segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

O binómio “falta” e “superabundância” na relação homem-Deus

 

A Palavra de Deus que a liturgia do 2.º domingo do Tempo Comum, no Ano C, nos oferece recorre à metáfora do casamento para marcar a relação de amor e de comunhão entre Deus e o seu Povo.

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Na primeira leitura (Is 62,1-5), um profeta anónimo garante a Jerusalém, cidade em ruínas, que Deus a ama com infindo amor, que a regenerará, recriando-a e transformando-a em encantadora e resplandecente noiva. A cidade-esposa encherá de orgulho e de alegria o coração do seu marido.

O trecho em apreço é parte de um poema (Is 62,1-9) que canta Jerusalém como a “esposa de Javé”, a cidade que Deus ama, apesar das suas infidelidades. Uma poderosa e irresistível força interior impele o profeta a cantar a glória de Jerusalém, a proclamar o amor nunca desmentido de Deus pela sua cidade e pelo seu Povo. E fá-lo como uma imagem que a reflexão profética, desde Oseias, consagrou: o casamento entre homem e mulher.

Jerusalém, a esposa de Javé, abandonou o marido e correu por outros deuses. As suas erradas opções resultaram na invasão por tropas estrangeiras, na derrota e na devastação. O Templo, o lugar onde Javé residia, foi destruído e Deus afastou-Se da cidade; e os habitantes de Jerusalém foram levados para o cativeiro na Babilónia.  

Todavia, Jerusalém não ficou abandonada. O profeta anuncia que Deus vai desposar a sua amada Jerusalém. Não é uma reconciliação entre marido e esposa desavindos, mas são novas núpcias, é algo novo. O amor sempre fiel de Deus mantém-se e regenera a sua amada. Jerusalém, transformada e recriada por esse amor, será totalmente outra, uma “mulher” nova que terá novo nome, dado pelo seu amado. A noiva de Deus, bela e intensamente amada por Deus, será “coroa esplendorosa”, “diadema real” que brilha nas mãos do rei / Deus. Jamais será vista como mulher “abandonada”, triste e desolada para se apresentar aos olhos de todos como jovem noiva, cheia de frescura e de encanto, a quem chamarão “predileta” de Deus, “desposada” com Deus. As faltas de Jerusalém não se repetirão; Jerusalém, a jovem esposa cheia de encanto que Deus ama com amor incondicional, será a alegria do seu marido. É bela esta nota sobre a alegria de Deus quando encontra, em nós, o acolhimento do seu amor e da sua oferta de comunhão.

À nossa falta empobrecedora, Deus responde com a enriquecedora superabundância do dom, da graça, do amor, não para a aprisionarmos, mas para a partilharmos no dinamismo da fraternidade, porque a relação amorosa de Deus é com a comunidade e com cada pessoa na comunidade.

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Evangelho (Jo 2,1-11) faz-nos ver Jesus no cenário da festa de casamento de um jovem casal de Caná da Galileia, onde apresenta o programa que se propõe concretizar: trazer à relação entre Deus e os homens o “vinho bom”, o vinho da alegria e do amor. Desta oferta de Jesus, ilustrada pelas suas palavras, consolidada com os seus gestos e realizada no seu amor até ao extremo, nascerá a comunidade da nova aliança, que vive e testemunha o amor de e a Deus.

O Papa acentua que este Evangelho nos fala do primeiro sinal de Jesus: a conversão da água em vinho, numas bodas, em Caná da Galileia. É um episódio que antecipa e sintetiza toda a missão de Jesus: no dia da vinda do Messias – como disseram os profetas – “o Senhor preparará um banquete de vinhos excelentes” (Is 25,6) e “as montanhas destilarão o vinho novo” (Am 9,13). Ora, Jesus é o Esposo que traz o “vinho novo”.

Torna-se evidente o binómio “falta” e “superabundância”. Faltou o vinho e Maria disse ao Filho: “Não têm vinho!” A falta atinge as pessoas, as comunidades. Porém (recordo eu), à recomendação de Maria, face à resposta aparentemente desconcertante de Jesus, aos serventes “Fazei tudo o que Ele vos disser”, Jesus intervém, mandando encher seis grandes ânforas e o vinho é tão abundante e de tão alta qualidade que o arquitriclino pergunta ao noivo porque o guardou para o final. Assim, infere o Pontífice, o nosso selo é a “falta” e sempre o selo de Deus é a “superabundância”. E a superabundância de Caná é o sinal de Deus. Em suma, Deus responde à falta do ser humano com a superabundância. Deus não é mesquinho. Quando dá, dá muito. Não te dá um pedacito, dá-te muito. Às nossas faltas o Senhor responde com a sua superabundância.

No banquete da nossa vida, às vezes, sentimos que falta o vinho: faltam forças e muitas coisas, ou seja, afligem-nos as preocupações, assaltam-nos os temores e as forças perturbadoras do mal tiram-nos o sabor da vida, a ebriedade da alegria e o sabor da esperança. Prestemos atenção: ante a falta, o Senhor dá a superabundância. Parece contradição: quanta mais falta há em nós, mais superabundância há da parte do Senhor, porque Ele quer fazer connosco a festa que não terá fim.  

É claro que Francisco sabe que as duas últimas frases conhecidas de Maria nos Evangelhos são: “Não têm vinho!” “Fazei tudo o que Ele vos disser!” – ambas em prol da comunidade e de alto valor, como o casamento. Talvez também por isso o Papa nos esteja a recomendar que rezemos à Virgem Maria, para que Ela, a “Mulher do vinho novo” interceda por nós e, neste ano jubilar, nos ajude a redescobrir a alegria do encontro com Jesus.

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O relato de João sobre aquele casamento não se perde em pormenores: identidade dos noivos; causa da falta do vinho e razão da excecional importância dessa falha; motivo da presença de Maria e do seu interesse pelo sucesso da festa; razão da existência, naquela casa, de invulgar número de descomunais talhas de pedra para os rituais de purificação; ligação de Jesus com aquele casamento; maior protagonismo do chefe de mesa e dos serventes do que o dos noivos; e o porquê da alusão misteriosa, que ninguém entende, à sua “hora”.

Porém, é o primeiro “sinal” de Jesus: transformar água em vinho. E a falta de vinho, acidente humano, faz sobressair a superabundância de Deus no tempo do Messias. Para surgir a epifania de Jesus aos discípulos, tinha de estar presente a Mãe, como esteve na epifania aos gentios (através dos magos). E o vinho abundante e de alta qualidade é sinal da superabundância e da excelência de Deus. Depois, a Mãe é protótipo da solicitude e da perspicácia cristãs; e os serventes, que, sob a recomendação de Maria, a Mãe, fazem o que Ele manda, são, ao mesmo tempo, espelho de Jesus, que faz a vontade do Pai, e protótipo dos discípulos, que estão para servir.

Por outro lado, aquele cenário de casamento evoca uma outra realidade, que ultrapassa a simples festa nupcial de um casal; é a metáfora da “aliança” de amor entre Deus e o seu Povo.

João começa por vincar a presença da “mãe de Jesus”, de Jesus e dos discípulos. Porém, distingue entre a presença da mãe de Jesus e a de Jesus e dos discípulos. A mãe de Jesus “estava lá”, como se pertencesse à festa por direito. Faz parte da comunidade da antiga “aliança”. Representa o Israel fiel, a parte da comunidade israelita que não se conformava com a deterioração da “aliança” e esperava que o Messias viesse dar novo sentido à História de amor que unia Deus e o Povo. Em contraponto, Jesus e os discípulos são apenas “convidados” nesse casamento. Têm um papel a desempenhar, mas só integram aquela comunidade como “convidados”, pois o lugar deles é na outra comunidade, a comunidade da nova “aliança”. No entanto, Maria faz a ponte entre as duas épocas e intervém na nova realidade (acabando por deixar a antiga), com um aviso e com uma recomendação.

A mãe de Jesus, figura do Israel fiel que espera o Messias, interpela Jesus: “Eles não têm vinho!” O vinho, na cultura veterotestamentária, era sinal de alegria e de festa, bem como símbolo do amor que une esposo e esposa. Na saga da relação entre Deus e o seu Povo, a certa altura “faltou o vinho”: o Povo (a esposa) não amava Deus (o marido) e não encontrava alegria nem sentido numa relação mediatizada por rituais externos e regulada por leis estéreis. A “aliança” entre Deus e o Povo era realidade seca e vazia, compromisso formal, forçado, ritualista, onde não entrava o coração. O Povo vivia na tristeza, repetia uma série de rituais religiosos que não satisfaziam a sua sede de vida e de felicidade. Esta realidade de “aliança” estéril e falida é representada pelas “seis talhas de pedra destinadas à purificação dos judeus”, que “estavam ali” vazias, integrando o cenário. O número seis evoca a imperfeição, o incompleto; a pedra evoca as tábuas de pedra da Lei do Sinai e os corações de pedra dos Israelitas, duros e insensíveis, incapazes de amar, de que falava Ezequiel; a referência à purificação evoca os ritos e exigências da antiga Lei que revelavam um Deus suscetível, zeloso, impositivo, que guarda distâncias: ora, um Deus assim pode-se temer, mas não amar. As talhas estão “vazias”, porque todo este aparato era inútil e ineficaz: não servia para aproximar o homem de Deus, mas para o afastar desse Deus difícil e distante.

A interpelação da “mãe” provoca estranha resposta de Jesus: “Mulher, que temos nós com isso? Ainda não chegou a minha hora!” Jesus distancia-se daquela realidade: aquela aliança está morta e não é revitalizável. A obra de Jesus não se apoiará nas antigas instituições, nem na Lei de Moisés, mundo que não lhe interessa. Ele prepara-se para apresentar uma novidade radical, em rutura com as instituições velhas da religião judaica. Porém, essa novidade radical, que se inicia ali, só se manifestará plenamente na cruz, no momento em que Ele der a vida até ao extremo e fizer nascer, do seu sangue derramado, o Homem novo, capaz de amar a Deus e os irmãos. Essa será a “hora” de Jesus, a “hora” em que nascerá a comunidade da nova “aliança”.

João põe a mãe de Jesus a intervir outra vez. Ela dirige-se aos “serventes” e diz-lhes: “fazei tudo o que Ele vos disser”. A frase reproduz a dita pelo Povo no Sinai, no contexto da celebração da velha “aliança”: “Tudo o que o Senhor disse, nós o faremos” (Ex 19,8). Aqueles “serventes” são os colaboradores do Messias na obra que Ele vai realizar. A “mãe” propõe-lhes que trabalhem com Ele para que a nova “aliança” seja uma realidade. E Jesus manda encher as talhas de água. Cada uma delas levava entre 80 e 120 litros.

É grandioso, excessivo o dom que Jesus Se prepara para oferecer. O gesto que Jesus vai realizar, apesar de não ter ainda chegado a sua hora, não é a concretização da nova “aliança”; é um gesto que anuncia a obra que Ele, por mandato de Deus, vai realizar: trazer à relação de Deus com os homens o “vinho novo e bom” da nova “aliança”.

Por indicação de Jesus, os “serventes” levaram o conteúdo das talhas ao “chefe da mesa”, que é o responsável pela organização do banquete e, aqui, representa os líderes judaicos que presidiam às instituições da antiga “aliança”. Não se aperceberam de que o sistema religioso a que presidem é estéril e não traz vida ao Povo de Deus. Para esta casta de privilegiados, tudo vai bem; o que interessa é manter a sua situação de privilégio.

O “chefe da mesa” provou a água transformada em vinho, mas não sabia de onde viera o vinho. Verifica a sua superioridade sobre o anterior e manifesta a sua surpresa por o vinho melhor aparecer no final. Para ele, o “vinho” velho era definitivo, não esperava nada melhor. Considera que o sistema religioso está bem como está, pelo que não manifesta qualquer interesse em saber de onde ele vem aquele “vinho” melhor. Os líderes judaicos nunca reconhecerão que Jesus trouxe o “vinho novo”, o “vinho bom” da nova “aliança”; nunca reconhecerão Jesus como o Messias que vem trazer a salvação que Israel esperava.

João termina o relato dizendo que este foi o primeiro dos “sinais” de Jesus. Com ele, Jesus “manifestou a sua glória”, como Deus tinha manifestado ao Povo a sua glória no monte Sinai, aquando da celebração da primeira “aliança”. Jesus mostrou que vinha de Deus para trazer o amor e a alegria à relação entre Deus e os homens. Ele irá, ao longo do seu ministério, realizando esse programa. A obra ficará completa na cruz (na “hora” de Jesus). Aí, mostrará aos homens a grandeza do amor de Deus e convidá-los-á a deixarem-se envolver por esse amor. Nascerá, então, a comunidade da nova “aliança”.

O gesto de Jesus em Caná tornou claro, para os discípulos, o programa que o Pai Lhe confiou. E, ao tomarem conhecimento desse projeto, creram em Jesus e dispuseram-se a segui-Lo.

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Na segunda leitura (1Cor 12,4-11), Paulo lembra aos cristãos de Corinto que os carismas, enquanto sinais do amor de Deus, se destinam ao bem de todos, ao bem comum. Não servem para uso exclusivo de alguns, nem podem ser fator de divisão ou de tensão comunitária. Na partilha comunitária dos dons de Deus manifesta-se o amor que une o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Assim, o apóstolo procura ajudar os Coríntios a enquadrar os carismas de forma adequada, não apenas na dimensão da vida pessoal, mas, sobretudo, no contexto comunitário. Lembra-lhes que, apesar da diversidade de dons espirituais, é o mesmo (um só) Espírito que atua em todos; apesar da diversidade de funções, é o mesmo Senhor Jesus que está presente em todos; apesar da diversidade de ações, é o mesmo Deus que age em todos. Todos os carismas, por diversos que sejam, unificam-se no mesmo Deus uno e trino. Por isso, não dividem nem podem ser usados para dividir a comunidade. Unem os membros da comunidade à volta do mesmo Deus, do mesmo Senhor Jesus, do mesmo Espírito, da mesma experiência de fé. Um suposto carisma que não seja fator de unidade é carisma falso, isto é, não é carisma, é arremedilho de carisma.

Ao mesmo tempo, Paulo garante que os dons que o Espírito concede “a cada um” são “para o bem comum”, para benefício de todos, não para regalo individual. Não podem, portanto, ser aprisionados, pelo uso para benefício próprio, para a promoção de si próprio, para melhoria da própria posição ou do próprio “ego”; são concedidos a este/a ou àquele/a para o bem de toda a comunidade e só fazem sentido enquanto são colocados ao serviço da comunidade.

Depois, o apóstolo apresenta uma lista de nove carismas: a sabedoria, que ajuda a escolher Deus e a viver de acordo com o seu desígnio; a ciência, que permite compreender as verdades da fé; a fé, que é capaz de servir de alicerce a uma vida segundo Deus; dom de curar e de levar vida nova a quem sofre; o dom de realizar gestos poderosos; o dom de falar em nome de Deus; o dom de discernir os diversos carismas; o dom de falar de forma que todos entendam; o dom de interpretar, de forma apropriada, o que foi dito de modo pouco inteligível. Tratar-se-á dos carismas mais apreciados na comunidade cristã de Corinto, mas são sempre em prol da unidade pela diversidade.

A concluir, Paulo reafirma que todos esses carismas, embora diferentes, brotam do mesmo Espírito; e é o Espírito que os distribui de forma apropriada, pois Ele sabe bem do que precisa a comunidade para a sua edificação.

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Por tantas e tão boas coisas de Deus, é bom cantar com o salmista em torno do estribilho “Anunciai, em todos os povos as maravilhas do Senhor”.

“Cantai ao Senhor um cântico novo, / cantai ao Senhor, terra inteira,

Cantai ao Senhor, bendizei o seu nome.

Anunciai dia a dia a sua salvação, / publicai entre as nações a sua glória,

Em todos os povos as suas maravilhas.

Dai, ó Senhor, ó família dos povos, / dai ao Senhor glória e poder,

Dai ao Senhor a glória do seu nome.

Adorai o senhor com ornamentos sagrados, / trema diante d’Ele a terra inteira;

Dizei entre as nações: ‘O Senhor é Rei, governa os povos com equidade’.”

2025.01.19 – Louro de Carvalho

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