O nascimento de Jesus num abrigo de animais e a sua
deposição no respetivo presépio foi um portentoso acontecimento da humildade
divina, tendo o menino envolto em panos e recostado na manjedoura sido o sinal
da condescendência divina (synkatábasis)
e assim apresentado aos pastores e cantado pelos anjos.
Contudo, depois desta passagem pelo “hospital”
improvisado, Jesus passa a ter uma vida normal, ainda que atribulada. E os
magos, na versão evangélica de Mateus, entraram na “casa” onde Ele estava com a
Mãe e, prostrados adoraram-No e ofereceram-Lhe presentes, constituindo este o
primeiro momento da Epifania do Senhor (a primeira epifania enquanto criança).
Com efeito, epifania é a revelação do Messias a todas as pessoas de todos os
povos, sem esquecer as pessoas mais próximas.
Assim, não é epifania apenas a adoração dos magos, mas
também o batismo de Jesus no Jordão e a mudança da água em vinho nas Bodas de
Caná da Galileia, aliás como toda a vida de Jesus, a culminar na cruz. Só não
sentiu a epifania de Deus quem não quis. Assim, o Menino passou no presépio,
mas não ficou lá: havia muito que andar no múnus da encarnação em ordem à
redenção.
***
“Epifania” provém do termo grego “epipháneia”
(do adjetivo “epiphanês”, “visível”, derivado do verbo “epiphaínomai”, aparecer”)
e é o sentimento que exprime súbita sensação de entendimento ou de
compreensão da essência de algo. Também significa a realização
de um sonho difícil de concretizar. O termo é usado nos sentidos filosófico e
literal, para indicar que alguém encontrou a última peça de um
quebra-cabeças e passou a ver a imagem. O termo é aplicado quando surge um
pensamento inspirado e iluminante, que parece ser divino em natureza. É este o
uso em língua inglesa, principalmente, como na expressão “I just had an epiphany”, o que
revela que ocorreu um pensamento, naquele instante, que foi considerado único e
inspirador, de uma natureza quase sobrenatural.
Também pode significar aparição ou manifestação de algo, normalmente conexo
com o contexto espiritual e divino. E, a nível filosófico, significa a
sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das
coisas, tendo significado similar ao termo inglês “insight”.
***
A liturgia da solenidade celebra a manifestação de
Jesus a todas as pessoas. O Menino do presépio é a luz que se acende na noite
do Mundo e atrai a si todos os povos da Terra. A luz encarnou na História e no Mundo,
iluminou os caminhos humanos e guiou-nos ao encontro da salvação.
A primeira
leitura (Is 60,1-6)
proclama a Jerusalém a chegada da luz salvadora que transfigurará o seu rosto,
iluminará o regresso a casa dos exilados na Babilónia e atrairá à cidade de
Deus povos de toda a Terra.
Os capítulos 56-66 do Livro de Isaías contêm uma série de profecias cuja proveniência não
é consensual. Para alguns, são textos de profeta anónimo, pós-exílico, que
exerceu o ministério em Jerusalém, após o regresso dos exilados da Babilónia,
nos anos 537/520 a.C.; para a maioria, são textos provindos de diversos autores
pós-exílicos, redigidos ao longo de um arco de tempo relativamente longo (entre
os séculos VI e V a.C.).
Situam-nos em Jerusalém, cidade que os Babilónios
deixaram em ruínas, em 586 a.C., e que estava a reerguer-se. As marcas do
passado notam-se nas pedras calcinadas; os filhos e filhas de Jerusalém que regressaram
do exílio são ainda em número reduzido; a pobreza geral obriga à lentidão e à modéstia
da reconstrução; os inimigos estão à espreita e a população está desanimada.
Porém, sonha-se com o dia em que Deus voltará à sua cidade para trazer a
salvação definitiva. Então, Jerusalém voltará a ser a cidade bela e harmoniosa,
o Templo será reconstruído e Deus habitará para sempre no meio do seu Povo.
O trecho em causa é a glorificação de Jerusalém, a cidade
da luz, a “cidade dos dois sóis”, o sol nascente e o sol poente: a cidade é
iluminada do nascer ao pôr-do-sol.
Jerusalém está imersa na escuridão da noite. Todavia,
de repente, brada a sentinela a anunciar a aurora. O sol aparece, do Oriente, atrás
das montanhas, e ilumina as pedras brancas do casario. A cidade está em
reconstrução, mas parece transfigurada pela luz matutina. É como se tivesse
tirado os vestidos negros de viúva e se vestisse de branco, qual noiva
preparada para acolher o amado.
O profeta-poeta, ao contemplar esta transformação,
sente-se inspirado e sonha com a Jerusalém nova, iluminada pela luz salvadora
de Deus. Quando a luz de Deus se levantar sobre Jerusalém e a iluminar
novamente, a cidade que parecia triste viúva, sem marido (porque Deus já não
morava no Templo, destruído e queimado) e abandonada pelos filhos (exilados na
Babilónia), vestir-se-á de alegria, como a jovem resplandecente no vestido de
noiva e adornada com belíssimas joias. Os filhos, exilados em terra
estrangeira, regressarão em triunfo, “trazidos nos braços”, devolvendo a
alegria e a vida à cidade. Mais: a luz salvadora de Deus que brilha sobre
Jerusalém atrairá homens e mulheres de todas as raças e nações, que confluirão
para Jerusalém, inundando-a de riquezas, sobretudo, o incenso, para o serviço
do Templo, e cantando o louvor de Deus.
Esta profecia acende a esperança nos corações cansados
e abatidos. Todos ficarão à espera do dia superfestivo em que brilhar essa luz
salvadora e transformadora, o que, segundo Mateus, aconteceu, com a vinda de
Jesus.
***
No Evangelho
(Mt 2,1-12) concretiza-se a
profecia de Isaías: ao encontro de Jesus vêm uns magos do Oriente, que representam
todos os povos da terra. Atentos aos sinais da chegada do Messias, procuram-No
com esperança até O encontrarem, reconhecem n’Ele a salvação de Deus e aceitam-No
como “o Senhor”. A salvação rejeitada pelos habitantes de Jerusalém torna-se dom
que Deus oferece a todos os homens, sem exceção.
É um episódio de rara beleza, que se tornou popular
entre os cristãos. Ao longo dos séculos, a piedade popular embelezou-o com
acrescentos que, na sua maior parte, não encontram eco no texto mateano. E os
biblistas sustentam que o relato encaixa na categoria do midrash
haggádico, um método de leitura e de exploração do texto bíblico muito
utilizado pelos rabis de Israel, que recorria a histórias fantasiosas para
ilustrar um ensinamento. Na verdade, Mateus pretende apresentar Jesus como o
enviado de Deus Pai, que vem oferecer a salvação de Deus aos homens de toda a Terra.
Na base da inspiração mateana estará a crença
generalizada, na região do Crescente Fértil, de que cada criança tinha a sua estrela
(melhor, o seu astro) e de que uma nova estrela anunciava um acontecimento que
mudaria a História. Provavelmente, Mateus também se terá inspirado num texto do
Livro dos Números, em que Balaão, “o
homem de olhar penetrante” (Nm
24,15), anuncia “uma estrela que sai de Jacob e um cetro flamejante que surge
do seio de Israel” (Nm 24,27), anúncio
que teve sempre claro sabor messiânico. Além disso, há referência ao rei que
governava a Palestina, então: Herodes, o Grande, falecido no ano 4 a.C., cerca
de dois anos após o nascimento de Jesus. Embora se tenha distinguido pelas grandes
obras que levou a cabo, foi cruel e despótico, sempre pronto a matar para
defender o seu trono.
A análise dos pormenores do relato confirma que a
preocupação catequética de Mateus.
Antes de mais, nota-se a insistência no facto de Jesus
ter nascido em Belém de Judá. É de recordar que Belém era a terra natal do rei
David e que era a Belém que estava ligada a família de David. Afirmar que Jesus
nasceu em Belém é ligá-Lo aos anúncios proféticos que falavam do Messias como o
descendente de David que havia de nascer em Belém e restaurar o reino ideal de
seu pai.
Em segundo lugar, temos a referência à estrela que
apareceu no céu e que guiou os magos para Belém. A interpretação histórica dessa
referência levou a complexos cálculos astronómicos para concluir que, no ano 6
a.C., uma conjunção de planetas explicaria o fenómeno luminoso da estrela mencionada
por Mateus. Por outro lado, andou-se à procura de um cometa que, por esta
época, devia ter sulcado os céus do antigo Médio Oriente. Debalde se procura
nos céus a estrela ou o cometa em causa, pois Mateus não está focado na historicidade
dos factos, mas em garantir que o Menino de Belém é a “estrela de Jacob” de que
falava o anúncio profético de Balaão e que se concretiza, com o seu nascimento,
a chegada da luz salvadora de que falava Isaías, que vai brilhar sobre
Jerusalém e atrair à cidade santa povos de toda a terra.
Há, ainda, as figuras dos magos. “Mágos”, termo de
origem persa, abarca vasto leque de significados e é aplicado a personalidades diversas:
mágicos, feiticeiros, charlatães, sacerdotes persas, propagandistas religiosos…
Aqui, pode designar astrólogos mesopotâmios, em contacto com o messianismo
judaico. Seja como for, os magos, em Mateus, representam os povos que se põem a
caminho de Jerusalém com as suas riquezas para encontrarem a luz salvadora de
Deus que brilha sobre a cidade santa. Jesus é, segundo Mateus e a Igreja
primitiva, essa luz.
Além de catequese sobre Jesus, o relato recolhe, de
forma paradigmática, duas atitudes que se repetem ao longo do Evangelho: Israel
rejeita Jesus, enquanto os magos do Oriente (pagãos) O adoram; Herodes e Jerusalém
ficam perturbados, ante a notícia do nascimento do menino e planeiam a sua
morte, quando os pagãos sentem grande alegria e reconhecem em Jesus o salvador.
Mateus anuncia, desde logo, que Jesus será rejeitado
pelo seu Povo, mas será acolhido pelos pagãos, que integrarão o novo Povo de
Deus. O itinerário dos magos reflete a caminhada dos pagãos ao encontro de
Jesus: estão atentos aos sinais; percebem que Jesus é a luz que traz a
salvação; põem-se, decididamente, a caminho, para O encontrarem; perguntam aos
Judeus – que conhecem as Escrituras – o que fazer; encontram Jesus; e adoram-No
como o Senhor. É possível que muitos pagano-cristãos da comunidade de Mateus
descobrissem, no relato, as etapas da sua caminhada em direção a Jesus.
***
A segunda
leitura (Ef 3,2-3a.5-6)
apresenta o desígnio salvador de Deus para toda a Humanidade.
A Carta aos
Efésios é uma carta de cativeiro, escrita por Paulo na prisão. Os que
aceitam a sua autoria paulina discutem qual o lugar onde Paulo está preso,
então, mas a maioria liga a carta ao cativeiro de Paulo, em Roma, entre 61 e 63.
De qual quer modo, é a apresentação sólida de uma catequese bem elaborada e amadurecida.
A carta, talvez uma carta circular enviada a várias comunidades cristãs da
parte ocidental da Ásia Menor, é uma síntese do pensamento paulino.
O tema mais importante é o que o autor denomina de “o
mistério”: o plano de Deus, definido e elaborado desde sempre, oculto durante
séculos, revelado e concretizado plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos
e, nos últimos tempos, tornado presente no Mundo pela Igreja.
Na parte dogmática (cf Ef 1,3-3,19), Paulo apresenta a catequese sobre “o mistério”:
depois de um hino que celebra a ação do Pai, do Filho e do Espírito Santo na
obra da salvação, fala da soberania de Cristo sobre os poderes angélicos e do
seu papel como cabeça da Igreja; depois, reflete sobre a situação universal do
homem, mergulhado no pecado, e afirma a iniciativa salvadora e gratuita de Deus
em favor do homem; expõe, ainda, como Cristo – realizando “o mistério” – levou
a cabo a reconciliação de judeus e pagãos num só corpo, a Igreja. E Paulo apresenta-se
como testemunha do “mistério” diante dos judeus e diante dos pagãos.
Também a Paulo, apóstolo como os Doze, foi revelado “o
mistério”. E Paulo desvela-o aos crentes da Ásia Menor. O apóstolo insiste que,
em Cristo, chegou a salvação definitiva para os homens; e a salvação não se
destina só aos Judeus, mas destina-se a todos os povos da Terra, sem exceção.
Paulo é, por vocação divina, o pregoeiro desta novidade. Assim se percebe
porque é que Paulo se fez o grande arauto da “boa nova” de Jesus, entre os
pagãos.
Agora, judeus e gentios são membros de um mesmo e
único corpo, o “corpo de Cristo”, a Igreja, que partilham o mesmo projeto
salvador que os faz, em igualdade de circunstâncias com os judeus, “filhos de
Deus”; e todos participam da promessa feita por Deus a Abraão, promessa cuja
realização Cristo concretizou.
***
Por tudo isto, em torno do refrão “Virão adorar-Vos,
Senhor, todos os povos da Terra, é de cantar como o Salmista:
“Ó Deus, concedei
ao rei o poder de julgar e a vossa justiça ao filho do rei.
Ele governará o vosso povo com justiça e os vossos pobres com equidade.
Florescerá a
justiça nos seus dias e uma grande paz até ao fim dos tempos.
Ele dominará de um ao outro mar, do grande rio até aos confins da terra.
Os reis de
Társis e das ilhas virão com presentes, os reis da Arábia e de Sabá trarão suas
ofertas.
Prostrar-se-ão diante dele todos os reis, todos os povos o hão de servir.
Socorrerá o
pobre que pede auxílio e o miserável que não tem amparo.
Terá compaixão dos fracos e dos pobres e defenderá a vida dos oprimidos.”
E, em “Aleluia”,
como os magos, proclamemos:
“Vimos a sua
estrela no Oriente e viemos adorar o Senhor.”
2025.01.05 – Louro de Carvalho
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