É
a coisa mais natural em democracia. Realizaram-se eleições para a Assembleia da
República (AR) com uma das mais amplas participações de eleitores. Os votos
convertidos em mandatos, nos termos constitucionais e da respetiva lei
eleitoral, ditaram nova composição parlamentar, de modo que, tendo-a em conta,
o Presidente da República (PR), ouvidos os partidos com assento parlamentar,
indigitou um novo primeiro-ministro (PM).
Como
a campanha eleitoral perdeu imenso tempo a abordar a questão dos cenários
pós-eleitorais e, consequentemente, os problemas da governabilidade ou da
ingovernabilidade, também agora os pretensos modeladores da opinião pública
tentam fazer-nos a cabeça sobre o comportamento dos deputados na AR e sobre a
suposta curta duração do governo, indo ao ponto de fornecer diretrizes e
orientações aos novos detentores do poder executivo.
Penso
que, antes de mais, será prudente deixar que os deputados tomem os seus lugares
e que o novo PM seja formalmente nomeado e empossado, assim como os seus
ministros e secretários de Estado (eventualmente também os subsecretários de
Estado). Só depois de os membros do governo cessante deixarem as suas funções e
depois de o novo governo tomar posse, é que a AR ficará com uma composição mais
estável, porque governantes do elenco de António Costa foram eleitos deputados
e deputados da Aliança Democrática (AD), porque integram o governo, serão
substituídos na AR por novos deputados oriundos dos respetivos círculos
eleitorais.
Correu,
do meu ponto de vista, demasiada tinta a propósito da eleição do presidente da
Assembleia da República (PAR), a manifestar o furor especulativo, como se
alguns operadores da comunicação social, mormente os que fizeram campanha para
que vingasse a solução eleitoral encontrada, não tivessem mais assuntos de
interesse a abordar.
Não
havendo, na AR, uma força política maioritária (a esquerda não tem maioria, a
direita moderada também não e a direita radical também não), era óbvio que
propor um candidato à eleição de PAR, sem negociar com outra força política de
feição ideológica ou pragmática mais afim, só por milagre teria sucesso,
sobretudo se nos lembrarmos de que o voto, nestas circunstâncias, é secreto,
podendo o votante desviar-se, sem penalização, da diretriz partidária.
Também
é natural que um partido que tenha 50 deputados na AR barafuste, porque o líder
da AD manteve, para já, o aforismo que gizou, “o não é não”, para se eximir de
negociar com um partido que, pelos vistos, não agrada à maioria do eleitorado.
Num
segundo momento, cada uma das três maiores forças partidárias apresentou o seu
candidato a PAR e, como nenhum obteve a maioria absoluta dos votos dos
deputados em efetividade de funções (116 votos em 230 deputados), realizou-se a
segunda volta, em que o candidato do Partido Socialista (PS) obteve o maior
número de votos (90), mas longe da maioria necessária. Por isso, o processo
eleitoral foi reaberto. E o PS tomou a iniciativa de propor à AD uma solução
para o impasse: um acordo institucional de presidência rotativa, sendo a
presidência da AR confiada, nas primeiras duas sessões legislativas, ao Partido
Social Democrata (PSD) e, nas outras duas, ao PS, o que foi aceite, tendo sido
eleito, por voto secreto, o deputado José Pedro Aguiar branco, do PSD, que fez
o discurso de equidistância e de promessa de respeito por todos os deputados,
em nome dos princípios da dignidade de todos e da igualdade dos deputados,
assim como em nome do prestígio da casa da democracia.
Sem
qualquer problema, os deputados votaram, a seguir, os nomes iniciados pelas
quatro maiores forças partidárias para vice-presidentes, para secretários e
para vice-secretários.
O
líder do Chega veio a terreiro dizer que a AD fez a sua escolha (referindo-se
ao PS) e o vice-presidente da AR proposto por aquele partido esclareceu que o seu
partido é contra o sistema, mas não contra o regime. Era o que faltava ser
contra o regime e alinhar nas suas estruturas!
Vieram
alguns comentadores colocar em dúvida a posição do PS, o qual aproveitou o
ensejo para reafirmar o seu estatuto de líder da oposição, responsável e
aguerrida, às políticas da AD, mas garantindo que não fará oposição ao país,
nem à Assembleia da República. Paralelamente, recordou que não alinharia em
coligações negativas contra o programa do governo e que viabilizaria um
orçamento retificativo, se o governo o julgar necessário para responder às
reivindicações dos professores e das polícias, com a condição de que esse
instrumento de gestão seja elaborado até ao início do próximo verão. Também
reiterou que não se comprometia, a esta distância, a viabilizar qualquer outro
orçamento do Estado.
Uma
coisa é certa: é mais difícil ao PR ver contrariado um veto a um decreto da AR.
Com efeito, será difícil conseguir-se, na AR, uma maioria que reconfirme um seu
diploma vetado, ficando o chefe de Estado a ganhar pontos. Resta saber se irá vetar
leis, como até agora, com base na aprovação por uma diminuta (ou, no caso, instável)
maioria.
Outra
questão que tem estado em discussão na praça pública é a do excedente
orçamental. Alguns sustentam que o excedente orçamental, enaltecido por
Fernando Medina, ou resulta de habilidade do titular da pasta das Finanças ou
foi construído à custa do sacrifício e das lágrimas da pessoas (“o país está
melhor, mas as pessoas estão pior”); outros estão a minimizá-lo, provavelmente para
criar o ambiente favorável à prometida descida de impostos e a outros itens que
integraram o leilão de promessas. A propósito, lembro-me da promessa de choque
fiscal em 2022, contrariada pelo aumento de impostos, por o novo governo,
alegadamente, ver o país de tanga.
Alguns
comentadores minimizam a descida da dívida e do défice, pelo facto de isso
resultar do aumento do produto interno bruto (PIB), bem como da subida da
inflação. Com efeito, segundo eles, a dívida não baixou em valores absolutos,
mas apenas em relação ao PIB.
Também
os especialistas se dividem sobre a aplicação do excedente orçamental, se deve
ser feita na resposta às reivindicações dos diversos grupos profissionais ou se
deve ser feita na amortização da dívida. O próprio secretário-geral do PS e o
seu correligionário Fernando Medina, responsável pelo apuramento do excedente,
vêm advertindo para a evolução dos acontecimentos e para o facto de as regras
orçamentais da União Europeia (UE), desde a pandemia, serem retomadas em 2025.
Além disso, a guerra na Ucrânia está sem fim à vista e subsiste o compromisso
de investir 2% na Defesa, nos termos do compromisso com a Organização do Tratado
do Atlântico Norte (NATO).
Quanto
ao governo, também há comentários desajustados e presságios pouco políticos.
Ainda
não se tinha ideia sobre quem integraria o executivo, já se aventava, como
certo, o propósito de a AD governar por decreto. Quis fazê-lo um presidente francês,
quando eleições parciais lhe deram maioria desfavorável na Assembleia Nacional,
o que mereceu a crítica de tique ditatorial.
Ora,
no nosso sistema politico-constitucional, de forte pendor parlamentar (o
sistema francês é semipresidencialista quase a raiar, em alguns aspetos, o sistema
presidencialista), o governo pode legislar (por decreto-lei) em matérias da sua
“exclusiva competência”, nomeadamente, em “matéria respeitante à sua
organização e funcionamento”, em matérias não reservadas à AR, e em matérias de
reserva relativa da AR, “mediante autorização desta”, bem como em matérias de
“desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos
contidos em leis que a eles se circunscrevem” (ver artigo 198.º da CRP –
Constituição da República Portuguesa). Todavia, qualquer decreto-lei pode ser
objeto de apreciação parlamentar, podendo constituir-se uma maioria que dite a
sua revogação ou a alteração de algumas das suas normas. Por isso, governar por
decreto não é opção.
Conhecido
o elenco ministerial, mas ainda sem tomar posse (agendada para 2 de abril
quanto ao PM e aos ministros, e para 5 de abril, quanto aos secretários de
Estado), já se discutia a curta longevidade do governo e até veio a público,
por supostos pseudónimos do PR, que este dava ao governo seis meses para
mostrar o que vale. Basta! Deixem que tomem conta das respetivas pastas, que
elaborem o programa do XXIV Governo Constitucional, que este seja discutido na
AR, que tenham tempo de executar ou não, faseadamente, o leilão de promessas
eleitorais e que mostrem a capacidade de elaborar orçamentos, de os executar e
de negociar medida a medida. E vamos fazendo, à medida que passa o tempo, o
nosso juízo de valor.
Não
obstante, a longevidade do governo depende da capacidade de negociar o Orçamento
do Estado para 2025 (OE 25) e da crença nas sondagens. Se o OE 25 passar,
dificilmente o PR terá condições para dissolver a AR, a menos que o pendor
dissolvente prevaleça (a partir de setembro de 2025, o PR não tem o poder de
dissolução). Por outro lado, se o PM quiser governar à vista, se se fiar nos
estudos de opinião e se quiser arranjar pretexto para fazer cair o governo,
pode ter sorte e conseguir maioria absoluta em novas eleições ou ver uma subida
vertiginosa da extrema-direita, de modo a engolir um dos dois grandes partidos.
Às vezes, a ambição trama o artista.
Posso
não gostar do atual elenco ministerial e ter baixas expectativas, mas não me é
lícito condenar o governo ao fracasso ou salvá-lo. Ele que se salve pelas boas
medidas ou se afunde na sua eventual inépcia. Respeito o recato do silêncio que
resguardou os nomes do elenco, tal como respeito as luzes da transparência, mas
sem exageros. O silêncio tanto pode ser a alma do negócio como pode ser a negação
da prestação de contas atempada. E a excessiva transparência pode redundar em
devassa ou em descaramento.
Não
conheço alguns dos ministros, pelo que não faço juízos apressados; e sei do
valor académico e/ou profissional de outros, mas nem sempre valor académico e
profissional é mais-valia em liderança política. Só espero que boas medidas não
regridam, que medidas nitidamente perversas sejam revertidas e que medidas cuja
validade se desconhece tenham espaço e tempo para mostrarem o que valem.
O
governo fundiu pastas, reagrupou algumas e criou uma pasta nova. É uma questão
de orgânica a gerir pelo PM. Tem muitos elementos do PSD – pesos políticos –,
pouca abertura à sociedade civil. É natural que o partido que governa se escude
na prata da casa e não na sociedade dita civil, que não quer ser política.
Será
governo de combate, como dizem? Espero que não seja de combate à oposição, aos grupos
socioprofissionais, ao povo. Espero que seja de combate à conflitualidade, à
pobreza, às desigualdades, à insegurança e ao atraso.
Veremos
se quem provocou a atual situação não virá a arrepender-se. A política é feita
de opções.
2024.03.30 – Louro de Carvalho
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