No relatório
global referente a 2024, publicado a 16 de janeiro, a Human Rights Watch (HRW) acusa
Israel de “limpeza étnica”, na Faixa de Gaza; descreve o “clima de medo”,
imposto pela Rússia, em território ocupado da Ucrânia; denuncia o aumento do
racismo na União Europeia (UE); e identifica, em Portugal, a permissão legal da
esterilização forçada de mulheres portadoras de deficiência.
Tirana Hassan,
diretora executiva da HRW, observou, em comunicado, que “as democracias liberais nem sempre são
defensoras de confiança dos direitos humanos, a nível doméstico ou no
exterior”. Num ano marcado por conflitos armados e crises humanitárias, o
aumento da repressão autoritária alimentou a mobilização cívica pelo Mundo, de
que são exemplos os protestos contra a corrupção no Bangladesh, na Venezuela,
por causa da contagem de votos, e na Coreia do Sul, pela imposição (de curta duração)
da lei marcial.
Além disso, Hassan alerta que, “quando os governos
falham em agir para proteger civis em grave risco, não só os abandonam à morte
e ao sofrimento, mas também enfraquecem a proteção das pessoas em todo o Mundo,
o que leva a uma situação em que todos saem a perder”.
Efetivamente,
o relatório, de 554 páginas, aponta a deteção de violações de direitos humanos
por todo o Mundo – desde a proibição de ser ouvida, fora de casa, a voz da
mulher, no Afeganistão, à dissolução de 53 partidos políticos (e colocação de
54 sob vigilância), na Guiné-Conacri. E esta análise da situação de direitos humanos
em mais de 100 países critica também a UE e países com proximidade diplomática
com ela, como os Estados Unidos da América (EUA).
***
Sobre a dicotomia entre palavras e ação, na UE, o
relatório mostra que o fosso é acentuado no atinente à migração e a políticas
de asilo, no combate ao racismo e na proteção do estado de direito, assim como
denuncia que o pacto da migração e asilo da UE permite que países terceiros rejeitem
a entrada de pessoas, com base em termos vagos, como a “instrumentalização” da
migração, encorajando estados-membros a enviarem pessoas, de novo, para países
onde “podem enfrentar abusos ou repulsão em cadeia”. “A UE falhou largamente em falar contra
violações de direitos dos migrantes em países com que tem tais parcerias”,
considera o documento, referindo-se a acordos com países, como a Líbia, a Tunísia,
o Líbano, o Egito, a Mauritânia e Marrocos. A par disso, “numerosos países da
UE expressaram interesse ou apoiaram medidas para colocar a responsabilidade de
requerentes de asilo fora das suas fronteiras”.
A HRW sustenta que o ambiente político antes das eleições europeias foi
acompanhado do “aumento da generalização do racismo, da islamofobia, da antimigração
e de narrativas de extrema-direita”, no contexto da existência de quase 95
milhões de pessoas em risco de pobreza e exclusão social, e de “provas
crescentes de restrições ao espaço cívico”. Em alguns países europeus, as
autoridades restringiram, de forma desproporcional, la liberdade de expressão e
de reunião de manifestantes pró-Palestina e climáticos.
A esterilização forçada afeta mulheres e raparigas
portadoras de deficiência e é legal, pelo menos, em 12 estados-membros da UE,
incluindo a Bulgária, a Dinamarca e Portugal.
Portugal é mencionado na violência contra mulheres e na violência doméstica.
Há cerca de um ano, 20 associações enviaram carta aberta aos partidos
concorrentes às eleições legislativas, a pedir a criminalização da
esterilização forçada de pessoas portadoras de deficiência. Já em 2025, o Bloco
de Esquerda (BE) pretende criminalizar a prática, como noticiou o Diário de Notícias (DN), a 4 de janeiro, tendo
avançado com um projeto de lei para criminalizar a prática de “esterilização
forçada de pessoas com deficiência”, sustentando que configura “uma decisão
absolutamente irreversível para o resto da vida”, que incide, principalmente,
sobre menores do sexo feminino. A ideia é, “seguindo práticas de vários países
europeus, como a França, a Itália, a Alemanha ou a Espanha”, impedir “a
esterilização forçada de pessoas com deficiência, sem garantir que existe uma forma
de aferir a sua vontade”, o que passa por garantir que há “um processo clínico
acompanhado por uma equipa multidisciplinar, capaz de assegurar o envolvimento
da pessoa maior na tomada da decisão”.
Questionado
sobre se temos registo desta prática, o bloquista José Soeiro remete para a
carta aberta da associação Voz do Autista, subscrita por 20 entidades, como o
movimento SOS Racismo, a ILGA Portugal ou o Núcleo Feminista da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, que, por sua vez, remete para o relatório do
Fórum Europeu da Deficiência.
De acordo com
o documento da Voz do Autista, “os dados relativos à esterilização forçada são
inexistentes, desatualizados ou não estão desagregados”, pelo que é necessária
investigação para avaliar o número de pessoas submetidas a esterilização
forçada, em Portugal, e o contexto onde esta prática acontece. Por isso, a
associação apela “à execução do estudo nacional sobre violência contra
raparigas e mulheres com deficiência, que inclui o estudo sobre as práticas de
esterilização forçada, aprovado no Orçamento de Estado para 2023”.
No
respeitante à esterilização voluntária, o BE entende “que se deve garantir que
há equipas multidisciplinares que acompanham as pessoas com deficiência”, na
tomada de uma decisão pessoal, livre e informada e que, sempre que isso for
impossível, não se devem utilizar métodos de esterilização irreversíveis, mas
outro tipo de método terapêutico.
A discussão
em torno deste projeto de lei será ainda agendada e concretizada.
***
Na “terra da liberdade”, a HRW detetou políticas
fronteiriças abusivas – como a suspensão, por parte do presidente Joe Biden, do
direito de imigrantes que entram pela fronteira sul, sem autorização, a pedirem
asilo – que “violam as obrigações dos EUA” com o direito internacional. Também
destaca a expansão de restrições aos direitos reprodutivos, as “novas ameaças”
aos direitos LGBT, as restrições ao direito de voto e os abusos que, frequentemente,
têm como alvo as comunidades de cor ou que nelas mais se sentem. Mais: a administração de Biden “enviou ajuda militar a governos que violaram
o direito internacional, como o Egito e Israel, vendeu armas
a governos autocráticos, como o da Arábia Saudita, e enviou “munições de
fragmentação indiscriminadas e minas antipessoais para a Ucrânia”. Porém, há
nota positiva nas sanções dos EUA, por exemplo, a responsáveis do Uganda e a líderes
das Forças de Apoio Rápido do Sudão.
São antecipados problemas com a vitória de Donald Trump
nas eleições presidenciais. “O seu
histórico anterior no cargo e promessas de campanha explícitas geram várias
preocupações sobre as ameaças que o seu segundo mandato como presidente
podem colocar a um amplo leque de direitos humanos e a instituições
democráticas encarregadas de os defender”, escreve a HRW.
Ao longo de 2024, as violações de direitos humanos
imputados à Síria traduziram-se em detenções arbitrárias, em desaparecimentos, em
insegurança generalizada. Na ótica da HRW, a queda de Bashar al-Assad assinala
“uma nova oportunidade de responsabilização”. Apesar disso, grupos envolvidos
na queda do governo também foram responsáveis por abusos de direitos humanos e por
crimes de guerra; e as condições
no país continuam a não permitir o “regresso seguro e digno” de refugiados
sírios, até pela escolha de alguns países em deportar milhares de Sírios
ou pela colocação em pausa dos pedidos de asilo.
Tirana Hassan defendeu que quem assumir a liderança do
país deve “romper totalmente com a repressão e impunidade do passado”, pois até
as autocracias de longa data podem ser muito frágeis. “Autocratas que dependem
de outros governos para manter o seu regime repressivo estão sujeitos às
mudanças de cálculos políticos dos seus estados parceiros”, como se vê pelo
desvio de fundos da Rússia do apoio à Síria, no seguimento da invasão da
Ucrânia.
Sobre o ano em que Vladimir Putin assegurou um quinto
mandato, ao vencer as eleições presidenciais na Rússia, a HRW afirma que as
autoridades “intensificaram a sua repressão da sociedade civil e dissidência”. De
acordo com o relatório, os ataques não se limitaram à esfera política, mas foram
também direcionados aos direitos reprodutivos, com pressão sobre clínicas para
deixarem de realizar abortos. E, pelo
menos, 44 pessoas foram alvo de
condenações administrativas, por terem exibido símbolos do movimento LGBT,
por exemplo, ao publicarem a bandeira arco-íris online. Foi expandida legislação e usada como ferramenta para “abafar vozes a
denunciar a guerra”, para manter as restrições à liberdade de reunião do tempo
da pandemia (houve 1185 detenções em manifestações), e escalou a “retórica antimigração”.
As críticas a violações de direitos humanos, por parte
da Rússia, surgem também no capítulo da Ucrânia, com a HRW a dizer que as
forças russas “cometeram crimes de
guerra generalizados e outros abusos e mantiveram um clima de medo nas áreas da
Ucrânia ocupadas pela Rússia”. Sobressaem os ataques a áreas com elevada
densidade populacional, o uso de minas terrestres e de munições de fragmentação
– estas últimas também usadas por forças ucranianas –, o assédio para cidadãos
em zonas ocupadas pedirem passaporte russo e a rejeição de cuidados médicos
adequados a pessoas detidas sob acusações por motivações políticas.
A descrição dos danos infligidos na Faixa de Gaza é
acompanhada de números: 44 mil mortos (de acordo com Ministério da Saúde de
Gaza), o aumento de 300% dos abortos espontâneos ou o bloqueio da entrada de
83% de apoio alimentar, a partir de setembro. “Os ataques israelitas e as demolições por engenhos de combate e por
escavadoras militares destruíram ou danificaram 63% dos edifícios de Gaza,
tornando muita da Faixa [de Gaza] inabitável, constituindo clara limpeza étnica em algumas áreas e
violando o direito dos Palestinianos a regressarem”.
Israel cometeu “crime contra a Humanidade de
extermínio e genocídio”, ao vedar à população palestiniana, em Gaza, o acesso a
água, privação imposta através da restrição de água canalizada, de cortes de
eletricidade e de bloqueio a combustível necessário para geradores, levando ao
encerramento de instalações para dessalinização e tratamento de águas.
Do lado oposto, grupos armados” na Faixa de Gaza
mantinham 101 reféns e uma missão das Nações Unidas encontrou indícios de que
alguns reféns foram sujeitos a violência sexual.
A HRW destaca que, ao longo de mais de uma década do presidente
Xi Jinping no poder, houve um aumento da repressão na China. Aponta o dedo às ameaças a que Tibetanos e Uigures
são sujeitos, bem como a restrições de liberdades em Hong Kong. Temas
anteriormente tolerados ficaram fora de limites”. É o caso do desaparecimento
do economista que criticou políticas económicas, num grupo privado do WeChat,
ou a detenção do artista cujo trabalho criticava o legado de Mao Zedong. “O
controlo reforçado da informação, da parte do governo chinês, tem implicações
internacionais”, pois atingiu críticos da China que se exilaram e
estrangeiros no exterior. E, no atinente a Xinjiang, as palavras são duras: “O
governo chinês cometeu crimes contra a Humanidade, contra uigures e outros
muçulmanos turcos, como parte da abusiva ‘campanha contra o terrorismo
violento. […] Houve recurso a “detenções arbitrárias, a vigilância em massa, a trabalho
forçado, a perseguição religiosa e cultural e a separação de famílias.”
Em 2024, entrou em vigor uma nova Lei da Segurança
Nacional, em Hong Kong, ao abrigo da qual as autoridades detiveram, pelo menos,
304 pessoas. E o ano sofreu a “continuidade do declínio da liberdade de
imprensa”, a decisão da Justiça em considerar legal o bloqueio governamental da
música “glória a Hong Kong” e o maior julgamento de segurança nacional na
cidade, com 14 ativistas e ex-deputados condenados por “conspiração para
cometer subversão”.
***
Israel e a Rússia, agressores das duas guerras mais
mediáticas da atualidade, promoveram crimes contra a Humanidade, ao atacarem,
deliberadamente, civis e infraestruturas, como hospitais, e provocando cortes
de eletricidade, falta de água e fome.
Israel matou, deixou passar fome, forçou deslocações,
destruiu casas, escolas e hospitais, numa escala sem precedentes, na História
recente. Vários líderes – como o primeiro-ministro e o ex-ministro da Defesa
israelitas e os responsáveis militares e políticos do Hamas – têm mandados de
detenção internacional por crimes de guerra e contra a Humanidade, mas
continuam impunes. A par do balanço de dezenas de milhares de mortos e feridos,
“quase todos os Palestinianos, em Gaza, foram deslocados à força e todos
enfrentaram uma grave insegurança alimentar ou fome”.
Também a Rússia recorreu, regularmente, a ataques à
rede energética, aos hospitais e à segurança da Ucrânia, além de tentar, nas
áreas ocupadas, “à força e metodicamente, apagar a identidade ucraniana”,
incluindo pela imposição do currículo e da língua russos nas escolas. Porém, a
HRW vinca a “intensificação da repressão” interna, sobretudo, através de
rótulos “punitivos e estigmatizantes” como “agente”, “indesejável” e
“extremista”, que resultam em multas pesadas e em longas penas de prisão. E
destaca a morte na prisão do líder da oposição Alexei Navalny, quando cumpria
“uma pena draconiana”, assim como a vitória de Vladimir Putin numas eleições
onde a oposição foi eliminada, tendo, em outubro, o Conselho dos Direitos
Humanos da ONU assinalado “a deterioração significativa e contínua” dos
direitos humanos no país.
Em 2024, Moscovo reforçou a lei de censura de guerra
promulgada após a invasão da Ucrânia e permitiu o confisco de bens de pessoas
condenadas sob uma série de acusações sem fundamento. E continuou a usar a
legislação sobre “agentes estrangeiros” para atingir os media, os defensores
dos direitos humanos e outros críticos, tendo designado 64 organizações como “indesejáveis”.
A HRW destaca o aumento dos ataques feitos pelas
autoridades a migrantes da Ásia Central e a outras pessoas com aparência não
eslava, bem como a retórica antimigrante e o “regime de deportação” especial
para os estrangeiros que não tenham documentos de identidade válidos ou
autorização para permanecer na Rússia. Tais pessoas são colocadas num registo público
de “pessoas controladas”, proibidas de conduzir, de casar, de mudar de residência,
sem permissão, de abrir contas bancárias ou de fazer transações financeiras, e
podendo ser vigiadas digitalmente.
A HRW criticou o uso reiterado do veto russo no
Conselho de Segurança da ONU para impedir a responsabilização dos seus líderes
por crimes de guerra.
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Estados, como os Países Baixos, o Canadá e o Reino
Unido suspenderam transferências de armas para Israel, devido ao claro risco de
serem utilizadas em violações graves de direito internacional, mas os EUA aprovaram
mais de 100 vendas de armas e forneceram a Israel uma quantia sem precedentes
de 17,9 mil milhões de dólares em assistência de segurança.
Embora muitos governos da UE e os EUA tenham dito querer
justiça pelos crimes graves cometidos pelas forças russas e pelos exageros de
Israel, a responsabilização é lenta e suave.
2025.01.18 – Louro de Carvalho
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