Arrancou oficialmente, a 13 de
janeiro, o Ano Judicial, em cerimónia no Supremo Tribunal de Justiça, com
protesto de funcionários judiciais à porta – convocada pelo Sindicato dos
Funcionários Judiciais (SFJ), a que a aderiu o Sindicato dos Oficiais de
Justiça (SOJ) –, contra a proposta governamental de revisão da carreira
(“Justiça para quem nela trabalha”, lia-se nas t-shirts negras), ao que a
ministra da Justiça fez reparo.
Estrearam-se no evento o
procurador-geral da República, Amadeu Guerra, a ministra da Justiça, Rita
Alarcão Júdice, e o presidente da Assembleia da República (AR), José Pedro
Aguiar-Branco.
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Fernanda de Almeida Pinheiro,
bastonária da Ordem dos Advogados (OA) defendeu que a Ordem acompanhou e
patrocinou o aparecimento e o desenvolvimento da democracia e é, até aos nossos
dias, parte ativa da construção do estado de direito democrático.
A líder da OA recordou o “ataque”
feito à liberdade da profissão, no último ano, quando se lhe impôs uma revisão
do seu estatuto profissional que, entre outras alterações, obrigou à criação de
um Conselho de Supervisão presidido por um não advogado e abriu a prática de
atos próprios da advocacia a não advogados. E frisou que a OA existe, não para
a salvaguarda de qualquer interesse egoístico da classe, mas “para garantir que
ninguém, sob qualquer circunstância, possa violar os direitos, liberdades e
garantias dos cidadãos, cidadãs e empresas do nosso país”.
A bastonária alertou que a OA tem
desafios internos que “urge resolver”. E não se cansará de o exigir as mesmas
mudanças, até que os poderes políticos garantam um tratamento digno no sistema
de acesso ao direito e aos tribunais (SADT) e uma previdência digna desse nome “aos
nossos e nossas associadas”.
Sobre o SADT, a líder da classe afirmou
que este serviço público garantido pela advocacia sempre funcionou. “Não
sabemos se podemos dizer o mesmo de qualquer outro serviço público”, atirou,
recordando que os honorários pagos aos profissionais que garantem o sistema,
não são atualizados há mais de 20 anos.
Por sua vez, o procurador-geral da República quer autonomia
(também financeira e acesso a fundos comunitários), com os processos-crime sob
a sua alçada, e não do governo. “Coloquem-se
à disposição do Ministério Público (MP) e dos órgãos de Polícia Criminal […] todos
os meios humanos, equipamentos, software de
tratamento e análise de prova digital, meios técnicos, periciais (internos e
externos) e, depois, peçam-nos responsabilidades”, desafiou.
O novo titular da investigação
criminal (e não só) falou da necessidade de Justiça mais célere e mais próxima
dos cidadãos e pediu maior mobilização do MP no combate aos novos tipos de
criminalidade, bem como a preservação do segredo de Justiça. E referiu
“preocupação” pelos crimes de homicídio em cenário de violência doméstica, de branqueamento
de capitais, de cibercriminalidade, de criminalidade de gangues e o praticado
por menores de 16 anos, bem como pelos crimes de terrorismo, de tráfico de
pessoas, de auxílio à imigração ilegal e à criminalidade praticada contra
pessoas vulneráveis, em particular os idosos e menores.
Em suma, Amadeu Guerra elegeu
quatro “temas estruturantes”: a necessidade da autonomia dos meios financeiros
da Procuradoria-Geral da República (PGR); a situação de os dados dos inquéritos
do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e os vários departamentos
de investigação e ação penal (DIAP) estarem na alçada do Ministério da Justiça
(MJ); a falta de magistrados e oficiais de Justiça; e a estratégia do MP para o
confisco de bens adquiridos como resultado de crimes.
Já o presidente do Supremo
Tribunal de Justiça (STJ), João Cura Mariano, sublinhou que mergulham no
esquecimento “dificuldades problemáticas”. Defendeu que há extensa reforma por
fazer na Justiça e que deve ser feita para se poder iniciar uma “nova era”. “Uma
reforma que deve ser feita de múltiplas e nevrálgicas alterações legislativas
setoriais, a qual deve iniciar uma nova era caraterizada por um reformismo
permanente”, referiu.
No âmbito dessa reforma, está a
alteração do regime de ingresso nas magistraturas, a revisão do regime de acesso
ao STJ e mudanças no Código de Processo Penal (CPP) e do Código de Processo
Civil (CPC). Sobre as regras de ingresso na magistratura, Cura Mariano sustenta
que se justifica aditar à proposta de lei em discussão a dispensa dos exames
escritos dos alunos que obtiveram, na universidade, as mais altas notas na
licenciatura e no mestrado, mantendo-se a sujeição às provas orais. E defende a
necessidade de a lei ser “rapidamente aprovada”, pois “um novo concurso de
acesso às magistraturas deveria ter o seu início no mês de janeiro em curso”.
Quanto à minúscula alteração ao
Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), tão necessária a inverter o ciclo de
progressivo envelhecimento dos quadros do STJ, criticou o facto de ainda não
ter entrado na AR qualquer iniciativa legislativa, sem que se consiga “descortinar
uma explicação para tal atraso, face à gravidade da situação”.
O presidente do STJ lembrou que,
nos próximos seis anos, se reformarão cerca de 600 juízes e que o número de
juízes já não é suficiente para preencher os quadros, “sendo o drama dos
tribunais sem juízes, por ora, solucionado através de um indesejável regime de
acumulação de funções de grande exigência para quem se disponibiliza a
trabalhar para além do serviço que lhe está distribuído”. Assim, é necessário
repor, nos próximos anos, o número de juízes que se vão reformando, “o que só
se conseguirá com o ingresso e [com] uma formação, de cerca de uma centena de
novos juízes, por ano, o que traz acrescidas exigências para o Centro de
Estudos Judiciários [CEJ]”, que deve ser dotado dos meios necessários para tal
empreendimento.
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Por seu turno, Rita Alarcão
Júdice optou por elencar um conjunto de medidas que estão ou estarão brevemente
no terreno: o regime de confisco de bens, o combate aos expedientes dilatórios,
a criação do grupo de trabalho para melhorar a celeridade processual, a
digitalização dos tribunais financiada pelos fundos do Plano de Recuperação e
Resiliência (PRR), a alteração das regras de juízes ao STJ, a assessoria aos
tribunais e a revisão das regras dos advogados oficiosos.
E, sobre os protestos dos
funcionários, considerou: “É uma forma democrática e legítima de protesto. Mas
os Oficiais de Justiça já tiveram provas da determinação e da boa-fé do governo
em resolver os problemas da classe, nos últimos meses: no aumento do suplemento
de recuperação, decidido e pago, logo em 2024, na revisão do Estatuto
Profissional, em curso, e no recrutamento de quase 600 novos profissionais, em
apenas seis meses. Os funcionários judiciais sabem que têm na ministra da
Justiça uma aliada. Mas uma aliada não é alguém que distribui dinheiro público
na proporção do ruído ou do número de notícias. É alguém que conhece o valor do
seu trabalho, que move montanhas para que os tribunais tenham computadores,
sistemas informáticos, ar condicionado, segurança, elevadores, rampas de
acesso, salas onde não chova.”
Do seu lado, o presidente da Assembleia da República acredita
que muita coisa tem mudado, ao longo dos anos, mas sustenta que “é preciso
agir”, envolvendo todas as partes interessadas. “Quem não reforma, é reformado.
Quem não transforma, é transformado. Quem não apresenta soluções, torna-se
parte do problema”, vincou, referindo que as soluções “impõem olhar a Justiça,
não para nos juntarmos ao eco sobre uma crise, mas para a importância sobre a
necessidade de uma maior compreensão interdisciplinar da realidade”, e frisando
que os agentes da Justiça não são inimigos.
Considera que a Justiça não precisa de marketing, nem
de conferências, mas de uma reunião de trabalho. “E é isso que faremos já no
mês de fevereiro na sala do Senado”, disse, avançando que essa reunião (ou
cimeira) “será com convidados representantes dos diferentes agentes do sistema
judicial e com os grupos parlamentares, pretendendo-se que seja momento para se
encontrarem pontos de convergência.
“Gostava que, desta reunião de trabalho,
pudéssemos extrair dez propostas simples, dez mudanças com as quais todos
concordamos e que possam servir de base para uma revolução cultural na Justiça”, salientou.
A encerrar, o Presidente da República (PR), assumindo que há uma oportunidade renovada para olhar
mais para o futuro, defendeu que a Justiça, em todas as
suas dimensões, surge como apelo de valores, necessidade de princípios, mas
também, num virar de ciclo, “de expectativa, incentivo, justificação e
frustração de limitadas e exageradas exigências pessoais e coletivas”.
“A Justiça sistema, urgência e realidade todos os
dias, passou a ser vivida como escolha entre passado e futuro”. E realçou
questões centrais, que não podemos ignorar. Desde logo, um novo ciclo, com novas
lideranças: na presidência da AR, no governo, na presidência dos tribunais superiores,
no MJ, na PGR e até as lideranças da oposição. E, nisto, diz o chefe de Estado,
“há uma oportunidade renovada para olhar mais para o futuro”. Enfim, o PR apelou à convergência entre atores políticos e
judiciários para mudanças na Justiça e apontou duas possibilidades, “a ambição
de um pacto de Justiça”, como propôs no início do primeiro mandato, ou “de
passos mais pequenos e por áreas de maior urgência de intervenção”.
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Feita a súmula dos principais
conteúdos das diversas intervenções, tecidas de reivindicações e de acusações
da parte dos operadores da Justiça e de apelos dos poderes políticos stricto sensu, talvez sejam de focar
alguns pormenores dos discursos que são motivos de preocupação.
Ao criticar a “inércia política” que “enferma” o poder
judiciário, o presidente do STJ, lembrou palavras de Gandalf, personagem do livro e do filme “Senhor
dos Anéis”, que afirmava não nos ser dado “escolher o tempo em que vivemos”, “mas
apenas o que fazer com os tempos em que nos foi dado viver”. Isso ilustrar
o descontentamento do juiz conselheiro pela falta de ação dos governos e da AR,
em relação à Justiça. Se esta é lenta, “que
dizer do tempo da feitura das leis?” “Os diagnósticos são acertados, os planos de tratamento são adequados, mas
a prestação dos cuidados necessários tem tardado sem que se perceba a demora”,
diz o presidente do STJ, que focou deficiências no funcionamento dos tribunais
na 1.ª instância, com significativos atrasos no cumprimento dos despachos dos
juízes, com adiamentos e constrangimentos na marcação e na realização das
audiências de julgamento, devido, sobretudo, à escassez, ao descontentamento e à
desmotivação dos funcionários judiciais.
Já a ministra da Justiça focou o caso de uma mulher de
46 anos morta pelo marido, em casa, à frente dos filhos menores, de 6 e 14
anos. “O que tem a Justiça a dizer
a estes filhos, aos avós, aos tios, aos primos, aos amigos, aos professores dos
filhos, aos vizinhos, a outras mulheres vítimas de violência doméstica, a todos
nós que vimos as notícias?”, questionou, frisando que a queixa da
vítima, apresentada em 2022, foi arquivada no ano seguinte e sustentando que as vítimas de crimes devem ocupar “um
lugar cimeiro” do sistema judicial. E não se trata só das vítimas do crime de
violência doméstica (que é nefando), mas das vítimas de todos os crimes contra
as pessoas ou contra o património, bem como das vítimas de crimes económicos e
financeiros, que ficam com as vidas desfeitas. “Também o Estado, e, por
conseguinte, todos nós, cidadãos que pagam impostos, somos vítimas colaterais
de tais crimes”, considerou, aproveitando para anunciar algumas medidas, como a
conclusão, em janeiro, do trabalho que reformula o instituto da perda alargada
de bens (o “confisco”) obtidos pela via da corrupção, bem como um grupo de
trabalho para promoção da celeridade processual e de combate aos expedientes dilatórios.
Amadeu Guerra falou dos oficiais de Justiça. Segundo
apontou, “o maior constrangimento com que se depara a administração da Justiça”
é a carência e a falta de motivação de oficiais de justiça, bem como a não
aprovação de um Estatuto dos Oficiais de Justiça que contribua para “melhorar o
seu estatuto profissional” e crie mecanismos para “tornar a carreira mais
aliciante e atrativa”.
O presidente da AR prometeu a sessão para encontrar
pontos de convergência sobre “dez medidas simples” que lancem “uma revolução
cultural da Justiça”. E, ironizando que a reforma da justiça é promessa mais antiga do
que a do novo aeroporto, espera que a reforma “possa descolar”.
***
É possível, em tempos de maioria relativa na AR e de governação
precária, construírem-se consensos. Aconteceu, em 1986, com a Lei de Bases do Sistema
Educativo. Acontecerá agora com a reforma da Justiça? Não basta mudar
lideranças, é preciso mudar de políticas!
2025.01.14 – Louro de Carvalho
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