A liturgia quaresmal, recheada de intenso conteúdo
teológico e concitadora de suficiente ascética, restaura e reforça o vigor da
vivência cristã para a frutuosa celebração da Páscoa do Senhor e para que a
nossa peregrinação na Terra seja a caminhada irreversível para Deus.
Assim, a Quaresma tem função instrumental em ordem à
Páscoa, tal como a nossa peregrinação terrestre a fornece para o Além. Não
obstante, Peregrinação e Quaresma são fonte de instrução discipular, tempo da
supremacia do Espírito, que une anima, ensina e fortalece, ocasião para a libertação
dos temores e dos perigos e cenário para o cenário para o exercício de
apóstolos.
O 4.º domingo da Quaresma, Domingo da Alegria (Domingo
Laetare), confronta-nos com o desígnio salvador de Deus. A salvação é iniciativa
de Deus que, independentemente dos nossos méritos, nos oferece a Vida, cabendo
a cada um decidir como acolhe essa oferta e que resposta lhe dá. A nossa
resposta deve ser levada na alegria, marca essencial do Evangelho.
***
A primeira
leitura (2Cr 36,14-16.19-23) adverte que, ainda que o homem prescinda
de Deus e escolha caminhos de autossuficiência, Deus nunca desiste dos seus
filhos: dá-lhes sempre a possibilidade de reconstruir a vida.
O Livro das Crónicas, de autor anónimo, propõe-se
contar a História de Israel, desde a criação do Mundo até ao Exílio. Integra um
bloco, em conjunto com os livros de Esdras e de Neemias, que se designa como
“Obra do Cronista”. Privilegia a História do reino do Sul (Judá), destacando o
rei David e os seus descendentes e dando algum relevo à tribo de Levi, ligada
às questões litúrgicas. Porém, ignora a História do reino do Norte (Israel).
Aponta-se como certo um processo de redação em várias
etapas: por volta de 515 a.C. teria surgido uma primeira edição, para legitimar
o culto no segundo Templo (o reconstruído pelos Judeus regressados do Exílio na
Babilónia); entre 400 e 375 a.C., uma segunda edição para vincar a autoridade
de Esdras como legislador e intérprete da Tora; e, entre 350 e 300 a.C., uma
terceira edição, para animar, fortalecer e consolidar a comunidade judaica,
face à hostilidade dos vizinhos, particularmente dos Samaritanos. O objetivo
fundamental é propor a fidelidade a Deus e à Aliança, que se deve manifestar no
cumprimento da Lei e no culto do Templo de Jerusalém.
O trecho em apreço surge na parte final do segundo
volume do Livro das Crónicas. O cronista refere dois factos históricos
separados por quase 50 anos: a queda de Jerusalém nas mãos de Nabucodonosor (586
a.C.) e a autorização de Ciro, rei persa, de regresso dos exilados a Jerusalém,
após a queda da Babilónia (538 a.C.). Entretanto, o Povo de Deus conheceu a
dramática experiência do Exílio na Babilónia. Contudo, mais do que a narração pormenorizada
dos factos, importa a interpretação teológica. Na verdade, o hagiógrafo não é
historiador ou analista político, mas um crente preocupado em ler a História à
luz da fé e em tirar daí as conclusões que se impõem.
A destruição de Jerusalém, o incêndio do Templo e a
deportação para a Babilónia são vistas como o resultado lógico dos pecados da
nação. “Os chefes de Judá, os sacerdotes e o Povo multiplicaram as suas
infidelidades”; ignoraram os avisos de Deus através dos profetas e desdenharam
os seus apelos. Por isso, a ira do Senhor abateu-se sobre o Povo.
Cita-se a profecia de Jeremias que fala do castigo de
Deus que se abateria sobre a terra desolada de Judá durante 70 anos. Este
número, que o Exílio, afinal, não durou, é simbólico, correspondente ao espaço
de uma geração, um grande jubileu forçado por Deus, um tempo de compensação por
todos os anos sabáticos que o Povo não respeitou, não cumprindo as obrigações
para com Javé.
A Lei de Deus previa que, de sete em sete anos, a
terra fosse deixada um ano a descansar e que, depois de sete vezes sete anos, no
quinquagésimo, se celebrasse um “ano jubilar”, um tempo acrescido de descanso
para a terra e para os seus habitantes. Porém, a ganância levou o Povo a não
respeitar Lei, não deixando a terra descansar. E Deus compensa-a, enviando o
Povo para o Exílio, o que induz a terra de Deus, martirizada pelo pecado, a
descansar durante setenta anos, até ser renovada e voltar a ser a “casa” do
Povo de Deus. Subjacente a esta leitura está um dos dogmas fundamentais da fé israelita:
a retribuição. Segundo os teólogos, Deus retribui ao homem conforme as ações
que pratica. Se o Povo vive na fidelidade à Aliança e aos mandamentos, Deus
oferece-lhe a vida; se o Povo é infiel aos compromissos, recebe em paga morte e
desgraça.
Esta imagem de Deus é surpreendente e chocante. Um
Deus contabilista, que assenta débitos e créditos da pessoa para lhe pagar em
conformidade, não é o Deus da bondade e da misericórdia cujo rosto Jesus nos
revelou. Porém, subjaz a esta ideia uma intuição real: as opções erradas redundarão
em sofrimento e infelicidade para nós e para os que caminham connosco.
Seja como for, o castigo não é a última palavra de
Deus. Há sempre a esperança e a oportunidade do recomeço. Por trás da
referência à libertação operada por Ciro e ao édito que autorizou os habitantes
de Judá a regressar à sua terra, está a ideia do Deus que não abandona o seu
Povo e que lhe dá, em cada momento, a possibilidade de recomeçar.
***
No Evangelho
(Jo 3,4-21), João apresenta,
em palavras de Jesus, o plano amoroso de salvação de Deus. Por amor, Deus
enviou ao nosso encontro o seu Filho Unigénito, que nos oferece a salvação.
Quem acreditar em Jesus e aprender a lição do amor até ao extremo, nascerá para
a Vida nova.
Jesus tinha ido a Jerusalém para a celebração da
Páscoa. Lá encontrou-se e conversou com o fariseu Nicodemos, “uma autoridade
entre os judeus”.
Os fariseus distinguiam-se pela adesão e fidelidade à
Lei de Moisés. Os membros deste partido tinham grande influência entre o povo
pela fama de observância e de prática religiosa. E João refere que Nicodemos era
uma autoridade, o que pode significar que era membro do Sinédrio, um
representante do judaísmo oficial.
O seu encontro com Jesus dá-se de noite. Isto pode
significar que não queria ser visto com Jesus, para não prejudicar a sua
posição; pode ter a ver com o hábito dos fariseus de estudar a Lei à noite; e
pode querer dizer que Nicodemos estava às escuras, pois ainda não fora
iluminado pela luz de Jesus. É possível que Nicodemos se situasse no judaísmo
erudito que se interessava por Jesus e que queria compreendê-lo. Com efeito, aparecerá,
mais tarde, a defender Jesus, perante os chefes dos fariseus, e estará presente
aquando da descida de Cristo da cruz e da sua colocação no túmulo.
Na conversa noturna entre Jesus e Nicodemos, há três pontos
marcantes. Primeiro, Nicodemos reconhece a autoridade de Jesus, em virtude das
suas poderosas obras, mas Jesus releva que isso não basta, pois o essencial é reconhecê-Lo
como o enviado do Pai, O que veio do alto revelar Deus. Segundo, Jesus sustenta
que, para entender a sua proposta, é preciso “nascer de Deus” e que esse novo
nascimento é o “da água e do Espírito”. Terceiro, Jesus considera que o projeto
de salvação de Deus é iniciativa do Pai, tornada presente na vida dos homens
através do Filho e que se concretizará pela cruz/exaltação de Jesus. Com
efeito, não há Páscoa, nem ressurreição sem a cruz, mas também, se a cruz fosse
o fim de linha, a missão de Jesus seria o fracasso. A cruz só é exaltada porque
dela resultou a dinâmica da reunião dos filhos de Deus que andavam dispersos e
a ressurreição de Jesus, que nos torna ressuscitados por Ele e com Ele, vivos
para Deus Pai.
O trecho evangélico em referência, carregado de
densidade teológica, integra o teor do terceiro dos pontos acima referidos. A
missão de Jesus consiste em trazer aos homens o amor de Deus e em ensiná-los a
viver no amor. Será na cruz que Ele o mostrará, de forma eminente. Por isso, diz
que o Messias tem de “ser levantado ao alto”, como “Moisés levantou a serpente”
no deserto.
Esta referência evoca o episódio em que, no deserto, os
hebreus, mordidos pelas serpentes, olhavam a serpente de bronze levantada num
estandarte por Moisés e se curavam. Do mesmo modo, Jesus tem de ser levantado
na cruz, para ser a fonte de vida e de salvação para aqueles que O
contemplarem, pois é na cruz que Jesus manifesta o seu amor até ao extremo e
que indica aos homens o caminho que devem percorrer para alcançar a salvação.
Nicodemos pensava que a Lei dava a Vida, mas a Vida
plena brota do amor de Deus, expresso na cruz em que Jesus Se oferece até à
última gota de sangue. Quem acredita no Homem alçado na cruz e adere a Ele e à
sua proposta de Vida aprende com Ele a fazer da sua vida dom total a Deus e aos
irmãos. Terá a vida eterna, pode integrar a comunidade do Reino.
Depois destas considerações, o evangelista entra em mais
pormenores do plano de salvação.
Jesus, o “Filho único” de Deus enviado pelo Pai ao nosso
encontro, para nos trazer a vida, é o grande dom do amor de Deus à Humanidade.
A expressão “Filho único” evoca o sacrifício de Isaac: Deus comporta-Se como
Abraão, capaz de se desprender do próprio filho por amor (Abraão, por amor a Deus;
Deus, por amor aos homens). O “Filho único” de Deus veio ao Mundo para cumprir
o plano do Pai em prol dos homens. Para isso, encarnou na nossa História
humana, com o risco de assumir a nossa fragilidade; e, como consequência de uma
vida gasta a lutar contra as forças das trevas, foi preso, torturado e morto
numa cruz. A cruz é o último ato de uma vida vivida no amor, na doação, na
entrega. A cruz, a expressão suprema do amor de Deus pelos homens, dá-nos a
dimensão do incomensurável amor de Deus pela Humanidade.
Ao enviar ao Mundo o “Filho único”, Deus não tinha uma
intenção negativa. O Messias não veio com uma missão judicial, nem veio excluir
ninguém da salvação. Ao invés, veio oferecer a todos a Vida definitiva,
ensinando-os a amar sem medida e dando-nos o Espírito que nos transforma em
Homens Novos. Deus não enviou o seu Filho ao encontro de homens perfeitos e santos,
mas de homens pecadores, egoístas, autossuficientes, para lhes apresentar um
estilo de vida. E foi o amor de Jesus – e o Espírito que Jesus deixou – que
transformou os homens autossuficientes e os inseriu num dinamismo de vida nova
e plena.
Diante da oferta de salvação, cada pessoa tem de fazer
a sua escolha. Quando aceita Jesus e adere a Ele, escolhe a vida; e, se prefere
continuar escrava de esquemas de autossuficiência, rejeita Deus e autoexclui-se
da salvação. A salvação ou a condenação não são o prémio ou o castigo que Deus
dá à pessoa pelo seu bom ou mau comportamento, mas são o resultado da escolha
livre da pessoa, face à oferta incondicional de salvação que Deus lhe faz.
Todavia, a oferta de salvação, da parte de Deus, nunca é retirada; continua
aberta e à espera da resposta da pessoa. A responsabilidade pela Vida definitiva
ou pela morte eterna não recai sobre Deus, mas sobre cada um de nós. Nesta
ótica, também não há um julgamento no final dos tempos, no qual Deus pesa na balança
os pecados dos homens, a ver se salva ou condena: o juízo realiza-se aqui e
agora e depende da atitude que a pessoa assume ante a proposta de Jesus.
Por fim, João repete o tema da opção pela Vida (Jesus,
“a Luz”) ou pela morte (“as trevas”). Por vezes, os homens rejeitam a proposta
de Deus e preferem a escravidão e as trevas. Essa opção já constitui uma
sentença e são os homens que a pronunciam, pois rejeitaram a Vida. Porém,
outros veem a beleza do amor, escolhem a luz e vivem no amor. Animados pelo
Espírito de Jesus, são sinais de Deus no Mundo, com obras a refletir o amor e a
traduzi-lo em gestos de serviço simples e humilde, de cuidado, de entrega, de
doação. São os que nasceram de novo, do alto (da contemplação do Homem
levantado na cruz), da água e do Espírito.
***
A segunda
leitura (Ef 2, 4-10) mostra
que, apesar da nossa fragilidade, Deus nos ofereceu, em Cristo, a Vida e a salvação.
Não o fez pelos nossos méritos, mas por oferta totalmente gratuita, em resultado
do amor que nos tem.
Éfeso, na costa ocidental da Ásia Menor, grande e
próspera, era a capital da Província Romana da Ásia. O seu porto ligava o interior
da Ásia Menor com as demais cidades do Mediterrâneo.
Quando Paulo lá chegou, na terceira viagem
missionária, encontrou alguns cristãos escassamente preparados. Procurou
instruí-los e dar-lhes adequada formação. Permaneceu na cidade durante mais de
dois anos, ensinando na sinagoga e, depois, na “escola de Tirano”. Assim,
reuniu à sua volta um número considerável de pessoas convertidas ao “Caminho”. E
foi aos anciãos da Igreja de Éfeso que Paulo confiou, em Mileto, o seu
testamento espiritual, apostólico e pastoral.
Todavia, a carta aos Efésios é bastante impessoal e
não reflete a relação de afeto do apóstolo com eles. Por isso, alguns
comentadores duvidam de que a carta venha de Paulo, mas outros pensam que o
texto que chegou até nós é um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a
várias igrejas da Ásia Menor, inclusive à comunidade cristã de Éfeso.
Seja como for, a carta apresenta-se como um escrito de
Paulo quando o apóstolo está na prisão. O portador terá sido Tíquico. Estamos
por volta dos anos 58/60 perante um texto de grande riqueza temática, de reflexão
amadurecida e completa, com uma síntese da teologia paulina.
O trecho em causa integra a parte dogmática da carta,
ou seja, uma reflexão sobre o papel de Cristo na salvação do homem. Começa por
verificar a situação de pecado em que o homem vive e da qual, por si só, não
pode sair.
Deus é rico em misericórdia e ama os seus filhos com imenso
amor. Por isso, à nossa situação de pecadores, Deus responde com a graça. O
amor libertador de Deus não é condicional, derramando-se sobre os homens, se e
quando se convertem, mas incondicional, atingindo-os, mesmo quando percorrem
caminhos de pecado e de morte.
Aos homens, orgulhosos e autossuficientes, Deus
ofereceu, por meio de Cristo, uma nova vida. Tornados membros de Cristo, ressuscitaram
com Cristo e sentaram-se com Ele nos céus.
O autor da Carta aos Efésios não se refere à
ressurreição do homem e à sua glorificação como coisa futura, mas como facto já
conseguido (usa o aoristo grego, que tem significado de passado). No entanto,
essa ação passada afeta o presente e tem implicações nele: unido a Cristo, o
cristão já ressuscitou e já foi glorificado. Continua a viver na terra, sujeito
à finitude e às limitações da vida presente, mas é já, aqui e agora, cidadão do
céu, pois Deus já introduziu na débil e frágil natureza humana os dinamismos da
vida eterna. A vida do cristão está, por isso, marcada pela dupla condição da
fragilidade e da eternidade. Apesar das suas limitações, o cristão tem de
testemunhar e anunciar a vida nova que Deus já lhe ofereceu.
Elemento incontornável ao qual a carta dá grande
importância é a gratuidade da ação salvadora de Deus. A salvação não é
conquista nossa, nem resulta das nossas obras ou méritos, mas é puro dom de
Deus, fruto do seu amor incondicional. Portanto, não há lugar a sentimento de
orgulho ou a atitude de autoglorificação. A salvação é oferta gratuita de Deus aos
seus filhos, mesmo que a não mereçam. Dela nasce a nova Humanidade que pratica
boas obras. As boas obras não são condição para se receber a salvação, mas o
resultado da ação da graça de Deus, derramada gratuitamente sobre nós.
2024.03.11 – Louro de Carvalho
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