As últimas eleições mudaram a
face política do país e criaram inédita aritmética governativa.
Mesmo antes de conhecidos os
resultados dos dois círculos eleitorais da emigração (Europa e Fora da Europa),
o 10 de março trouxe novidades já bastante conhecidas: aumento da participação
no ato eleitoral (a taxa de abstenção foi a mais baixa das eleições nacionais
desde 1995, mas a mais baixa, em termos percetuais – 8,5% –, foi a das eleições
para a Assembleia Constituinte, a 25 de abril de 1975); vitória tangencial da
Aliança Democrática (AD), face ao Partido Socialista (PS); subida do Chega
(18,06%), vencendo num círculo eleitoral, conseguindo votos em todos os
distritos, mandatos em quase todos e obtendo 48 lugares na Assembleia da
República (AR); e dilema governativo da AD em governar em minoria, negociando
medida a medida, lei a lei ou governar com o Chega, ao arrepio do que prometeu
Luís Montenegro.
Porém, surgiu um caso de
confusão com menor ou maior impacto, de acordo com a opinião dos observadores:
a propalada confusão entre o voto na AD e na parónima ADN (Alternativa
Democrática Nacional). Efetivamente, a AD alertou, na campanha eleitoral,
para eventual confusão entre a AD, coligação de três partidos – Partido Social
Democrata (PSD) Partido do Centro Democrático Social (CDS) e Partido Popular
Monárquico (PPM) –, e a ADN, partido.
O PSD e o CDS terão perdido milhares
de votos, mas, com tal perda, só foram “vítimas da lei que aprovaram”, há 35
anos, a Lei n.º 5/89, de 17 de março, que
estabelece:
“Artigo 1.º - 1 - Os símbolos e siglas
das coligações ou frentes, para fins eleitorais, devem reproduzir rigorosamente
o conjunto dos símbolos e siglas de cada um dos partidos que as integram.
2 - O disposto no número anterior
aplica-se às coligações ou frentes já constituídas ou a constituir.
Artigo 2.º Para efeitos do disposto no
artigo anterior, os símbolos e siglas dos respetivos partidos devem
corresponder integralmente aos constantes do registo do Tribunal Constitucional.
Artigo 3.º A apreciação da legalidade
dos símbolos e das siglas das coligações ou frentes compete ao Tribunal
Constitucional, nos termos previstos nos artigos 22.º-A e 16.º das Leis n.os
14-A/85 e 14-B/85, de 10 de julho, respetivamente [regime de coligações e frentes para fins eleitorais].
Artigo 4.º É revogado o n.º 2 do artigo
55.º da Lei n.º 14/79, de 16 de maio [Lei
Eleitoral para a AR].”
A norma revogada
estabelecia: “Em caso de coligação, podem ser utilizadas as denominações, as
siglas e os símbolos dos partidos coligados ou adotadas novas denominações,
siglas e símbolos.”
Assim, desde 1989 os partidos não podem
concorrer com siglas e símbolos que representem uma coligação. A lei foi aprovada
“para prejudicar claramente o Partido Comunista Português (PCP) que era a única
coligação que existia [CDU – Coligação Democrática Unitária] e que fazia
campanha dessa forma”. E, 35 anos depois, a AD foi “vítima” dessa lei, anota o
politólogo Luís Humberto Teixeira. Ironicamente,
agora, a AD perdeu milhares de votos para a ADN, devido a confusão de
nomenclatura no boletim de voto. Não havia referência à AD em sigla ou em
símbolo, quando os eleitores assinalaram a força política em que votavam, pois,
desde 1989, os partidos não podem colocar, no boletim de voto, siglas ou símbolos
que representem coligações.
Com efeito, a lei obriga as coligações a reproduzirem
rigorosamente o conjunto dos símbolos e siglas dos partidos que as constituem,
em vez de terem símbolo próprio. A lei em referência foi aprovada com os votos
a favor do PSD e CDS, votos contra do PCP e do PEV (Partido Ecológico “Os
Verdes) e as abstenções do PS e PRD (Partido Renovador Democrático).
Assim, o PCP colocou no boletim de voto o símbolo da
foice e martelo, em concorrência com o do PCTP/MRRP (Partido Comunista dos
Trabalhadores Portugueses/ Movimento Reorganizativo do Partido do
Proletariado), similar e passível de levar os eleitores a enganarem-se, na
altura.
Desta feita, a campanha foi feita em torno da AD, mas, ao não haver nos
boletins de voto nada a lembrar AD, tendo os símbolos dos respetivos partidos
[PPD-PSD, CDS-PP, PPM], muitas pessoas foram pelo que acharam mais parecido e
assinalaram ADN.
Apesar de Bruno Fialho, líder deste pequeno partido, recusar a confusão com
a AD, garantindo que “uma troca de letras é chamar burros aos portugueses”, a
ADN teve um inesperado e enorme crescimento, face às últimas eleições
legislativas, com cerca de 100 mil votos, de acordo com os dados provisórios,
que não incluem os círculos da emigração. O partido multiplicou por 10 o
resultado que conseguiu em 2022 (10 mil votos).
A 17 de março de 1989, em debate na AR, Pais de Sousa,
do PSD, explicava que a lei pretendia que os símbolos e siglas dos respetivos
partidos das coligações ou frentes para fins eleitorais correspondessem
“integralmente aos constantes do Tribunal Constitucional”. No entanto, o PCP
percebeu que o projeto de lei pretendia “prejudicar a concorrência da CDU” a
cinco meses das eleições para o Parlamento Europeu (PE). “O PSD não se limita a procurar
melhorar as possibilidades da sua corrida eleitoral a golpes de alteração
súbita das regras do jogo, o que é pouco limpo democraticamente. Procura também
dificultar a carreira eleitoral dos adversários com golpes tão pouco
edificantes, como o empurrão e a rasteira, o que é democraticamente
inqualificável”, sublinhou então Carlos Brito, deputado do PCP.
É possível que o PCP e o PEV tenham saído prejudicados,
face ao PCTP-MRRP. Aliás, desde que, em 1976, o PCTP-MRPP foi autorizado a
concorrer a eleições usando um símbolo que se confunde com o do PCP, a única
forma que o PCP tem tido de se diferenciar no boletim é através de uma
estratégia de coligação.
Até 1989, a coligação (fosse FEPU, APU ou CDU) o
partido podia usar um símbolo diferente. A partir dessa alteração legislativa,
deixou de poder usar essa diferenciação visual. Portanto, há mais de 30 anos
que há maiores probabilidades de o PCP ser prejudicado em cada eleição pela
presença do PCTP-MRPP no boletim, dada a extrema semelhança dos símbolos.
No entanto, como aconteceu agora com a confusão entre a
AD e a ADN, é impossível quantificar quantos votos depositados foram
intencionais e quantos foram por engano. E, como advertiu a Comissão Nacional
de Eleições (CNE), a vésperas o ato eleitoral, “o voto de cada eleitor conta
exatamente como ele escolheu” e, em 50 anos de democracia, “nenhum resultado
eleitoral foi globalmente contestado”.
***
Nas legislativas de 2022, os dados provisórios (que
não contavam com os círculos eleitorais da emigração) davam conta de que tinham
sido inutilizados cerca de 673 mil votos. Não se trata de votos nulos, mas dos
votos válidos e explícitos que não se convertem em mandatos, mercê do método de
representação proporcional pela média mais alta de Hondt.
O número de agora não anda muito longe disso,
apesar de se esperar uma redução. De facto, Luís Humberto Teixeira Pensava que o número baixaria, devido à maior participação no ato
eleitoral e às coligações. Todavia, a ADN alterou esse cenário:
a sigla ADN foi confundida com a AD no boletim. Por esse ou por outros motivos,
a ADN multiplicou por 10 o número de votos. Se, em 2022, recolheu 10 mil, agora
alcançou mais de 100 mil. Esta questão do ADN faz com que os números se mantenham os mesmos, ou
seja, que andem na mesma faixa que em 2022”.
Como há dois anos, o Bloco de Esquerda (BE)
foi o partido mais prejudicado. Quase 127 mil votos não
foram convertidos em mandatos, número que superou o das últimas legislativas
(112417). Só em Braga, 21 mil votos do BE foram perdidos. Há locais em que, por
pouco, os partidos não obtiveram nenhuma representação, o que faz imensa diferença
para a contagem final.
Apesar do resultado da ADN, os seus cerca de
100 mil votos conquistados foram todos “para o lixo”, pois não foram
suficientes para eleger um único deputado. O único benefício de que desfrutará
é a subvenção, que permitirá ao partido apostar na sua implantação, tentar ter
condições para poder dar a conhecer as suas propostas.
Já o PS, à semelhança de tantos outros anos, não teve um único voto “inútil”.
Também o Chega, em 2022, o segundo partido mais prejudicado, não desperdiçou votos
agora, tal como a AD,
refere o responsável pela petição “Por uma maior conversão de votos em
mandatos, que reuniu o número suficiente de assinaturas para ser discutida na
AR, há um ano.
Além de proteger os partidos maiores, a lei
eleitoral beneficia os maiores círculos eleitorais, como Lisboa e Porto, que têm o maior número de
mandatos do país: 48 e 40, respetivamente.
O
distrito mais prejudicado foi, novamente, Portalegre: 39,8% dos votos válidos
depositados não contaram para eleger. É a terceira vez seguida que isso acontece,
o que se explica pelo facto de o círculo estar reduzido a dois mandatos. O PS
perdeu um dos dois lugares que tinha conquistado nas legislativas anteriores
para o Chega e a AD esteve muito perto de eleger. Enfim, nestas eleições, a
opinião de quase 40% dos eleitores foi ignorada.
O debate sobre as fragilidades da lei eleitoral
nas legislativas não é de agora. E há, pelo menos, três soluções para tornar o
atual sistema mais representativo e proporcional: a criação de um círculo de
compensação (como nos Açores), a instituição de um círculo único (como na
Madeira) e/ou a redução substancial do número de círculos eleitorais de 22 para
nove, para permitir que haja maior pluralismo na AR.
A única alteração que está em debate é se o
círculo de compensação – todos concordam com o seu benefício – deve ser de 40,
30 ou 20 deputados. O líder parlamentar da Iniciativa Liberal (IL), Rodrigo
Saraiva, disse-o a 15 de dezembro, quando a AR rejeitou a proposta do seu
partido de criação de um círculo nacional de compensação para as eleições
legislativas. A IL sugeria que o círculo fosse composto por 40 mandatos, para
“mitigar o problema dos votos desperdiçados” – Desta vez, segundo os dados
provisórios, perderam-se cerca de 673 mil votos.
Luís Aguiar-Conraria, professor de
Economia, que coordenou o projeto “Regras de Votação e Distorções Eleitorais”,
do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa propõe outro
exercício: simular como seriam os resultados destas legislativas com “um
círculo adicional e de compensação de 20 deputados”. A AR
ficaria com um total de 250 deputados (230+20), como aconteceu logo no início
da democracia, em abril de 1975, e entre dezembro de 1979 e outubro de 1991. O
círculo de compensação dá deputados aos partidos menos votados.
Admitindo que os resultados dos círculos
da emigração (Europa e Fora da Europa), conhecidos dia 20, replicam a votação
nacional, a AD conquista dois mandatos e o PS os outros dois. Nas eleições
anteriores, havia dois grupos grandes (PS e PSD), pelo que os deputados da
compensação iam para os restantes partidos; agora, com três grandes grupos, os
deputados da compensação iriam para os restantes e nenhum para o PS, para a AD
ou para o Chega.
Não
obstante, com a redistribuição, a AD e o PS continuariam a ser de longe os
partidos com mais deputados eleitos e, logo depois, o Chega, que se consolidou
como a terceira força política. Já o BE, o partido mais prejudicado pelo
sistema eleitoral com quase 127 mil votos não convertidos em mandatos, seria o mais
compensado. De cinco deputados duplicaria para 10.
Os cálculos dependem da dimensão do
círculo de compensação e do método matemático, o que afeta a distribuição de
mandatos nos círculos eleitorais (distritos e emigração). Porém, a ADN entrava
na AR, ou seja, com um círculo de compensação, passava a ter representação
parlamentar.
Em 2006, houve uma alteração nos Açores
a partir de um acordo entre o PS e PSD que dominavam nas assembleias regionais.
Além dos nove círculos de cada ilha e designados pelo respetivo nome, que
elegem dois deputados e ainda deputados em número proporcional ao dos eleitores
nele inscritos, passou a haver um círculo de compensação coincidente com a
totalidade do arquipélago que elege cinco deputados. A mudança concretizou-se a
partir das legislativas regionais de 2008 e “aumentou a pluralidade, a
representação tornou-se mais abrangente e isso trouxe benefícios à democracia e
à representação dos eleitores, pois há sempre sensibilidades diferentes”,
afirmou à Lusa, no início do ano Humberto Melo (PSD), presidente do Parlamento
regional, em 1995-1996 e 1998-2000. “Globalmente beneficiou todos” os partidos,
“sobretudo os mais pequenos”, e “serve mesmo para compensar a distorção que o
sistema produz”, observou.
A iniciativa da IL replicaria o modelo
os Açores. Obteve os votos favoráveis da IL, do BE, do Chega, do PAN (partido
Pessoas-Animais-Natureza) e do Livre, mas o PS, o PSD e o PCP votaram contra,
aduzindo não ser altura para a discussão, pela proximidade das eleições de
março.
***
Quanto ao cenário resultante das
eleições, é de referir que o povo, salvo as naturais exceções, escolheu como quis
(o voto de protesto é residual, tal como a confusão entre a AD e ADN). Se
alguém tem de fazer mea culpa, não é
o povo, mas os responsáveis pela situação a que se chegou: o governo por não
convencer o eleitorado do mérito da ação governativa; a oposição, sedenta do exercício
do poder; a Justiça, por se atirar, publicamente, a titulares de cargos
políticos por supostos crimes de corrupção e de crimes afins, sem indícios
sólidos; e o Presidente da República, que, sem explorar outras hipóteses, dissolveu
a AR.
Quanto à perda de votos, por não serem
convertíveis em mandatos, penso que o atual sistema de representação
proporcional é melhor do que o sistema maioritário. Só fará sentido passar de
22 círculos eleitorais a nove, quando estiverem criadas as regiões administrativas
(cinco no Continente), além das autónomas, devendo persistir, até lá, a base
organizativa distrital. E, mais do que instituir o círculo nacional de compensação
(que será bem-vindo), impor-se-ia a atribuição de um número mínimo de deputados
a cada círculo eleitoral (por exemplo quatro), obviamente à custa dos círculos
eleitorais com mais eleitores.
2024.03.16 – Louro de Carvalho
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