando que Francisco “propõe
mesmo a possibilidade de amnistia em casos credíveis de recuperação cívica e
social”, neste Jubileu da Esperança, bem como um perdão das dívidas aos países
mais pobres.
Na sua intervenção, o
arcebispo realçou a indicação do Papa para que, no Jubileu, os Santuários sejam
“lugares sagrados de acolhimento e espaços privilegiados de esperança”.
***
Em suma, os deputados não devem escudar-se na laicidade do
Estado para não debaterem um pedido de amnistia. Se não querem atrelar-se ao Jubileu
de 2025, bem como ao primeiro jubileu da criação das dioceses de Setúbal e de Santarém,
por desmembramento do Patriarcado de Lisboa (um exemplo de quebra do
centralismo lisboeta), podem explorar outros motivos para decretarem a
amnistia: os 50 anos de democracia; o centenário do nascimento de Mário Soares,
um dos criadores da nossa democracia; os 500 anos do nascimento de Camões, a antonomásia
dos poetas portugueses; os 500 anos da morte de Vasco da Gama, o almirante que
levou Portugal a terras do Oriente; e ainda estamos na década dos 500 anos da
morte de Pedro Álvares Cabral (1520), o protagonista oficial do descobrimento europeu
do Brasil.
Mais: se a direita política crê, mesmo, que o 25 de novembro
de 1975 foi a data que purificou a democracia dos excessos revolucionários, que
vote, em bloco pela amnistia, ou que não nos cante cantigas políticas de sereia.
E a nossa sociedade precisa do sobressalto humanitário pelo respeito
da dignidade de todos, mormente, dos doentes, dos reclusos e dos que vivem em
solidão.
2025.01.08
– Louro de Carvalho
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