Por iniciativa dos Tribunais superiores
portugueses, realizou-se, a 21 de março, na Fundação
Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a conferência “A Justiça antes e depois do 25 de Abril”. Trata-se
de um evento com que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o Tribunal
Constitucional (TC), o Supremo Tribunal Administrativo (STA) e o Tribunal de
Contas (TdC), pretenderam integrar-se nas iniciativas da Comissão Nacional para
as Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.
A sessão de
abertura contou com intervenções dos juízes conselheiros Henrique Araújo,
presidente do STJ, José João Abrantes, presidente do TC, Dulce Neto, presidente
do STA e José Tavares, presidente do TdC, tendo-lhes sucedido quatro painéis de
debate centrados em cada um dos quatro tribunais superiores, com a participação
de juízes conselheiros ligados àquelas instituições judiciárias e sob a
moderação de jornalistas.
Encerrou a Conferência o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
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Pela sua relevância
e pelo seu tom um tanto inconformado, registam-se algumas asserções dos
principais intervenientes na Conferência.
O presidente
do STJ considerou “urgente colocar a justiça como prioridade da atuação
política” e deixou indicações para as várias reformas que julga necessárias
para o setor.
O juiz
conselheiro Henrique Araújo lamentou a “espessa camada de indiferença” que os
seus alertas enfrentaram nos últimos anos e que são validados pelas atuais
falhas do sistema judicial.
“As intermitências da atuação política num domínio tão fundamental para a
vida dos cidadãos e para a democracia conduziram-nos a um presente em que já
não é possível disfarçar as vulnerabilidades do sistema”, afirmou o presidente
do STJ, que insistiu: “Por isso, repito: ‘é urgente colocar a Justiça como
prioridade da atuação política’.”
Sublinhando
o cariz inédito da reunião dos presidentes dos quatro tribunais do topo do
ordenamento judiciário, o juiz conselheiro descreveu-a como a “clara
demonstração de união e de convergência, quanto à necessidade de reafirmar o
papel da instituição ‘Justiça’ na realização do Estado de Direito democrático”.
O magistrado,
que preside por inerência ao Conselho Superior da Magistratura (CSM), lembrou o
“modelo autoritário, conservador e excessivamente burocrático” do sistema
judicial antes do 25 de Abril e assinalou “avanços importantes”, já nos anos
seguintes. Porém, notou que se registaram “períodos de absoluto alheamento ou
de mera atividade de gestão corrente, sem qualquer ação prospetiva”, e deixou
uma lista de mudanças prioritárias para o poder político encetar em nova
legislatura, apontando o diálogo e a abertura, o empenho e o espírito de
compromisso.
“É preciso agir no fortalecimento da independência do poder judicial e
nos níveis de transparência da sua atuação; no modelo de financiamento do sistema
de justiça; na concretização da autonomia administrativa dos Tribunais da
Relação [TR]; na eficácia e [na] celeridade processuais; na formação de
magistrados; nas assessorias; no acesso à justiça; na monitorização do impacto
da produção legislativa; na dignificação e [na] valorização das carreiras dos
oficiais de justiça e [dos] funcionários”, sintetizou.
No ano em
que terá de se jubilar e de deixar a presidência do STJ, por atingir os 70 anos
de idade, Henrique Araújo expressou o desejo de uma “nova primavera na justiça”
e de uma “justiça que honre Abril”.
Por sua vez,
o presidente do TC defendeu que a Constituição da República Portuguesa (CRP) só
será “verdadeiramente cumprida”, quando se conseguir o “Portugal mais livre,
mais justo e mais fraterno” do seu preâmbulo, alertando para “ameaças à
liberdade e à dignidade” na sociedade.
José João Abrantes recordou a evolução constitucional na
República, sublinhando o papel do TC como garante da “Constituição, dos
direitos fundamentais dos cidadãos e do Estado de direito democrático”, sendo
uma “trave mestra” do regime democrático saído da revolução abrilina.
O Tribunal Constitucional, enquanto “guardião da Constituição”
de 1976, “tem por missão e razão de ser defender uma Lei Fundamental centrada
na dignidade da pessoa humana, o primeiro e o mais imprescindível dos valores
do Estado de direito democrático”, sustentou o seu presidente. “Essa pessoa
humana não é uma abstração. São seres humanos, mulheres e homens concretos,
inseridos numa sociedade, onde há tensões e contradições, onde existem muitas
potenciais ameaças à liberdade e à dignidade dessas concretas pessoas”, disse o
juiz conselheiro.
A presidente do STA, apelando à “vontade política” para
investir na resposta aos problemas da jurisdição administrativa e fiscal,
criticou a falta de ação do Estado nesta área da justiça. “A crónica desatenção e o prolongado desinvestimento do Estado
nestes tribunais tem inviabilizado o cumprimento do princípio constitucional da
tutela jurisdicional efetiva, só alcançável, quando tivermos meios para
assegurar a prolação de todas as decisões em prazo razoável”, explanou a juíza
conselheira Dulce Neto, ao anotar que é aos tribunais administrativos e fiscais
que incumbe “proceder ao controlo da legalidade da atuação do Estado e demais
entidades públicas”.
A magistrada
sublinhou que os tribunais administrativos e fiscais são aqueles “em que o
Estado (em sentido amplo) é sempre o réu”, pelo que são necessários meios para
resolver “conflitos que, com frequência, se situam na seara dos direitos
humanos e de direitos e liberdades fundamentais”.
Nesse
sentido, vincou a importância de um novo ciclo político se traduzir também em
mudanças no setor da jurisdição administrativa e fiscal, que vão desde a
atribuição de dinheiro para a criação de gabinetes de apoio técnico e jurídico
para os juízes até a questões procedimentais, como o novo sistema de
distribuição eletrónica dos processos.
“Haja, portanto,
vontade política e coragem, a nível orçamental, no novo ciclo político que ora
inicia para prosseguir com um investimento que terá de ir muito além da aposta
na transição digital, resolvendo problemas tão pequenos, mas relevantes, como
aqueles que se verificam na distribuição eletrónica dos processos por um
algoritmo que o poder judicial desconhece e que, para lá do tempo que consome a
funcionários e magistrados, comete frequentemente erros crassos e inaceitáveis,
quando não está mesmo inoperacional”, observou.
Enfatizou que
as pendências têm diminuído e que o quadro de juízes tem crescido. E,
assinalando a existência de uma magistratura maioritariamente feminina – algo
só possível após 25 de abril de 1974, Dulce Neto salientou o contributo que uma
maior aposta nestes tribunais pode significar, perante o “quadro de incerteza e
instabilidade” da sociedade.
“A melhor
forma de celebrar os 50 anos do 25 de Abril, no quadro de incerteza e
instabilidade que a nossa sociedade atravessa, seria reforçar a atenção e o
investimento nestes tribunais, sabido que neles irão desaguar, de forma
crescente, novos e complexos litígios, seja no domínio de direitos
fundamentais, seja no domínio de políticas e medidas públicas”, vincou,
enumerando as questões ambientais, migratórias, digitais, de saúde ou de
contratação pública.
Recordando
que antes da Revolução de Abril, as portuguesas “tinham de pedir autorização ao
marido para quase tudo”, como para trabalhar ou para viajar para o estrangeiro,
a primeira mulher presidente de um supremo tribunal em Portugal lançou um
alerta para cenários de possível retrocesso nos direitos das mulheres. “Uma
realidade que nos parece hoje inconcebível, mas que importa recordar num
momento em que o Mundo enfrenta perigosos retrocessos – mesmo em sociedades
livres e em democracias consolidadas –, com a proliferação de mensagens
misóginas, discriminatórias e sexistas, alimentadas por retóricas populistas”,
alertou.
Também José
Tavares, presidente do TdC, traçou a evolução da instituição com mais de 600
anos de existência, sublinhando que só a Constituição de 1976, saída da
revolução, conferiu a este tribunal superior um enquadramento constitucional, “de
uma forma mais desenvolvida e completa do que Constituições anteriores”, com as
subsequentes alterações orgânicas e de funcionamento.
“Uma coisa é
certa: o Tribunal de Contas de 2024 é substancialmente diferente do Tribunal de
Contas de há 50 anos, soube evoluir e creio podermos afirmar ter sido
construído, passo a passo, um Tribunal de Contas moderno, naturalmente, sempre
sujeito à melhoria contínua”, afirmou José Tavares, que apontou a preocupação
da instituição com questões emergentes como a demografia, as tecnologias da
informação, o ambiente e as alterações climáticas, a sustentabilidade da
segurança social, a saúde, a educação, o cumprimento da Agenda 2030 das Nações
Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, entre outras.
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Na sessão de encerramento, a que presidiu, o Presidente da República (PR) pediu Justiça independente e
confiável contra “tentações ditatoriais”.
Na sua intervenção, o PR defendeu que
não há democracia sem uma “Justiça independente e amplamente confiável”. Foi um discurso em que
deambulou pelo passado, pelo presente e, sobretudo, pelo futuro da Justiça,
deixando muitos avisos e
apelos sobre o setor, que muitos consideram imune do ilícito (e obviamente
impune) e superior, em ética, aos demais órgãos do poder político e às
organizações públicas e privadas.
“Sem Justiça independente e
amplamente confiável não há democracia. É por aí que começam
as tentações ditatoriais, adulando-a para a poder conquistar,
diabolizando-a para a poder fragilizar e dominar”, avisou o chefe de Estado,
para quem é preciso que os outros poderes públicos saibam resistir “a uma e
outra dessas tentações”, mas também é preciso que a Justiça esteja “atenta para
prevenir [a] identificação entre o essencial controlo legal
dos responsáveis públicos e do combate ao abuso de poder e
a visão de que, ao fim ao cabo, existiria apenas um poder verdadeiramente
íntegro” que seria o judicial.
“Saber, da parte de todos, repensar
com humildade onde se não está a cumprir, saber, da parte de todos, o que falta
de estruturas e [de] meios para cumprir mais e melhor no modo e no tempo”,
pediu Marcelo Rebelo de Sousa, ao mesmo tempo que apelou a todos os
intervenientes para que se autoexaminem e revejam “métodos ou rotinas que
serviram no passado”, mas que, neste momento, “são travões, às vezes
mastodônticos”.
O objetivo é que se evite, “ao mesmo
tempo, a exposição de uns e outros poderes, excessiva, que acelera juízos
públicos que cairá em cima de todos eles”, tendo em conta os tempos da Justiça.
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Não questionando a validade nem a oportunidade
da Conferência, parece-me que se insiste em desligar a Justiça do poder
político, pretendendo que esta constitua um setor à parte, quando a CRP inclui
os tribunais no quadro da organização do poder político, sendo órgãos de
soberania como o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo.
Aliás, como pode a Justiça enformar a democracia, se não é um dado político?
Querem-nos incutir a ideia de que o
setor da Justiça é eticamente superior (inocentíssimo) aos demais setores da Administração
Pública, equívoco que o PR denunciou – e muito bem.
Insiste-se na independência da
Justiça, como se os outros órgãos de soberania não devessem ser independentes.
Ora, o que se exige é a separação e a não confusão de competências de uns e de outros,
mas, ao mesmo tempo, impõe-se o respeito, a cooperação e a interdependência dos
órgãos de soberania. A este respeito, torna-se descabida a crítica do
presidente do STJ e da presidente do STA ao chamado “poder político”. Pensam
que modificam a vontade política com discursos públicos, em vez da cooperação
discreta. Por outro lado, a sua independência parece ficar em risco, ao
delinearem a sua esperança na “próxima legislatura” ou no “novo ciclo político”,
agora, em início, como se a nova governabilidade venha a fazer os milagres que
as anteriores não ousaram, não quiseram ou não conseguiram fazer.
E penso que a Conferência podia ter
sido a oportunidade de oiro de os oradores explicarem ao povo o que mudou, na organização
e no funcionamento dos tribunais, após a revolução abrilina. Temos de aguardar
outro momento, mais didático, menos autoencomiástico e menos acusador.
2024.03.21 – Louro de Carvalho
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