Centenas de antigos generais e de titulares de outros altos
cargos da segurança israelita alertaram para os riscos da situação humanitária
em Gaza, cada vez mais insustentável, na segurança de Israel, bem como para as
consequências que a situação pode ter nas relações com os parceiros israelitas
ocidentais – Europa e Estados Unidos da América (EUA) – e árabes.
Organizados no movimento “Comandantes para a Segurança de
Israel” (CIS, na sigla inglesa), já com 10 anos de existência (foi criado em 2014)
– definindo-se como apartidário e defensor do princípio de “dois estados para
dois povos”, que deve levar a acordos com os Palestinianos e a “acordos de
segurança política com o mundo árabe” –, os mais de 500 antigos generais e
oficiais superiores do exército israelita, dos serviços secretos (inclui quatro
antigos diretores da Mossad e um antigo chefe do Shin Bet) e da polícia, a 10
de março, subscreveram uma carta, que Matan Vilnaï, major-general reformado, enviou
ao primeiro-ministro e aos membros do gabinete de guerra e que foi divulgada em
Inglês, no dia 12.
Sem
questionarem a guerra e o modo como ela tem sido levada a cabo, põem a tónica
no “aumento significativo” da ajuda humanitária, no seu transporte e no número
de pontos de passagem dedicados, de modo a garantir a distribuição segura aos dois
milhões de não-combatentes.
Para o jornal francês La Croix, que
noticiou o caso, a recomendação do CIS contradiz a opinião maioritária
israelita. “Segundo uma sondagem realizada pela cadeia de televisão Channel 12, no final de janeiro, 72% dos
Israelitas consideram que o enclave palestiniano não deve receber ajuda
humanitária, enquanto não forem libertados os cerca de 130 reféns israelitas
ainda detidos pelo Hamas”, escreve o jornal. E o jornal releva que, “numa
altura em que o caos humanitário e o fracasso na obtenção de um cessar-fogo
entre o Hamas e Israel, na Faixa de Gaza, estão a causar profunda preocupação internacional”,
o CIS alerta para “os riscos
cumulativos” para a segurança e para os interesses estratégicos de
Israel, causados pela política governamental de ajuda humanitária a mais de dois milhões de habitantes de Gaza
não combatentes.
O
CIS teme “danos irreparáveis”, se o governo israelita não alterar a “abordagem”
à situação em Gaza e alerta para o facto de o que designa por “avareza
humanitária” de Israel já ter levado à suspensão do fornecimento de armas por
governos de países europeus, como a Bélgica, a Espanha e a Itália. Ao mesmo
tempo, sublinha que os parceiros árabes,
principalmente a Arábia Saudita, expressaram a sua desaprovação da estratégia
israelita em abrandar o processo de normalização.
***
A missiva ao governo
carateriza a situação crescente como “tangível, iminente, multidimensional e
prejudicial ao esforço de guerra”. Para lá dos aspetos morais, a crise na Faixa de
Gaza, que está à beira de um desastre humanitário, é uma ameaça aos interesses
nacionais vitais. Já afeta a liberdade de operação das Forças de Defesa de
Israel (FDI) e a capacidade de Israel de determinar o futuro da Faixa, assim
como prejudica as relações de Israel com os EUA, com a Europa, com os parceiros
árabes na paz e com a comunidade internacional, em geral. Por isso, o governo deve inverter, rápida e determinadamente,
estas tendências negativas e renovar a sua abordagem a esta questão, o que
implica parar de discutir com amigos e com outras pessoas sobre cada entrega de
assistência e expandir, significativamente a quantidade de ajuda, o seu
transporte e o número de travessias dedicadas, assegurando, ao mesmo tempo, a
distribuição sustentada aos dois milhões de não combatentes.
Nos contactos
dos membros do CIS com altos funcionários da administração dos EUA (realizados
em estruturas não CIS), suscitou-se amplo acordo sobre dois objetivos de
guerra: eliminar as capacidades do Hamas e libertar os reféns. Todavia,
avoluma-se a frustração e a raiva pela falta de Israel de uma estratégia do
“dia seguinte” e, no imediato, pelo que se denomina de “mesquinhez
humanitária”. Estes sentimentos foram expressos antes da recente visita do
tenente-general aposentado Benny Gantz, membro do gabinete de guerra, a
Washington, que, supostamente, se concentrou nestas questões, mas não menos
firmemente na sua esteira.
A decisão da
administração dos EUA de lançar a ajuda humanitária por via aérea (medida sem
precedentes tomada em território controlado por um Estado amigo) e a decisão do
presidente Biden de estabelecer um local de abastecimento marítimo refletem o
lugar da ajuda humanitária nos valores norte-americanos, nas considerações
estratégicas e nas restrições internas, tal como demonstram frustração, ante as
políticas do governo israelita e a determinação em negar a Israel o “poder de
veto”, nesta matéria e, por implicação, noutras questões relativas à guerra em
Gaza e ao futuro da Faixa.
Tudo vem
expresso no Memorando de Segurança Nacional (NSM) 20, assinado pelo presidente,
a 8 de fevereiro, que exige que o Departamento de Estado e o Pentágono obtenham
garantias escritas dos destinatários da ajuda de segurança americana de que
aderem às regras do direito internacional, incluindo a prestação de ajuda
humanitária. A administração norte-americana procura tais garantias da
parte de Israel e os membros do Congresso avançam com medidas para verificar o
cumprimento e estipular as consequências das violações.
A intensidade
do protesto público nos EUA, tal como o efeito da situação, em Gaza, na erosão do
apoio a Israel (sobretudo entre os jovens), deveria alarmar qualquer pessoa que
aprecie a importância do fator norte-americano no paradigma de segurança
nacional presente e futuro.
Nos contactos
com os parceiros de paz – o Egito, a Jordânia e os signatários dos Acordos de
Abraham –, o CIS descobriu que o apoio inicial à resposta forte às atrocidades
assassinas cometidas pelo Hamas, a 7 de outubro, cedeu o lugar a expressões de
preocupação sobre as repercussões da crise humanitária.
Tal como
alguns destes Estados prestam ajuda à população civil de Gaza, representantes
de mais do que um deles relatam a decisão de suspender as medidas de
normalização. Isto inclui limitar o contacto com Israel à abordagem direta
da situação em Gaza e da estabilidade regional, bem como à necessidade de
evitar provocações da parte de extremistas de ambos os lados, durante o
Ramadão.
Quer seja
inspirada pelas declarações e ações da administração dos EUA, quer seja baseada
em considerações independentes, a oposição à “mesquinhez humanitária” de Israel,
em toda a Europa e fora dela, já levou vários governos a suspender o
fornecimento de armamento a Israel.
Como resultado final, verifica-se
que os danos causados pela
política de mesquinhez humanitária, bem como os das declarações ultrajantes de
ministros e de deputados irresponsáveis, minam os fundamentos da segurança e do
apoio diplomático a Israel provenientes de capitais, que são mais importantes
para a nossa segurança. Por isso, os subscritores da carta apelam ao governo a
que restrinja “os tições extremistas”, priorize “a segurança e os
interesses estratégicos de Israel sobre as considerações da coligação” e
lidere, “urgentemente, amplos esforços de ajuda humanitária, antes que a
liberdade das FDI para operar na Faixa, a liberdade de Israel para moldar o
futuro da Faixa, e as relações com os EUA, com os parceiros árabes de paz, com a
Europa e com toda a comunidade internacional sofram danos irreparáveis”.
Em
suma, o CIS, criado para
promover a solução de dois Estados e resolver o conflito
israelo-palestiniano, considera que a
crise humanitária na Faixa de Gaza, fruto da mesquinhez avara do governo, constitui
ameaça aos interesses nacionais vitais, prejudica a segurança e mina as
relações entre o Estado judeu, os parceiros ocidentais e os árabes. E o apelo à
mudança de abordagem, aumentando a ajuda e a distribuição segura dos bens de primeira
necessidade pelos mais de dois milhões de não combatentes, é uma pedrada no
charco sobre a dureza infame do governo e do seu braço armado. Esta atitude do
CIS é espinho acerado na estratégia governamental de eliminação do Hamas até ao
último homem. Lê o verdadeiro interesse nacional e o significado da onda de contestação
que grassa um pouco por toda a parte em reação à política israelita.
***
Entretanto, no momento em
que Israel aprovava, a 16 de março, um plano para atacar a cidade de Rafah, no
Sul da Faixa de Gaza, onde se aglomera perto de 1,5 milhão de pessoas, o Fundo
das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) alertava que a escalada das
hostilidades estava a ter “um impacto catastrófico” nas crianças e nas
famílias.
Em
comunicado, aquela agência da Organização das Nações Unidas (ONU) afirmava que
“as crianças estão a morrer a um ritmo alarmante”, que “milhares de pessoas
foram mortas” e que “milhares de pessoas ficaram feridas”. Ao mesmo tempo, calculava que 1,7 milhões de pessoas tenham
sido forçadas a deixar os seus locais de habitação e a deslocar-se para o Sul
de Gaza, onde sofrem a crónica falta de água, de alimentos, de combustível e de
medicamentos.
Só em Rafah,
estão concentradas e confinadas mais de 600 mil crianças, “sem terem nenhum
lugar seguro para ir”, já que as suas casas foram destruídas e, em muitos
casos, as suas famílias dilaceradas. E, no
Norte da Faixa de Gaza, uma em cada três crianças com menos de dois anos sofre
de desnutrição aguda – mais do dobro da taxa (de 15,6%) que se verificava em
janeiro. “A subnutrição entre as crianças – denuncia a organização – espalha-se
rapidamente e atinge níveis devastadores e sem precedentes. Pelo menos, 23
crianças no Norte da Faixa de Gaza terão morrido de subnutrição e desidratação,
nas últimas semanas, aumentando o número crescente de crianças mortas na Faixa
neste conflito atual – cerca de 13450, segundo dados do Ministério da Saúde
palestiniano”.
Recordando que, na guerra, “são as crianças quem sofre
primeiro” e quem mais sofre, a UNICEF reitera princípios do direito humanitário
internacional, segundo os quais “nenhuma criança deve ser mantida como refém ou
usada, de qualquer forma, em conflitos armados”. E acrescenta: “Os hospitais e
as escolas devem ser protegidos contra bombardeamentos e não devem ser
utilizados para fins militares.”
“A velocidade com que esta catastrófica crise de
desnutrição infantil, em Gaza, se desenrolou é chocante, especialmente quando a
assistência desesperadamente necessária está disponível a poucos quilómetros de
distância”, lamenta Catherine Russell, diretora executiva da UNICEF, que
advertiu: “Tentámos, repetidamente, fornecer ajuda adicional e apelámos,
repetidamente, a que os desafios de acesso que enfrentámos, durante meses,
fossem resolvidos. Em vez disso, a situação das crianças piora a cada dia que
passa. Os nossos esforços para fornecer ajuda vital estão a ser prejudicados
por restrições desnecessárias, que estão a custar a vida às crianças.”
Nos últimos dias de fevereiro, morreu na Faixa de Gaza
a décima criança vítima de fome, de acordo com a Organização Mundial de Saúde
(OMS). Porém, os números podem ser mais altos, segundo Christian Lindmeier. E a
morte dos mais novos na Faixa de Gaza levou Adele Khodr, diretora regional da
UNICEF para o Médio Oriente e Norte de África, a emitir uma declaração: “Estas
mortes trágicas e horríveis são causadas pelo homem, previsíveis e totalmente
evitáveis. A falta generalizada de alimentos nutritivos, de água potável e de
serviços médicos, uma consequência direta dos impedimentos ao acesso e dos
múltiplos perigos que as operações humanitárias da ONU enfrentam, está a afetar
crianças e mães, dificultando a sua capacidade de amamentar os seus bebés,
especialmente no Norte da Faixa de Gaza. As pessoas estão famintas, exaustas e
traumatizadas. Muitos estão agarrados à vida.”
Adele Khodr apela à criação de vias seguras para a
distribuição de bens: “As agências de ajuda humanitária como a UNICEF devem ser
capacitadas para inverter a crise humanitária, [para] prevenir a fome e [para] salvar
vidas de crianças. Para isso, precisamos de múltiplos pontos de entrada fiáveis
que nos permitam trazer ajuda de todas as passagens possíveis, incluindo o Norte
de Gaza, e garantias de segurança e passagem desimpedida para distribuir ajuda,
em grande escala, em toda a Gaza, sem recusas, atrasos e impedimentos de acesso.”
Adele Khodr sustenta que as temíveis mortes de
crianças estão a acontecer e, “provavelmente, aumentarão rapidamente, a menos
que a guerra termine e os obstáculos à ajuda humanitária sejam imediatamente
resolvidos”. Por isso, pede medidas para que seja possível apoiar os que
sofrem. A sensação de impotência e desespero entre pais e médicos, ao
perceberem que a ajuda vital, a apenas alguns quilómetros de distância, está fora
do alcance, é insuportável, mas pior ainda o são os gritos angustiados dos
bebés que perecem lentamente perante o olhar do Mundo. As vidas de milhares de
bebés e de crianças dependem de medidas urgentes que sejam tomadas quanto antes.
***
Em guerra, a morte de não combatentes (e situações que
levem à morte, como a desnutrição, as doenças, as deslocações perigosas),
mormente no atinente a crianças e a idosos, não pode, em meu entender, continuar
a ser considerada efeito colateral do conflito, mas, pura e simplesmente, um
dos efeitos nefastos da guerra. Se não se permitem as atrocidades da guerra, não
se permitam os seus eufemismos, nem as inutilidades (pessoas) que ela seleciona
para atirar borda fora!
2024.03.20 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário