A Palavra de Deus que a liturgia do 2.º domingo do Tempo Comum, no Ano C,
nos oferece recorre à metáfora do casamento para marcar a relação de amor e de
comunhão entre Deus e o seu Povo.
***
Na primeira
leitura (Is 62,1-5), um profeta anónimo garante a Jerusalém, cidade
em ruínas, que Deus a ama com infindo amor, que a regenerará, recriando-a e
transformando-a em encantadora e resplandecente noiva. A cidade-esposa encherá
de orgulho e de alegria o coração do seu marido.
O trecho em apreço é parte de um poema (Is 62,1-9) que canta Jerusalém como a
“esposa de Javé”, a cidade que Deus ama, apesar das suas infidelidades. Uma
poderosa e irresistível força interior impele o profeta a cantar a glória de Jerusalém,
a proclamar o amor nunca desmentido de Deus pela sua cidade e pelo seu Povo. E
fá-lo como uma imagem que a reflexão profética, desde Oseias, consagrou: o
casamento entre homem e mulher.
Jerusalém, a esposa de Javé, abandonou o marido e
correu por outros deuses. As suas erradas opções resultaram na invasão por
tropas estrangeiras, na derrota e na devastação. O Templo, o lugar onde Javé
residia, foi destruído e Deus afastou-Se da cidade; e os habitantes de
Jerusalém foram levados para o cativeiro na Babilónia.
Todavia, Jerusalém não ficou abandonada. O profeta
anuncia que Deus vai desposar a sua amada Jerusalém. Não é uma reconciliação
entre marido e esposa desavindos, mas são novas núpcias, é algo novo. O amor
sempre fiel de Deus mantém-se e regenera a sua amada. Jerusalém, transformada e
recriada por esse amor, será totalmente outra, uma “mulher” nova que terá novo
nome, dado pelo seu amado. A noiva de Deus, bela e intensamente amada por Deus,
será “coroa esplendorosa”, “diadema real” que brilha nas mãos do rei / Deus.
Jamais será vista como mulher “abandonada”, triste e desolada para se apresentar
aos olhos de todos como jovem noiva, cheia de frescura e de encanto, a quem
chamarão “predileta” de Deus, “desposada” com Deus. As faltas de Jerusalém não
se repetirão; Jerusalém, a jovem esposa cheia de encanto que Deus ama com amor
incondicional, será a alegria do seu marido. É bela esta nota sobre a alegria
de Deus quando encontra, em nós, o acolhimento do seu amor e da sua oferta de
comunhão.
À nossa falta empobrecedora, Deus responde com a enriquecedora
superabundância do dom, da graça, do amor, não para a aprisionarmos, mas para a
partilharmos no dinamismo da fraternidade, porque a relação amorosa de Deus é
com a comunidade e com cada pessoa na comunidade.
***
O Evangelho
(Jo
2,1-11) faz-nos ver Jesus no cenário da festa de casamento de um jovem
casal de Caná da Galileia, onde apresenta o programa que se propõe concretizar:
trazer à relação entre Deus e os homens o “vinho bom”, o vinho da alegria e do
amor. Desta oferta de Jesus, ilustrada pelas suas palavras, consolidada com os
seus gestos e realizada no seu amor até ao extremo, nascerá a comunidade da
nova aliança, que vive e testemunha o amor de e a Deus.
O Papa acentua
que este Evangelho nos fala do primeiro sinal de Jesus: a conversão da água em vinho,
numas bodas, em Caná da Galileia. É um episódio que antecipa e sintetiza toda a
missão de Jesus: no dia da vinda do Messias – como disseram os profetas – “o Senhor
preparará um banquete de vinhos excelentes” (Is 25,6) e “as montanhas
destilarão o vinho novo” (Am 9,13). Ora, Jesus é o Esposo que traz
o “vinho novo”.
Torna-se
evidente o binómio “falta” e “superabundância”.
Faltou o vinho e Maria disse ao Filho: “Não têm vinho!” A falta atinge as
pessoas, as comunidades. Porém (recordo eu), à recomendação de Maria, face à
resposta aparentemente desconcertante de Jesus, aos serventes “Fazei tudo o que
Ele vos disser”, Jesus intervém, mandando encher seis grandes ânforas e o vinho
é tão abundante e de tão alta qualidade que o arquitriclino pergunta ao noivo
porque o guardou para o final. Assim, infere o Pontífice, o nosso selo é a “falta”
e sempre o selo de Deus é a “superabundância”. E a superabundância de Caná é o
sinal de Deus. Em suma, Deus responde à falta do ser humano com a
superabundância. Deus não é mesquinho. Quando dá, dá muito. Não te dá um
pedacito, dá-te muito. Às nossas faltas o Senhor responde com a sua superabundância.
No banquete
da nossa vida, às vezes, sentimos que falta o vinho: faltam forças e muitas coisas,
ou seja, afligem-nos as preocupações, assaltam-nos os temores e as forças
perturbadoras do mal tiram-nos o sabor da vida, a ebriedade da alegria e o
sabor da esperança. Prestemos atenção: ante a falta, o Senhor dá a superabundância.
Parece contradição: quanta mais falta há em nós, mais superabundância há da
parte do Senhor, porque Ele quer fazer connosco a festa que não terá fim.
É claro que
Francisco sabe que as duas últimas frases conhecidas de Maria nos Evangelhos
são: “Não têm vinho!” “Fazei tudo o que Ele vos disser!” – ambas em prol da
comunidade e de alto valor, como o casamento. Talvez também por isso o Papa nos
esteja a recomendar que rezemos à Virgem Maria, para que Ela, a “Mulher do
vinho novo” interceda por nós e, neste ano jubilar, nos ajude a redescobrir a alegria
do encontro com Jesus.
***
O relato de João sobre aquele casamento não se perde
em pormenores: identidade dos noivos; causa da falta do vinho e razão da
excecional importância dessa falha; motivo da presença de Maria e do seu
interesse pelo sucesso da festa; razão da existência, naquela casa, de invulgar
número de descomunais talhas de pedra para os rituais de purificação; ligação de
Jesus com aquele casamento; maior protagonismo do chefe de mesa e dos serventes
do que o dos noivos; e o porquê da alusão misteriosa, que ninguém entende, à
sua “hora”.
Porém, é o primeiro “sinal” de Jesus: transformar água
em vinho. E a falta de vinho, acidente humano, faz sobressair a superabundância
de Deus no tempo do Messias. Para surgir a epifania de Jesus aos discípulos,
tinha de estar presente a Mãe, como esteve na epifania aos gentios (através dos
magos). E o vinho abundante e de alta qualidade é sinal da superabundância e da
excelência de Deus. Depois, a Mãe é protótipo da solicitude e da perspicácia
cristãs; e os serventes, que, sob a recomendação de Maria, a Mãe, fazem o que
Ele manda, são, ao mesmo tempo, espelho de Jesus, que faz a vontade do Pai, e
protótipo dos discípulos, que estão para servir.
Por outro lado, aquele cenário de casamento evoca uma
outra realidade, que ultrapassa a simples festa nupcial de um casal; é a
metáfora da “aliança” de amor entre Deus e o seu Povo.
João começa por vincar a presença da “mãe de Jesus”,
de Jesus e dos discípulos. Porém, distingue entre a presença da mãe de Jesus e a
de Jesus e dos discípulos. A mãe de Jesus “estava lá”, como se pertencesse à
festa por direito. Faz parte da comunidade da antiga “aliança”. Representa o
Israel fiel, a parte da comunidade israelita que não se conformava com a
deterioração da “aliança” e esperava que o Messias viesse dar novo sentido à História
de amor que unia Deus e o Povo. Em contraponto, Jesus e os discípulos são
apenas “convidados” nesse casamento. Têm um papel a desempenhar, mas só
integram aquela comunidade como “convidados”, pois o lugar deles é na outra
comunidade, a comunidade da nova “aliança”. No entanto, Maria faz a ponte entre
as duas épocas e intervém na nova realidade (acabando por deixar a antiga), com
um aviso e com uma recomendação.
A mãe de Jesus, figura do Israel fiel que espera o
Messias, interpela Jesus: “Eles não têm vinho!” O vinho, na cultura veterotestamentária,
era sinal de alegria e de festa, bem como símbolo do amor que une esposo e
esposa. Na saga da relação entre Deus e o seu Povo, a certa altura “faltou o
vinho”: o Povo (a esposa) não amava Deus (o marido) e não encontrava alegria
nem sentido numa relação mediatizada por rituais externos e regulada por leis
estéreis. A “aliança” entre Deus e o Povo era realidade seca e vazia,
compromisso formal, forçado, ritualista, onde não entrava o coração. O Povo
vivia na tristeza, repetia uma série de rituais religiosos que não satisfaziam
a sua sede de vida e de felicidade. Esta realidade de “aliança” estéril e
falida é representada pelas “seis talhas de pedra destinadas à purificação dos
judeus”, que “estavam ali” vazias, integrando o cenário. O número seis evoca a
imperfeição, o incompleto; a pedra evoca as tábuas de pedra da Lei do Sinai e
os corações de pedra dos Israelitas, duros e insensíveis, incapazes de amar, de
que falava Ezequiel; a referência à purificação evoca os ritos e exigências da
antiga Lei que revelavam um Deus suscetível, zeloso, impositivo, que guarda
distâncias: ora, um Deus assim pode-se temer, mas não amar. As talhas estão
“vazias”, porque todo este aparato era inútil e ineficaz: não servia para
aproximar o homem de Deus, mas para o afastar desse Deus difícil e distante.
A interpelação da “mãe” provoca estranha resposta de
Jesus: “Mulher, que temos nós com isso? Ainda não chegou a minha hora!” Jesus
distancia-se daquela realidade: aquela aliança está morta e não é
revitalizável. A obra de Jesus não se apoiará nas antigas instituições, nem na
Lei de Moisés, mundo que não lhe interessa. Ele prepara-se para apresentar uma
novidade radical, em rutura com as instituições velhas da religião judaica.
Porém, essa novidade radical, que se inicia ali, só se manifestará plenamente
na cruz, no momento em que Ele der a vida até ao extremo e fizer nascer, do seu
sangue derramado, o Homem novo, capaz de amar a Deus e os irmãos. Essa será a
“hora” de Jesus, a “hora” em que nascerá a comunidade da nova “aliança”.
João põe a mãe de Jesus a intervir outra vez. Ela
dirige-se aos “serventes” e diz-lhes: “fazei tudo o que Ele vos disser”. A
frase reproduz a dita pelo Povo no Sinai, no contexto da celebração da velha
“aliança”: “Tudo o que o Senhor disse, nós o faremos” (Ex 19,8). Aqueles “serventes” são os colaboradores do Messias na
obra que Ele vai realizar. A “mãe” propõe-lhes que trabalhem com Ele para que a
nova “aliança” seja uma realidade. E Jesus manda encher as talhas de água. Cada
uma delas levava entre 80 e 120 litros.
É grandioso, excessivo o dom que Jesus Se prepara para
oferecer. O gesto que Jesus vai realizar, apesar de não ter ainda chegado a sua
hora, não é a concretização da nova “aliança”; é um gesto que anuncia a obra
que Ele, por mandato de Deus, vai realizar: trazer à relação de Deus com os
homens o “vinho novo e bom” da nova “aliança”.
Por indicação de Jesus, os “serventes” levaram o
conteúdo das talhas ao “chefe da mesa”, que é o responsável pela organização do
banquete e, aqui, representa os líderes judaicos que presidiam às instituições
da antiga “aliança”. Não se aperceberam de que o sistema religioso a que
presidem é estéril e não traz vida ao Povo de Deus. Para esta casta de
privilegiados, tudo vai bem; o que interessa é manter a sua situação de
privilégio.
O “chefe da mesa” provou a água transformada em vinho,
mas não sabia de onde viera o vinho. Verifica a sua superioridade sobre o
anterior e manifesta a sua surpresa por o vinho melhor aparecer no final. Para
ele, o “vinho” velho era definitivo, não esperava nada melhor. Considera que o
sistema religioso está bem como está, pelo que não manifesta qualquer interesse
em saber de onde ele vem aquele “vinho” melhor. Os líderes judaicos nunca
reconhecerão que Jesus trouxe o “vinho novo”, o “vinho bom” da nova “aliança”;
nunca reconhecerão Jesus como o Messias que vem trazer a salvação que Israel
esperava.
João termina o relato dizendo que este foi o primeiro
dos “sinais” de Jesus. Com ele, Jesus “manifestou a sua glória”, como Deus
tinha manifestado ao Povo a sua glória no monte Sinai, aquando da celebração da
primeira “aliança”. Jesus mostrou que vinha de Deus para trazer o amor e a
alegria à relação entre Deus e os homens. Ele irá, ao longo do seu ministério,
realizando esse programa. A obra ficará completa na cruz (na “hora” de Jesus).
Aí, mostrará aos homens a grandeza do amor de Deus e convidá-los-á a
deixarem-se envolver por esse amor. Nascerá, então, a comunidade da nova
“aliança”.
O gesto de Jesus em Caná tornou claro, para os
discípulos, o programa que o Pai Lhe confiou. E, ao tomarem conhecimento desse
projeto, creram em Jesus e dispuseram-se a segui-Lo.
***
Na segunda
leitura (1Cor 12,4-11), Paulo
lembra aos cristãos de Corinto que os carismas, enquanto sinais do amor de
Deus, se destinam ao bem de todos, ao bem comum. Não servem para uso exclusivo
de alguns, nem podem ser fator de divisão ou de tensão comunitária. Na partilha
comunitária dos dons de Deus manifesta-se o amor que une o Pai, o Filho e o
Espírito Santo.
Assim, o apóstolo procura ajudar os Coríntios a
enquadrar os carismas de forma adequada, não apenas na dimensão da vida
pessoal, mas, sobretudo, no contexto comunitário. Lembra-lhes que, apesar da
diversidade de dons espirituais, é o mesmo (um só) Espírito que atua em todos;
apesar da diversidade de funções, é o mesmo Senhor Jesus que está presente em
todos; apesar da diversidade de ações, é o mesmo Deus que age em todos. Todos
os carismas, por diversos que sejam, unificam-se no mesmo Deus uno e trino. Por
isso, não dividem nem podem ser usados para dividir a comunidade. Unem os
membros da comunidade à volta do mesmo Deus, do mesmo Senhor Jesus, do mesmo
Espírito, da mesma experiência de fé. Um suposto carisma que não seja fator de
unidade é carisma falso, isto é, não é carisma, é arremedilho de carisma.
Ao mesmo tempo, Paulo garante que os dons que o
Espírito concede “a cada um” são “para o bem comum”, para benefício de todos,
não para regalo individual. Não podem, portanto, ser aprisionados, pelo uso
para benefício próprio, para a promoção de si próprio, para melhoria da própria
posição ou do próprio “ego”; são concedidos a este/a ou àquele/a para o bem de
toda a comunidade e só fazem sentido enquanto são colocados ao serviço da
comunidade.
Depois, o apóstolo apresenta uma lista de nove
carismas: a sabedoria, que ajuda a escolher Deus e a viver de acordo com o seu
desígnio; a ciência, que permite compreender as verdades da fé; a fé, que é
capaz de servir de alicerce a uma vida segundo Deus; dom de curar e de levar
vida nova a quem sofre; o dom de realizar gestos poderosos; o dom de falar em
nome de Deus; o dom de discernir os diversos carismas; o dom de falar de forma
que todos entendam; o dom de interpretar, de forma apropriada, o que foi dito
de modo pouco inteligível. Tratar-se-á dos carismas mais apreciados na comunidade
cristã de Corinto, mas são sempre em prol da unidade pela diversidade.
A concluir, Paulo reafirma que todos esses carismas, embora
diferentes, brotam do mesmo Espírito; e é o Espírito que os distribui de forma
apropriada, pois Ele sabe bem do que precisa a comunidade para a sua edificação.
***
Por tantas e tão boas coisas de Deus, é bom cantar com
o salmista em torno do estribilho “Anunciai, em todos os povos as maravilhas do
Senhor”.
“Cantai ao Senhor um cântico novo, / cantai ao Senhor, terra
inteira,
Cantai ao Senhor, bendizei o seu nome.
Anunciai dia a dia a sua salvação, / publicai entre as nações
a sua glória,
Em todos os povos as suas maravilhas.
Dai, ó Senhor, ó família dos povos, / dai ao Senhor
glória e poder,
Dai ao Senhor a glória do seu nome.
Adorai o senhor com ornamentos sagrados, / trema
diante d’Ele a terra inteira;
Dizei entre as nações: ‘O Senhor é Rei, governa os
povos com equidade’.”
2025.01.19 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário