domingo, 5 de janeiro de 2025

Convocação do Conselho de Estado é iniciativa do Presidente da República

 

Após o tiroteio de Viseu, no Palácio do Gelo, a 27 de dezembro de 2024, André Ventura anunciou que o seu partido iria convocar, para 7 de janeiro, um debate de urgência na Assembleia da República (AR) e exigiu que o Presidente da República (PR) se pronunciasse sobre “insegurança”, ouvindo previamente o Conselho de Estado (CE).

O líder do Chega descreveu, em conferência de imprensa, um clima de “violência a céu aberto” verificado em Portugal (um ajuste de contas entre famílias vitimou uma pessoa e feriu duas), reclama o compromisso da AR, do governo e do PR com pacote de medidas contra a insegurança e disse ter escrito, “a título pessoal” a Marcelo Rebelo de Sousa, apelando à convocação de um CE, para debater a situação de segurança do País.

Recentemente eleito conselheiro de Estado pela AR, Ventura implicou diretamente o PR: “Entendo que o Presidente da República deve ter uma palavra sobre o estado da insegurança em Portugal. O PR, como mais alto magistrado da nação, tem o direito, mas sobretudo o dever, de alertar o governo, a AR, e os restantes poderes públicos para a necessidade de dar mais autoridade à polícia, mais força às nossas forças de segurança, e a alteração da moldura jurídica para crimes graves como os que aconteceram ontem.”

Apesar de ser da exclusiva competência do chefe de Estado convocar a reunião dos conselheiros, Ventura decidiu, como conselheiro de Estado, escrever ao PR a sugerir a convocação e realização urgente de um CE, para analisar o estado de insegurança brutal que vivemos em Portugal. “Era importante que o PR desse uma palavra e era importante que fosse aconselhado, ou que pelo menos ouvisse, as forças vivas da sociedade”, esclareceu.

O Chega propôs-se alertar o poder político (parlamentar, governamental e presidencial), para a necessidade de rapidamente levar a cabo um pacote contra a insegurança aprovado na AR, em vigor em todo o território nacional, com foco no “combate às armas ilegais, passando por um aumento de penas para crimes relacionados com o crime organizado”, como o tráfico de droga, de seres humanos e a criação de redes de prostituição.Estes crimes estão a aumentar em Portugal, [da] parte de redes organizadas que aqui se instalaram, porque sentem que não há nenhum controlo, ou pouco controlo, sobre as suas atividades”, garante Ventura.

Trazer o tema da segurança a um debate de urgência na AR tem como objetivo poder, “pelo menos, chegar a um consenso de que estamos pior, de que a insegurança está a ser o novo dia a dia e o novo normal dos Portugueses”, pois o sucedido em Viseu “é o resultado de um país que, antes, era escondido e que não pode ser mais escondido. […] Está à vista de todos a cultura de impunidade que permitimos”. E Ventura descreveu a vida diária dos residentes em Portugal como sendo de “violência a céu aberto numa terra pacífica”, o que “devemos impedir”.

Porém, as estatísticas oficiais desmentem este retrato. O Índice de Bem-estar (IBE) em Portugal, recentemente publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), aponta a segurança pessoal como o item que registou uma evolução positiva mais pronunciada (65, em 2021, superando o último valor registado pré-pandemia, 64,5). Em contrapartida, o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2023 revela um aumento de cerca de 8% nos crimes registados em 2023, em comparação com 2022, bem como da criminalidade violenta, apesar da quebra em alguns tipos de violência, como os homicídios voluntários consumados. Porém, o RASI destaca crescimento significativo na taxa de resolução de crimes, continuando Portugal a figurar entre os países mais seguros do Mundo (no 6.º lugar no ranking do Global Peace Index).

No fim da conferência de imprensa, o presidente do Chega disse que há um problema com a etnia cigana, em Portugal, relacionando o sucedido em Viseu com a comunidade romani, apesar de não ter sido oficialmente identificada a etnia do suspeito, atualmente em fuga e procurado por várias autoridades, numa investigação liderada pela Polícia Judiciária (PJ).

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Os disparos em Viseu, feitos por um homem armado com pistola, ocorreram depois de uma discussão no interior do Palácio do Gelo, que se transferiu para a rua, onde foram disparados quatro tiros. O alerta foi dado, cerca das 18h20, pelos seguranças que alertaram a Polícia de Segurança Pública (PSP) que deslocou duas patrulhas e efetivos de intervenção para o local.

Fonte hospitalar confirmou o óbito e indicou que os feridos estavam estáveis e sob custódia policial. O autor dos disparos, homem com cerca de 50 e ao volante de um carro de alto cilindrada “está referenciado pelas autoridades e é residente no concelho de Viseu”, adiantou a PSP. Estará em fuga e “dispõe de ligações na comunidade”, indicou um responsável da PJ, que chegou ao local cerca das 20 horas, para assumir a direção das investigações.

À hora do tiroteio o centro comercial “funcionava normalmente, com clientes nas lojas e pessoas em passeio”. Foi evacuado Todo o complexo comercial, com 170 lojas, distribuídas por sete andares, que recebem milhares de visitantes, por dia.

Foi um “vigilante do centro comercial que viu passar um carro dos Bombeiros Sapadores e mandou parar para pedir auxílio médico”, segundo fonte da Proteção Civil. Para o local foram enviadas quatro ambulâncias do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) e meios dos bombeiros. A PSP cortou o acesso ao centro comercial e reforçou os meios policiais no local.

Fonte oficial do Palácio do Gelo confirmou o sucedido e garantiu que “foi ativado o protocolo de segurança”. As investigações prosseguem, sob a alçada da PJ.

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Em 2023, os crimes de corrupção subiram 28,8%, em relação a 2022. Este é um dos muitos dados do RASI. Há, no universo do crime de colarinho branco, 852 arguidos (-13,9% do quem em 2022) e 121 pessoas detidas (+26%). Destes arguidos, 20% são suspeitos de branqueamento de capitais.

Os dados extraídos do site da Procuradoria-Geral da República (PGR) revelam que houve quase 900 inquéritos instaurados com base nas operações de prevenção (levando ao mesmo número de suspensões de operações bancárias). Como consequência, 167 milhões de euros, bem como 20 milhões de libras e 19 milhões de dólares ficaram congelados durante este período de 2023.

A prevaricação de titular de cargo político foi o crime da área económico-financeira que registou maior crescimento, em 2023: mais 138%. Destacam-se, ainda, as subidas dos crimes de corrupção ativa no setor privado (60%), do branqueamento (47%) e do abuso de poder (46%).

Os que mais decresceram foram as insolvências (-15%), a fraude e o desvio de subsídio (-12%), os crimes fiscais e aduaneiros (-22%), ou a corrupção ativa no desporto (-20%).

Já na criminalidade geral, o número total de participações criminais foi de 371995, mais 28150 que no período homólogo de 2022 (+8,2%). É o número mais alto dos últimos dez anos.

Também a criminalidade grave aumentou, em relação ao ano anterior (+5,6%).

A delinquência juvenil registou um aumento de 8,7% no número de ocorrências. E é o valor mais alto dos últimos oito anos. Junto às escolas e no seu interior, houve um aumento global de ocorrências (+12,4%) e de ocorrências de natureza criminal (+16,1%). Alguns dados avulsos no meio escolar: registaram-se oito ameaças de bomba, 157 ofensas sexuais, duas mil agressões, mil roubos e furtos em escolas.

As investigações de auxílio à imigração ilegal foram das que mais cresceram (mais 68% de casos), bem como as de tráfico de pessoas (mais 29% de inquéritos). Em 2023, houve 145 arguidos ligados a estes dois crimes (mais 87 do que em 2022) e 64 detidos (mais 24). Outro dado preocupante: o crime de violência doméstica contra cônjuge é o que revela o maior número de registos entre toda a criminalidade participada (26041 casos).

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A segurança pessoal, um dos 10 índices que constituem o IBE, publicado pelo INE, a 16 de dezembro de 2024, foi o que registou uma “evolução positiva mais pronunciada”. De acordo com os dados, o índice para 2023 é de 65, superando o último valor registado pré-pandemia, 64,5. A variação deste domínio é tendencialmente positiva, embora com três decréscimos de 2006 a 2009, de 2016 a 2018 e de 2021 a 2022. Após ter atingido dos valores mais elevados nos anos da pandemia, em 2022, decresce e, em 2023, situa-se um pouco acima do nível de 2019.

Este índice de segurança pessoal tem como indicadores a taxa de criminalidade registada, a taxa de homicídio voluntário consumado, a taxa de mortalidade padronizada por acidentes com veículos a motor (por 100 mil habitantes), a proporção de pessoas que se sentem seguras, quando passeiam sozinhas, depois de escurecer, e o grau de confiança na polícia.

A taxa de criminalidade registada, em 2023, apresenta um decréscimo, estando abaixo dos 80, algo que não acontecia há 10 anos. De acordo com o INE, “todos os indicadores apresentam uma evolução positiva”, salientando-se “os relativos à mortalidade em acidentes com veículos a motor, a taxa de homicídio e o indicador de confiança na polícia”.

Os índices de segurança pessoal e do ambiente são os que, desde 2012, “exibiram os valores mais elevados do índice da qualidade de vida, refletindo assim uma posição relevante de Portugal nestas áreas, em termos internacionais”. A segurança pessoal é obtida “através da avaliação da criminalidade e da avaliação subjetiva da segurança pessoal”. Além deste índice, são considerados a saúde; o balanço vida-trabalho; a educação, conhecimento e competências; a participação cívica e governação; as relações sociais; o bem-estar subjetivo; e o ambiente. Estes domínios foram considerados para a avaliação da qualidade de vida. Já o bem-estar económico, a vulnerabilidade económica e o emprego são considerados na perspetiva das condições materiais de vida.

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O PR afirmou, a 3 de janeiro, ter considerado prudente consultar os demais conselheiros de Estado sobre o pedido do presidente do Chega de reunião sobre segurança, por ter sido feito por escrito. Porém, Carlos César, presidente do Partido Socialista (PS), devolveu-lhe o ónus da resposta.

À chegada ao Grémio Literário, em Lisboa, antes da cerimónia de entrega dos Prémios Gazeta, questionado pelos jornalistas sobre o que o levou a remeter a carta de Ventura aos outros conselheiros, justificou: “Porque é um pedido formulado por escrito e acho que eles têm direito, se quiserem, a pronunciar-se por escrito.”

O PR referiu que, normalmente, os pedidos são formulados no CE, onde os conselheiros podem sugerir, verbalmente, reuniões para futuro e, nesses casos, “discute-se à volta da mesa”. “Quando é por escrito, acho que era prudente, antes das próximas reuniões do Conselho, os senhores conselheiros dizerem também, se quiserem […], por escrito, o que pensam da ideia”, clarificou.

No dia 2, o PR informou, através de uma nota, que solicitou que a carta que recebeu de André Ventura fosse enviada aos demais conselheiros para transmitirem o que tivessem por conveniente.

Ventura foi um dos cinco conselheiros de Estado eleitos pela AR para a presente legislatura, por indicação do Chega, que é a terceira maior força parlamentar.

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A este respeito, Vital Moreira teceu, a 4 de janeiro, no blogue “Causa nossa”, sob o título “O que o Presidente não deve fazer (51): Onde não é chamado”, oportuno comentário em que me revejo. 

“O PR admite, explicitamente, que tal reunião poderá vir a ter lugar, se uma maioria deles tal entender”. Além de descartar a responsabilidade pela convocação do órgão consultivo, não se vê “cabimento político e constitucional da intervenção do CE nessa matéria”, de segurança.

Constitucionalmente, o CE, além dos casos de convocação obrigatória, sobre o exercício de competências presidenciais de maior impacto político, pode ser chamado, segundo Vital Moreira, a “aconselhar o PR no exercício das suas funções”, a seu pedido. Todavia, como diz, no blogue, “o PR não exerce nenhuma função, em relação à política de segurança, que é da exclusiva competência governamental, pela qual o governo é responsável, somente, perante o parlamento”.

O constitucionalista reitera que o chefe de Estado “insiste em instrumentalizar politicamente o Conselho de Estado […], transformando-o numa espécie de segunda câmara parlamentar, para se imiscuir onde não é chamado”, isto é, na condução da política nacional, que é do foro do governo, e para secundarizar o papel da AR no papel de “escrutínio político da atividade governativa”. E a questão é “se o PM [primeiro-ministro] e os deputados do governo e da oposição, que são membro do CE, devem continuar a ser cúmplices, à sua custa, deste abuso de poder presidencial, à margem da separação constitucional de poderes e repartição de responsabilidade política”.

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Assumir, em vez do PR, a iniciativa de agendar um CE parece inconstitucional e é antirregimental.

Nos termos da Constituição da República Portuguesa (CRP), a presidência do CE é uma competência do PR, “quanto a outros órgãos (cf artigo 133.º, alínea a), da CRP). Além disso, trata-se o “órgão político de consulta” do PR (cf artigo 141.º, da CRP), cabendo a este convocá-lo, quando for obrigatório ou quando tiver necessidade de aconselhamento. Por isso, um conselheiro exigir uma reunião do CE ou pedir (verbalmente ou por escrito) a discussão desta ou daquela matéria, em meu entender, é pôr o carro à frente dos bois. Por seu turno, o artigo 4.º do Regimento do Conselho de Estado estabelece que o CE “é presidido pelo Presidente da República, a quem compete a iniciativa de convocar as suas reuniões, a fixação da ordem de trabalhos e a direção destes” (n.º 1); e “não pode reunir sem presença do Presidente da República” (n.º 2).

Porém, o PR transformou-o em senado da República, estabelecendo a periodicidade de reuniões, e numa escola de formação, trazendo às suas sessões preletores de relevo internacional. Aliás, vi câmaras municipais e assembleias municipais serem instruídas por crânios de grande competência técnica, quando de trata de órgãos políticos. Enfim, há quem goste de salada mista!

2025.01.04 – Louro de Carvalho

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