terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Abertura do Ano Judicial cercada de críticas e com cimeira no horizonte

 

Arrancou oficialmente, a 13 de janeiro, o Ano Judicial, em cerimónia no Supremo Tribunal de Justiça, com protesto de funcionários judiciais à porta – convocada pelo Sindicato dos Funcionários Judiciais (SFJ), a que a aderiu o Sindicato dos Oficiais de Justiça (SOJ) –, contra a proposta governamental de revisão da carreira (“Justiça para quem nela trabalha”, lia-se nas t-shirts negras), ao que a ministra da Justiça fez reparo.

Estrearam-se no evento o procurador-geral da República, Amadeu Guerra, a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, e o presidente da Assembleia da República (AR), José Pedro Aguiar-Branco.

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Fernanda de Almeida Pinheiro, bastonária da Ordem dos Advogados (OA) defendeu que a Ordem acompanhou e patrocinou o aparecimento e o desenvolvimento da democracia e é, até aos nossos dias, parte ativa da construção do estado de direito democrático.

A líder da OA recordou o “ataque” feito à liberdade da profissão, no último ano, quando se lhe impôs uma revisão do seu estatuto profissional que, entre outras alterações, obrigou à criação de um Conselho de Supervisão presidido por um não advogado e abriu a prática de atos próprios da advocacia a não advogados. E frisou que a OA existe, não para a salvaguarda de qualquer interesse egoístico da classe, mas “para garantir que ninguém, sob qualquer circunstância, possa violar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, cidadãs e empresas do nosso país”.

A bastonária alertou que a OA tem desafios internos que “urge resolver”. E não se cansará de o exigir as mesmas mudanças, até que os poderes políticos garantam um tratamento digno no sistema de acesso ao direito e aos tribunais (SADT) e uma previdência digna desse nome “aos nossos e nossas associadas”.

Sobre o SADT, a líder da classe afirmou que este serviço público garantido pela advocacia sempre funcionou. “Não sabemos se podemos dizer o mesmo de qualquer outro serviço público”, atirou, recordando que os honorários pagos aos profissionais que garantem o sistema, não são atualizados há mais de 20 anos.

Por sua vez, o procurador-geral da República quer autonomia (também financeira e acesso a fundos comunitários), com os processos-crime sob a sua alçada, e não do governo. “Coloquem-se à disposição do Ministério Público (MP) e dos órgãos de Polícia Criminal […] todos os meios humanos, equipamentos, software de tratamento e análise de prova digital, meios técnicos, periciais (internos e externos) e, depois, peçam-nos responsabilidades”, desafiou.

O novo titular da investigação criminal (e não só) falou da necessidade de Justiça mais célere e mais próxima dos cidadãos e pediu maior mobilização do MP no combate aos novos tipos de criminalidade, bem como a preservação do segredo de Justiça. E referiu “preocupação” pelos crimes de homicídio em cenário de violência doméstica, de branqueamento de capitais, de cibercriminalidade, de criminalidade de gangues e o praticado por menores de 16 anos, bem como pelos crimes de terrorismo, de tráfico de pessoas, de auxílio à imigração ilegal e à criminalidade praticada contra pessoas vulneráveis, em particular os idosos e menores.

Em suma, Amadeu Guerra elegeu quatro “temas estruturantes”: a necessidade da autonomia dos meios financeiros da Procuradoria-Geral da República (PGR); a situação de os dados dos inquéritos do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e os vários departamentos de investigação e ação penal (DIAP) estarem na alçada do Ministério da Justiça (MJ); a falta de magistrados e oficiais de Justiça; e a estratégia do MP para o confisco de bens adquiridos como resultado de crimes.

Já o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), João Cura Mariano, sublinhou que mergulham no esquecimento “dificuldades problemáticas”. Defendeu que há extensa reforma por fazer na Justiça e que deve ser feita para se poder iniciar uma “nova era”. “Uma reforma que deve ser feita de múltiplas e nevrálgicas alterações legislativas setoriais, a qual deve iniciar uma nova era caraterizada por um reformismo permanente”, referiu.

No âmbito dessa reforma, está a alteração do regime de ingresso nas magistraturas, a revisão do regime de acesso ao STJ e mudanças no Código de Processo Penal (CPP) e do Código de Processo Civil (CPC). Sobre as regras de ingresso na magistratura, Cura Mariano sustenta que se justifica aditar à proposta de lei em discussão a dispensa dos exames escritos dos alunos que obtiveram, na universidade, as mais altas notas na licenciatura e no mestrado, mantendo-se a sujeição às provas orais. E defende a necessidade de a lei ser “rapidamente aprovada”, pois “um novo concurso de acesso às magistraturas deveria ter o seu início no mês de janeiro em curso”.

Quanto à minúscula alteração ao Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), tão necessária a inverter o ciclo de progressivo envelhecimento dos quadros do STJ, criticou o facto de ainda não ter entrado na AR qualquer iniciativa legislativa, sem que se consiga “descortinar uma explicação para tal atraso, face à gravidade da situação”.

O presidente do STJ lembrou que, nos próximos seis anos, se reformarão cerca de 600 juízes e que o número de juízes já não é suficiente para preencher os quadros, “sendo o drama dos tribunais sem juízes, por ora, solucionado através de um indesejável regime de acumulação de funções de grande exigência para quem se disponibiliza a trabalhar para além do serviço que lhe está distribuído”. Assim, é necessário repor, nos próximos anos, o número de juízes que se vão reformando, “o que só se conseguirá com o ingresso e [com] uma formação, de cerca de uma centena de novos juízes, por ano, o que traz acrescidas exigências para o Centro de Estudos Judiciários [CEJ]”, que deve ser dotado dos meios necessários para tal empreendimento.

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Por seu turno, Rita Alarcão Júdice optou por elencar um conjunto de medidas que estão ou estarão brevemente no terreno: o regime de confisco de bens, o combate aos expedientes dilatórios, a criação do grupo de trabalho para melhorar a celeridade processual, a digitalização dos tribunais financiada pelos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a alteração das regras de juízes ao STJ, a assessoria aos tribunais e a revisão das regras dos advogados oficiosos.

E, sobre os protestos dos funcionários, considerou: “É uma forma democrática e legítima de protesto. Mas os Oficiais de Justiça já tiveram provas da determinação e da boa-fé do governo em resolver os problemas da classe, nos últimos meses: no aumento do suplemento de recuperação, decidido e pago, logo em 2024, na revisão do Estatuto Profissional, em curso, e no recrutamento de quase 600 novos profissionais, em apenas seis meses. Os funcionários judiciais sabem que têm na ministra da Justiça uma aliada. Mas uma aliada não é alguém que distribui dinheiro público na proporção do ruído ou do número de notícias. É alguém que conhece o valor do seu trabalho, que move montanhas para que os tribunais tenham computadores, sistemas informáticos, ar condicionado, segurança, elevadores, rampas de acesso, salas onde não chova.”

Do seu lado, o presidente da Assembleia da República acredita que muita coisa tem mudado, ao longo dos anos, mas sustenta que “é preciso agir”, envolvendo todas as partes interessadas. “Quem não reforma, é reformado. Quem não transforma, é transformado. Quem não apresenta soluções, torna-se parte do problema”, vincou, referindo que as soluções “impõem olhar a Justiça, não para nos juntarmos ao eco sobre uma crise, mas para a importância sobre a necessidade de uma maior compreensão interdisciplinar da realidade”, e frisando que os agentes da Justiça não são inimigos.

Considera que a Justiça não precisa de marketing, nem de conferências, mas de uma reunião de trabalho. “E é isso que faremos já no mês de fevereiro na sala do Senado”, disse, avançando que essa reunião (ou cimeira) “será com convidados representantes dos diferentes agentes do sistema judicial e com os grupos parlamentares, pretendendo-se que seja momento para se encontrarem pontos de convergência. “Gostava que, desta reunião de trabalho, pudéssemos extrair dez propostas simples, dez mudanças com as quais todos concordamos e que possam servir de base para uma revolução cultural na Justiça”, salientou.

A encerrar, o Presidente da República (PR), assumindo que há uma oportunidade renovada para olhar mais para o futuro, defendeu que a Justiça, em todas as suas dimensões, surge como apelo de valores, necessidade de princípios, mas também, num virar de ciclo, “de expectativa, incentivo, justificação e frustração de limitadas e exageradas exigências pessoais e coletivas”. 

“A Justiça sistema, urgência e realidade todos os dias, passou a ser vivida como escolha entre passado e futuro”. E realçou questões centrais, que não podemos ignorar. Desde logo, um novo ciclo, com novas lideranças: na presidência da AR, no governo, na presidência dos tribunais superiores, no MJ, na PGR e até as lideranças da oposição. E, nisto, diz o chefe de Estado, “há uma oportunidade renovada para olhar mais para o futuro”. Enfim, o PR apelou à convergência entre atores políticos e judiciários para mudanças na Justiça e apontou duas possibilidades, “a ambição de um pacto de Justiça”, como propôs no início do primeiro mandato, ou “de passos mais pequenos e por áreas de maior urgência de intervenção”.

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Feita a súmula dos principais conteúdos das diversas intervenções, tecidas de reivindicações e de acusações da parte dos operadores da Justiça e de apelos dos poderes políticos stricto sensu, talvez sejam de focar alguns pormenores dos discursos que são motivos de preocupação. 

Ao criticar a “inércia política” que “enferma” o poder judiciário, o presidente do STJ, lembrou palavras de Gandalf, personagem do livro e do filme “Senhor dos Anéis”, que afirmava não nos ser dado “escolher o tempo em que vivemos”, “mas apenas o que fazer com os tempos em que nos foi dado viver”. Isso ilustrar o descontentamento do juiz conselheiro pela falta de ação dos governos e da AR, em relação à Justiça. Se esta é lenta, “que dizer do tempo da feitura das leis?”Os diagnósticos são acertados, os planos de tratamento são adequados, mas a prestação dos cuidados necessários tem tardado sem que se perceba a demora”, diz o presidente do STJ, que focou deficiências no funcionamento dos tribunais na 1.ª instância, com significativos atrasos no cumprimento dos despachos dos juízes, com adiamentos e constrangimentos na marcação e na realização das audiências de julgamento, devido, sobretudo, à escassez, ao descontentamento e à desmotivação dos funcionários judiciais.

Já a ministra da Justiça focou o caso de uma mulher de 46 anos morta pelo marido, em casa, à frente dos filhos menores, de 6 e 14 anos. “O que tem a Justiça a dizer a estes filhos, aos avós, aos tios, aos primos, aos amigos, aos professores dos filhos, aos vizinhos, a outras mulheres vítimas de violência doméstica, a todos nós que vimos as notícias?”, questionou, frisando que a queixa da vítima, apresentada em 2022, foi arquivada no ano seguinte e sustentando que as vítimas de crimes devem ocupar “um lugar cimeiro” do sistema judicial. E não se trata só das vítimas do crime de violência doméstica (que é nefando), mas das vítimas de todos os crimes contra as pessoas ou contra o património, bem como das vítimas de crimes económicos e financeiros, que ficam com as vidas desfeitas. “Também o Estado, e, por conseguinte, todos nós, cidadãos que pagam impostos, somos vítimas colaterais de tais crimes”, considerou, aproveitando para anunciar algumas medidas, como a conclusão, em janeiro, do trabalho que reformula o instituto da perda alargada de bens (o “confisco”) obtidos pela via da corrupção, bem como um grupo de trabalho para promoção da celeridade processual e de combate aos expedientes dilatórios.

Amadeu Guerra falou dos oficiais de Justiça. Segundo apontou, “o maior constrangimento com que se depara a administração da Justiça” é a carência e a falta de motivação de oficiais de justiça, bem como a não aprovação de um Estatuto dos Oficiais de Justiça que contribua para “melhorar o seu estatuto profissional” e crie mecanismos para “tornar a carreira mais aliciante e atrativa”.

O presidente da AR prometeu a sessão para encontrar pontos de convergência sobre “dez medidas simples” que lancem “uma revolução cultural da Justiça”. E, ironizando que a reforma da justiça é promessa mais antiga do que a do novo aeroporto, espera que a reforma “possa descolar”.

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É possível, em tempos de maioria relativa na AR e de governação precária, construírem-se consensos. Aconteceu, em 1986, com a Lei de Bases do Sistema Educativo. Acontecerá agora com a reforma da Justiça? Não basta mudar lideranças, é preciso mudar de políticas!

2025.01.14 – Louro de Carvalho

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