A União
Europeia (UE) estabeleceu, em junho de 2022, um quadro regulamentar para os
criptoativos, para os emitentes de criptoativos e para os prestadores de
serviços de criptoativos.
Os recentes
desenvolvimentos neste setor, em rápida evolução, confirmaram a necessidade
urgente de regulamentação à escala da UE. O Regulamento dos Mercados de
Criptoativos (MiCA) protege melhor os europeus que investem nestes ativos e
evita a utilização abusiva de criptoativos, mas deixa espaço à inovação, para
manter a atratividade da UE.
Por
conseguinte, sob proposta da Comissão Europeia, o Conselho Europeu adotou o seu
mandato de negociação MiCA, a 24 de novembro de 2021. Os trílogos entre os
colegisladores tiveram início em 31 de março de 2022 e concluíram-se com um
acordo provisório entre a Presidência do Conselho e o Parlamento Europeu (PE),
sobre a proposta de regulamento relativo aos mercados de criptoativos (MiCA), que abrange os emitentes de
criptoativos não apoiados e das “criptomoedas estáveis”, bem como as
plataformas de negociação e as carteiras em que são mantidos os criptoativos.
Este quadro visa proteger os investidores e preservar a estabilidade
financeira, assim como permitir a inovação e promover a atratividade do setor dos
criptoativos. Ao mesmo tempo, proporciona uma maior clareza na UE, já que
alguns Estados-membros já dispunham de legislação nacional em matéria de
criptoativos, mas ainda não existia um quadro regulamentar específico, a nível
da UE.
“Este
regulamento histórico trava a utilização desregrada de criptoativos e confirma
o papel da UE como definidora de normas para as questões digitais”, dizia Bruno Le Maire, então ministro francês da
Economia, das Finanças e da Soberania Industrial e Digital.
É uma peça
do MiCA a regulamentação dos
riscos relacionados com os criptoativos. Com efeito, o MiCA protege os consumidores contra riscos
associados ao investimento em criptoativos e ajuda-os a evitar esquemas
fraudulentos. Os consumidores tinham direitos de proteção e de reparação muito
limitados, especialmente quando as transações ocorriam fora da UE. Com estas novas
regras, os prestadores de serviços
de criptoativos têm de observar requisitos rigorosos de proteção das carteiras
dos consumidores e de assumir a responsabilidade, caso percam os
criptoativos dos investidores. O MiCA abrange também qualquer
tipo de abuso de mercado relacionado com qualquer tipo de transação ou serviço,
nomeadamente a manipulação do mercado e o abuso de informação privilegiada.
Os
intervenientes no mercado de criptoativos são obrigados a declarar as informações sobre a sua pegada
ambiental e climática. A Autoridade Europeia dos Valores
Mobiliários e dos Mercados (ESMA) elabora projetos de normas técnicas de
regulamentação relativas ao conteúdo, às metodologias e à apresentação de
informações relacionadas com os principais impactos ambientais e climáticos
adversos. No prazo de dois anos, a Comissão Europeia teve de apresentar um
relatório sobre o impacto ambiental dos criptoativos e a introdução de normas
mínimas de sustentabilidade obrigatórias para os mecanismos de consenso,
incluindo a prova de trabalho.
A fim de
evitar sobreposições com a legislação atualizada em matéria de luta contra o branqueamento de capitais,
que abrange os criptoativos, o MiCA não duplica as disposições em matéria de
luta contra o branqueamento de capitais previstas nas regras, recentemente
atualizadas, aplicáveis às transferências de fundos que foram acordadas em 29
de junho. No entanto, exigiu que a Autoridade Bancária Europeia (EBA) fosse
incumbida de manter um registo
público dos prestadores de serviços de criptoativos não conformes. Os
prestadores de serviços de criptoativos cuja empresa-mãe esteja situada em
países que constem da lista da UE de países terceiros considerados de risco
elevado de atividades de branqueamento de capitais, bem como da lista da UE de
jurisdições não cooperantes para efeitos fiscais, são obrigados a aplicar
controlos reforçados em conformidade com o quadro da UE em matéria de luta
contra o branqueamento de capitais. Podem ser também aplicados requisitos mais
rigorosos aos acionistas e à gestão dos prestadores de serviços de
criptoativos, nomeadamente no atinente à sua localização.
Também integra
o MiCA um quadro sólido aplicável às “criptomoedas estáveis”, para proteger os
consumidores. Na verdade, os recentes
acontecimentos nos mercados das “criptomoedas estáveis” mostraram, mais uma vez, os
riscos em que incorrem os seus detentores na ausência de regulamentação, bem
como o impacto dessa ausência de regulamentação noutros criptoativos.
Por isso, o MiCA
protege os consumidores, pois exige aos emitentes de criptomoedas estáveis que
constituam uma reserva suficientemente líquida, com um rácio de 1:1 e, em
parte, sob a forma de depósitos. A
cada detentor das “criptomoedas estáveis” é oferecido um crédito, em qualquer
momento e de forma gratuita, pelo emitente, e as regras que regem o
funcionamento da reserva também proporcionam uma liquidez mínima adequada. Além
disso, todas as “criptomoedas estáveis” são supervisionadas pela EBA, sendo a
presença do emitente na UE uma condição prévia para qualquer emissão.
O
desenvolvimento de criptofichas
referenciadas a ativos baseadas numa moeda não europeia, enquanto
meio de pagamento amplamente utilizado, é limitado, a fim de preservar a
soberania monetária da UE. Os emitentes de criptofichas referenciadas a
ativos têm de possuir uma sede
oficial na UE, para assegurar a supervisão e o acompanhamento adequados
das ofertas públicas de criptofichas referenciadas a ativos.
Este quadro
proporciona a segurança jurídica esperada e permite que a inovação prospere na
UE.
Enfim, passou
a haver regras à escala da UE aplicáveis aos prestadores de serviços de
criptoativos e aos diferentes criptoativos. Com efeito, nos termos do acordo, os prestadores de serviços de
criptoativos necessitam de uma autorização para operar na UE. As
autoridades nacionais têm de emitir a autorização no prazo de três meses.
Relativamente aos prestadores de serviços de criptoativos de maior dimensão, as
autoridades nacionais transmitirão regularmente informações pertinentes à ESMA.
As criptofichas não fungíveis (NFT), isto
é, os ativos digitais que representam objetos reais como arte, música e
vídeos, são excluídos deste âmbito
de aplicação, exceto se forem abrangidos pelas categorias de
criptoativos existentes. No prazo de 18 meses, a Comissão Europeia teve
de elaborar uma avaliação exaustiva e a proposta legislativa específica,
proporcionada e horizontal para criar um regime para as NFT e para fazer face
aos riscos emergentes desse novo mercado.
Ao acordo
provisório, seguiram-se as etapas seguintes, desde logo a sujeição à aprovação
do Conselho e do PE, antes de seguir o processo de adoção formal, até à formulação
e aprovação final do regulamento e a sua publicação no jornal oficial da UE.
***
A Comissão
Europeia apresentou a proposta do MiCA em 24 de setembro de 2020. Esta proposta
faz parte do vasto pacote Finança Digital, que visa desenvolver uma abordagem
europeia que promova o desenvolvimento tecnológico e assegure a estabilidade
financeira e a proteção dos consumidores. Além da proposta do MiCA, o pacote
inclui uma estratégia de finança digital, um Regulamento Resiliência Operacional
Digital (DORA) – que abrange também os prestadores de serviços de criptoativos
– e a proposta relativa ao regime-piloto para a tecnologia de registo
distribuído para utilizações em grosso.
Este pacote
colmata uma lacuna na legislação da UE, assegurando que o atual quadro jurídico
não obstaculiza a utilização de novos instrumentos financeiros digitais e
garantindo que essas novas tecnologias e produtos são abrangidos pelo âmbito de
aplicação da regulamentação financeira e dos mecanismos de gestão dos riscos
operacionais das empresas que operam na UE. Assim, o pacote visa apoiar a
inovação e a aceitação de novas tecnologias financeiras, proporcionando, em
simultâneo, um nível adequado de proteção dos consumidores e dos investidores.
***
Assim, a 9 de junho de 2023, foi publicado, no Jornal
Oficial da União Europeia, o Regulamento (UE) 2023/1114 do Parlamento Europeu e
do Conselho, de 31 de maio de 2023, relativo aos mercados de criptoativos
(Regulamento MiCA – markets in crypto assets, em inglês), tendo
entrado em vigor em 29 de junho do mesmo ano de 2023.
A este respeito, o advogado José A. Nogueira, a 22 de março
deste ano, lamentava que a
entrada em vigor do MiCA ainda não tenha atraído a atenção devida naquilo que
se impõe como uma área de vanguarda numa realidade cada vez mais presente,
especialmente junto dos mais jovens.
Efetivamente, como sustenta o renomado advogado da RSN Advogados, a existência de um conjunto de direitos, de serviços ou
de ativos digitais “impõe-se, cada vez mais, no quotidiano e o Direito terá,
inexoravelmente, que lhe dar enquadramento”. Neste sentido, o equilíbrio da
segurança jurídica com o dinamismo da inovação é o desafio a que o MiCA “procura,
de forma pioneira, dar respostas”.
Cumprir requisitos regulatórios traz às empresas,
especialmente às mais pequenas, “obrigações que se revelam dispendiosas,
dificultando a livre participação no mercado, com impacto negativo na inovação”.
E o especialista aponta a índole paradoxal da questão. De facto, o instrumento jurídico
que visa dinamizar a indústria digital na UE colide com os princípios
fundadores das “criptomoedas”, como a descentralização e o anonimato, o que
desagradará aos mais dogmáticos do setor. Porém, como já ficou dito e agora se sintetiza, o objetivo final do
pacote legislativo em causa é proteger os consumidores, regulando as empresas
que emitem, negoceiam ou custodiam de criptoativos fungíveis.
Assim, destaca-se: a exigência de procedimentos
adequados de diligência prévia (due dilligence) e de verificação da
identidade dos clientes; a obrigação de, para funcionarem, as empresas que
emitem, negoceiam ou custodiam criptoativos
de solicitarem autorização junto das autoridades competentes de cada Estado-membro
da UE; a criação de um registo
centralizado de prestadores de serviços de ativos criptográficos (crypto-asset
service providers – CASP); e a imposição da regulação pelas mesmas regras às
empresas que operam em diferentes países da UE, aumentando a concorrência de
serviços em diferentes países.
O receio de que o MiCA desencoraje a inovação é
válido. Todavia, nenhum mercado é sustentável e “fair”, sem o devido enquadramento legal. Este é o dado
positivo que importa vincar. E o desafio é a devida implementação do novo
regime, nomeadamente através da correta transposição dos termos e dos conceitos utilizados pelos
profissionais do setor e pelas autoridades regulatórias; da implementação prática do MiCA, com respostas técnicas capazes no
respeitante à supervisão e à autorização das empresas; da consciencialização e da capacitação das partes interessadas,
incluindo empresas, investidores e autoridades supervisoras; e da cooperação
internacional.
Seja como for, o MiCA constitui um marco relevante na
regulamentação do mercado digital na UE, pois estabelece padrões mais rigorosos
para a segurança dos produtos, para a transparência das plataformas online e para a proteção dos
consumidores. E, ao promover a confiança dos consumidores e uma concorrência
mais justa, oferece oportunidades para o crescimento e para a inovação no
mercado digital em Portugal e em toda a UE, que importa não desperdiçar.
O futuro está muito próximo e é já daqui a pouco. Por
isso, convém acautelá-lo.
2024.02.27 – Louro de Carvalho
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