As Forças Armadas (FA), como braço
armado do povo, garantem a defesa militar do Estado, necessária para prevenir
eventual invasão externa e para apoiar a população em caso de catástrofe
natural ou provocada por mão humana. Servem também para dar cumprimento aos
desígnios do poder político no quadro dos compromissos internacionais, na linha
da promoção e manutenção da paz, em atos humanitários de grande envergadura e
em operações de salvamento.
Até 2004, Portugal contemplava o
serviço militar obrigatório (SMO) para os cidadãos do sexo masculino, com base
no seu recenseamento militar obrigatório, a par do serviço voluntário para
indivíduos de ambos os sexos (para o sexo feminino, a partir de 1975).
Não foi devidamente explicado o real
motivo para a abolição do SMO, o que levou alguns a pensar que o fim da guerra
colonial e do império não justificava
a manutenção da obrigatoriedade deste serviço. Porém, outros opinam que a ideia
da sua abolição surgiu nas juventudes partidárias, não por não justificação,
mas por hedonismo.
***
Com a invasão da Ucrânia pela Rússia,
a questão voltou ao debate. E, apesar de a então ministra da Defesa Nacional
entender que o problema não se coloca no país e de o ex-secretário de Estado da
Defesa Nacional dizer que isso é ideia do passado, um estudo feito, em julho de
2022, por investigadores da Universidade Lusófona, citado pela CNN Portugal, mostra que mais de metade
dos inquiridos é a favor do regresso
do SMO, em Portugal, e de um
exército único europeu.
De acordo
com os dados, 52,35% dos
inquiridos “concorda” ou “concorda totalmente” com o regresso do SMO, enquanto, 32,75% referiu “discordar” ou
“discordar totalmente”. E
55.83% dos inquiridos “concorda” ou “concorda
totalmente” com a criação do exército único europeu. Os Portugueses pensam que
isto ajudará a União Europeia (UE) a reduzir a dependência face aos Estados
Unidos da América (EUA).
Aliás, 73.94% dos Portugueses pensa que esse exército contribuiria
para uma maior afirmação da UE no Mundo.
A análise
das respostas revela que as
gerações mais velhas têm maior predisposição para concordar com o
regresso do SMO e com a criação do exército único europeu.
José
Carochinho, investigador do Centro de Investigação em Ciência Política,
Relações Internacionais e Segurança da Universidade Lusófona, realça que os indivíduos de esquerda e de direita são
contra o SMO, sendo os do centro
que são “manifestamente a favor”.
Já a ideia
de criação do exército único europeu acentuou-se com o início da guerra na
Ucrânia. “Naturalmente, que a
guerra teve a sua influência”, refere o coautor da análise.
O estudo
contou com a participação de Portugueses de várias faixas etárias (dos 18 aos
72 anos). A maioria é residente em meio urbano (88,1%) e tem licenciatura ou
grau académico superior.
Em maio, a
ministra da Defesa Nacional defendeu que “não
tem sentido reinstituir um serviço militar obrigatório”, defendendo
que esse sistema “não responde às necessidades estratégicas” das FA, que
precisam de “militares qualificados”, com “tecnicidade”.
***
Entretanto, recentemente, o chefe
Estado-Maior da Armada (CEMA), almirante Henrique Gouveia e Melo, veio a
terreiro, no Expresso, repropor o
debate, considerando que o cansaço ocidental com a guerra na Ucrânia, a
reconfirmação da liderança da Rússia, as próximas eleições nos EUA e a
emergência de um novo ator global a ensaiar a alteração à ordem internacional nos
fazem sentir “a brisa quente e abafada, prenunciadora das tempestades”.
O CEMA lança a hipótese de estarmos ante
o fim da Ordem Ocidental, não no confronto ideológico entre o capitalismo e o
comunismo, mas “entre dois blocos que se vão agregando entre democracias e
autocracias”. Seja como for, não é opção ignorar que “viveremos tempos
perigosos. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e a UE, pilares
da segurança da e prosperidade ocidentais, podem ser submetidos às maiores
provações e testes de stresse. Além disso, Portugal, na sua posição
geoestratégica, apesar de afastado da frente de batalha, não pode ignorar as tempestades
que se aproximam. É “falsa a segurança que a distância à Ucrânia nos dá”, acentua
o almirante, explanando: “Só em 2023 a Marinha Portuguesa efetuou o seguimento
e controlo de mais de 40 passagens de navios de guerra russos ou afins, nas
águas sob soberania ou jurisdição nacional. A maior parte dos mísseis de
cruzeiro russos podem atingir diretamente o nosso território, sem sequer termos
de equacionar os mísseis balísticos. Poderão ser disparados da Federação Russa,
ou de qualquer seu aliado, ou proxy em
África, ou mesmo de navios e submarinos nas nossas águas.”
A seguir, chama a atenção para o
facto de, no mar, a fronteira com a Rússia estar “ao alcance da nossa vista”.
Basta, para nos atacarem, haver um alvo remunerador, militar, psicológico ou
comunicacional, e estarem criadas as condições políticas de confronto. Ora, pertencendo
Portugal à NATO e à UE, se o conflito se alastrar à Europa seremos envolvidos.
Entretanto, podemos ser alvo de outras ações em fases cinzentas do conflito,
como a destruição de cabos submarinos ou ações híbridas de difícil atribuição,
por estarmos em “zona de elevado valor geoestratégico para a coligação
ocidental” e, igualmente, para a Rússia. Portanto, segundo o CEMA, temos de “reagir
enquanto sociedade, sair do estado do comodismo e indiferença”, pois, “a defesa
dos nossos interesses, das nossas vidas”, exige “uma atitude prospetiva,
proativa e vigilante”.
O confronto na Ucrânia, onde o futuro
da Europa pode ser decidido, leva a refletir que o produto interno bruto (PIB)
da Rússia é de cerca de 1,5 triliões de dólares; e deste, cerca de 9% são
despesa militar. Este esforço excessivo para uma sociedade carenciada de tudo,
só possível em autocracia, corresponde à despesa previsível, em 2024, de cerca
de 132 mil milhões de dólares. Se a UE quisesse igualar o esforço económico da
Rússia com a Defesa, bastar-lhe-ia despender cerca de 0,7% do seu PIB conjunto
para esta área. Porém, a média atual é superior, situando-se perto dos 1,8% e,
em Portugal, nos 1,4%.
Por isso, nada indicia a necessidade
do aumento na despesa militar da UE, em percentagem do PIB. Todavia, esta
conclusão tem fragilidades a considerar, usando a fórmula de Ray S. Cline,
analista dos serviços de inteligência dos EUA – que operou na II Guerra Mundial
e, depois, na Ásia – e académico reconhecido de Harvard, que quantifica o poder
(P) relativo das nações como a multiplicação de dois fatores, o conexo com a
capacidade (C) de um país e o conexo com fatores associados à vontade (V), ou
seja: P=CxV. Assim, a fórmula expandida é: poder = (massa crítica + economia +
capacidade militar) x (estratégia + vontade). A massa crítica seria a soma da
dimensão do território com a da população.
Esta formulação mostra que só o pilar
europeu da NATO terá mais capacidade do que a Rússia, mas que o poder efetivo
pode ser muito diminuído e reduzido, se for multiplicada por uma vontade
pequena, correspondente à segunda parte da equação simplificada.
Mesmo numa análise puramente
quantitativa é de ter em conta que a despesa militar se subdivide em três megarubricas:
pessoal, material e infraestruturas. Nos Estados ocidentais, com exércitos
profissionais, o peso da componente humana ronda os 50% a 70% do investimento
na Defesa. Embora o modelo seja vantajoso para a Armada e para a Força Aérea, é
desvantajoso em custos e capacidade humana para forças terrestres, num cenário
idêntico ao ucraniano, de carnificina em baixas diárias. Outra desvantagem é o
serviço militar profissionalizado reduzir o conhecimento na população dos
assuntos militares a um núcleo pequeno de cidadãos, retirando capacidade de
mobilização em larga escala, em curto espaço de tempo. Um Estado autocrático
com salários baixos e com um modelo de conscrição alargada gera, para o mesmo
orçamento equivalente, uma capacidade humana mais significativa e disponível,
em caso de necessidade.
Os exércitos requerem elevada
especialização, mas não são homogéneos nessa necessidade. Por exemplo, a
Infantaria continua a ser uma parte em que massa humana e números têm
importância crucial. Se Vladimir Putin mobilizar um exército de 500 mil
militares adicionais rapidamente e a Europa não o fizer, pode criar-se um desequilíbrio
perigoso. Estando a UE e a NATO em estratégia de contenção na Ucrânia,
suportando a Defesa desse país contra a invasão contrária à lei internacional
da parte da Rússia, deve-se ter em conta que a melhor opção será dissuadir, com
elevada credibilidade, Moscovo de crer que pode agredir, com sucesso, outros
países europeus.
Tendo indústria tecnologicamente
capaz, com acesso a fontes energéticas, a matérias-primas e a tecnologia, com
baixos salários e reduzidos direitos sociais, produzirá muito mais para os
orçamentos equivalentes no Ocidente. Por isso, estima-se que, num conflito
prolongado, a UE tenha de despender (considerando o apoio necessário ao
conflito tampão da Ucrânia) entre 2% e 3% do respetivo PIB, para manter
equilibrada a balança do poder.
Assim, é de reequacionar o SMO ou
outra variante adequada para equilibrar o rácio despesa-resultados e para gerar
maior disponibilidade da população para a Defesa, pela capacidade de mobilizar,
rapidamente, os recursos humanos necessários e pelo efeito que este tipo de
serviço criará, no Ethos nacional
e na consciencialização do coletivo, do seu interesse superior.
Devem ser as posições extremadas e
preocupantes de Donald Trump lidas num contexto mais alargado às administrações
americanas. Os EUA precisam de que os aliados partilhem mais o fardo da
segurança coletiva do Ocidente, pois a liderança global destes e, indiretamente,
do Mundo ocidental, está perante um desafio decisivo da parte da China e,
futuramente, da Índia. A China já alcançou um PIB da dimensão europeia e dos
EUA.
O facto de Trump expor, enfaticamente
e truculentamente, as fragilidades militares da UE, criando pressão para rearmamento,
corresponderá a inteligente estratégia de reforço do complexo
militar-industrial dos EUA, o único disponível para garantir resposta em breve
tempo. Não financiar a Ucrânia pode ser uma faceta dessa estratégia, que
obrigará a UE a adquirir material militar americano em larga escala, tornando esta
economia ainda mais diferenciada e pujante.
É urgente que a UE reative uma
indústria militar, sob pena de vulnerabilizar a segurança europeia e ocidental.
A Rússia tem a sua máquina industrial a “todo o vapor”, com três turnos
diários, a contribuir para o crescimento económico e para o desenvolvimento
tecnológico desta. É lei da sobrevivência, onde se inserem a guerra na Ucrânia
e o regime de Putin.
Se a Europa não reforçar depressa um
complexo industrial-militar sólido que reponha stocks e crie forte efeito dissuasor, podem ocorrer três situações:
insuficiência militar; incapacidade de competir tecnologicamente à escala
global; e significativa vulnerabilidade geoestratégica a curto e médio prazo. Desde
1998, a Rússia, então com uma despesa militar de cerca de 20 mil milhões de
dólares, vem desenvolvendo a sua capacidade militar, tendo, agora, um investimento
seis vezes superior a esse período, o que significa, em conjugação com os
eventos de 2014, claro sinal ignorado pela UE adormecida e confiante na
proteção dos EUA.
A Rússia não terá de atacar todo o
Ocidente de uma vez, só precisa de uma estratégia progressiva, começando por
anexar as franjas, paralisando a resposta pela conjugação do medo nuclear, do
comodismo dos ‘civilizados’, do egoísmo e das divisões interaliadas, da
perturbação periférica em África e no Médio Oriente e pela junção de uma grande
coligação antissistema.
Após a queda do Muro de Berlim, o
Ocidente negligenciou a Rússia. Não se faz isso a potência nuclear da dimensão
da Rússia, a população com fortes tradições nacionalistas e numerosa, a um
território euro-asiático de dimensão quase continental e repleto de recursos. Putin
é só a resposta ao desleixo coletivo e ao complexo de superioridade que ditaram
políticas erradas. A paz na Europa, segundo Gouveia e Melo, só se realizará com
a futura integração da Rússia na economia e na estratégia ocidental.
A UE e nós, à dimensão dos nossos
interesses, temos de perscrutar o horizonte com realismo, pondo em ação um
plano efetivo de defesa coletiva, percebendo que o conflito-tampão da Ucrânia é
decisivo para a segurança europeia, que importa desenvolver um forte complexo
militar-industrial europeu, que é preciso reequacionar o sistema de
recrutamento e que o reforço do pilar europeu da NATO é urgente. Com efeito o
chapéu protetor dos EUA, que funcionou nos últimos 78 anos, não será posto em
causa por Trump, mas pelos desafios que os EUA enfrentarão. Ora, não havendo espaço
para cooperar, dissuadir será melhor e mais económico do que combater.
***
À reflexão do CEMA veio justapor-se a do general Eduardo Ferrão chefe do
Estado-Maior do Exército (CEME), a defender que deve ser avaliada a reintrodução
do SMO.
Efetivamente,
em declarações ao Expresso, um dia
depois de o CEMA ter defendido, em artigo de opinião no mesmo jornal, que
“reequacionar o serviço militar obrigatório ou outra variante mais adequada
poderá ser uma medida necessária”, o CEME sustenta que “uma reintrodução do SMO justifica-se ser estudada e avaliada sob várias perspetivas”,
e considera que “a passagem pelas fileiras equivale à frequência de uma escola
de cidadania”. O SMO contribui “para o desenvolvimento de uma cultura
de Defesa Nacional e de sensibilização dos jovens”, observa.
O general
recorda que, até 2004, ano da eliminação do SMO, “os recursos humanos nas
Forças Armadas estavam ajustados à realidade”, mas o país, agora, confronta-se com
“outra realidade, e com a necessidade de recrutar e reter efetivos que garantam
os níveis de prontidão definidos”.
Porém, o
general assume que o SMO “não iria
solucionar a falta de efetivos num exército moderno e tecnológico”,
onde se exige que os militares, de todas as categorias “disponham de
competências mais complexas”, num quadro que “não se coaduna com o recrutamento
obrigatório”.
Por fim, é
de considerar que a guerra entre a Rússia e a
Ucrânia, já no seu terceiro ano, e a ameaça
de que Putin a estenda a países da NATO
(o que ele desmente) abriram, nos últimos meses, o debate em vários países da
UE sobre a necessidade de recuperar o SMO. Assim, a Dinamarca, estabeleceu o
SMO também para as raparigas e o presidente da Letónia, Edgars Rinkēvičs, apelou à Europa para
que faça um debate sério sobre
a reintrodução do SMO. “Ninguém quer lutar no exército. Mas ninguém quer ser invadido como
aconteceu na Ucrânia”, enfatizou o líder letão.
A NATO quer
que os países-membros invistam 2% do PIB na Defesa. Ora, do meu ponto de vista,
se se quer manter umas FA eficazes, não basta atirar dinheiro para cima delas:
é preciso qualificá-las, dar-lhes equipamento e efetivos com formação adequada.
Não pode haver mais comandantes do que comandados. Por isso, é preciso apostar
no SMO e/ou num amplo quadro permanente de praças, mas este no enquadramento de
uma carreira militar longa e bem paga. Caso contrário, teremos umas FA exíguas,
pouco mais do que simbólicas. E Portugal não é o Vaticano!
2024.03.29 – Louro de Carvalho
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