Assinalou-se,
a 16 de março, os 50 anos da revolta das Caldas da Rainha contra a ditadura que
iria cair a 25 de abril de 1974. Dizem alguns que aquela movimentação militar,
protagonizada por oficiais spinolistas, à revelia da comissão coordenadora do Movimento
das Forças Armadas (MFA), não devia ter acontecido, já que poderia ter posto em
risco o MFA, enquanto outros sustentam que fora um ensaio da revolução
abrilina, pois levou ao afinamento da estratégia, fez crer ao regime que estava
tudo sereno e levou os militares à ação para libertar os camaradas presos.
Após a
rendição dos revoltosos (cerca de 200 militares), alguns foram presos e outros dispersos
por diversas unidades. O regime mandou-os interrogar, mas eles recusaram
denunciar outros elementos do movimento, incluindo a sua comissão coordenadora.
Os militares
revoltosos integraram a coluna que saiu do Regimento de Infantaria 5 (RI 5) das
Caldas da Rainha, na madrugada de 16 de março, rumo a Lisboa, para uma
“manifestação de desagrado” pelas demissões do chefe e do vice-chefe do Estado-Maior
General das Forças Armadas, respetivamente, Francisco da Costa Gomes e António Sebastião
Ribeiro de Spínola.
Os militares
do MFA que não ficaram presos desencadearam, em abril, um golpe militar, com
sucesso, que derrubou o regime ditatorial de 48 anos, liderado, então, por
Marcello Caetano.
A 19 de
março, o ministro do Exército, Andrade e Silva, nomeou uma comissão de
inquérito para realizar interrogatórios aos militares detidos, uns no forte da
Trafaria, em Almada (Setúbal), e outros no campo militar de Santa Margarida, em
Constância (Santarém).
Pelas questões
colocadas, percebe-se a inquietação do regime, quanto ao movimento de capitães:
os militares são interrogados sobre quem deu as ordens, se pertencem ao
movimento, quem são os membros da comissão coordenadora e a que chefe está ligado
o movimento, além do grau de envolvimento de cada um nos acontecimentos, se
participaram livremente ou coagidos. O regime pretendia ainda saber se havia
outras unidades ou civis envolvidos.
Quanto às respostas,
transcritas em dossiês do Exército que estão no Arquivo Histórico Militar, em
Lisboa, parecia haver acordo entre os militares que assumiram maior
protagonismo, ao negarem conhecer os membros da comissão coordenadora do MFA.
O capitão
Marques Ramos, um dos mais ativos no 16 de março, disse conhecer a existência
do MFA, mas não revelou nenhum dos nomes ligado à comissão coordenadora e respondeu
não saber a que chefe estava ligado o movimento. O comandante da Companhia de
Caçadores do RI 5, capitão Piedade Faria, respondeu não saber quem eram os
membros da comissão coordenadora.
No dia 15, Marques
Ramos esteve com os majores Casanova Ferreira e Manuel Monge, em Lisboa, onde
foi informado de que as unidades de Lamego se tinham sublevado e iriam a
caminho da capital (esta sublevação não se concretizaria). Os majores
perguntaram-lhe se estava disponível para ir às Caldas da Rainha “comunicar que
interessava vir a Lisboa fazer uma manifestação de desagrado e desagravo, por
terem sido demitidos os generais Costa Gomes e Spínola, sem motivos justos, ou
seja, por não comparecerem na manifestação de apoio à política do governo
conhecida como a “brigada do reumático”.
Chegado ao
RI 5, informou que “outros oficiais obtiveram a confirmação de que a Escola
Prática de Infantaria [EPI] e a Escola Prática de Cavalaria [EPC] já estavam na
rua, pormenor que foi confirmado, passando o telefone de ouvido em ouvido de
vários oficiais”. Porém, disse não se lembrar com quem falara. Então, o pessoal
do RI 5 decide sair. E, quando Marques Ramos os reuniu na sala de oficiais, “foi
para dizer que iam para o aeroporto, onde aguardariam ordens”, mas não revelou
de quem as receberiam e referiu que a coluna “não levava intuitos bélicos”.
Além das
medidas de preparação da saída, foi tratada a “neutralização do comando da
unidade”, a cargo de vários oficiais, entre capitães e tenentes, que
neutralizaram o comandante, o 2.º comandante e o tenente Lourenço, que estava
com eles, relatou aos inquiridores. Contou que havia “um clima de excitação” no
quartel e que se lembrava de ouvir furriéis e cabos milicianos a dizer “também
vou” ou “também quero ir”, pois constava que sairiam várias unidades do Porto, de
Lamego, de Santarém, de Mafra, de Évora e de Lisboa, o que não se verificou.
A coluna de
12 viaturas saiu das Caldas, a cerca de 90 quilómetros a norte de Lisboa, pelas
4h00 de 16 de março, um sábado. E Piedade Faria contou que, antes de chegarem à
portagem de Lisboa, cerca das 07h30, pararam e viram Marques Ramos ir ao
encontro de Casanova Ferreira e Manuel Monge, que estavam numa viatura própria
e lhe disseram para voltarem para trás, pois havia tropas do regime mais à
frente. Por isso, regressaram ao RI5 por volta das 10h30/10h45, foram mandados
“arrecadar as armas” e colocaram as munições sobre um cobertor na relva da
parada.
“O pessoal
foi para o refeitório, onde alguém arranjara comida” e chegou o brigadeiro
Serrano, de Tomar (das tropas afetas ao regime), para exigir a rendição, tendo
o quartel sido cercado.
As
conclusões, assinadas pelo coronel de Infantaria Ernesto Fontoura Garcez de
Lencastre, propunham que se prosseguisse com a ação disciplinar contra os
intervenientes, por se verificar que tinham infringido vários artigos do
Regulamento de Disciplina Militar (RDM), “altamente lesivos da disciplina e da
hierarquia militar”.
Depois de 16
de março, o poder político concentrou a atenção sobre os revoltosos, pensando
que Spínola controlava o MFA, o que permitiu que outros militares do MFA, como
Otelo Saraiva de Carvalho, que escapou a ser preso, nesse dia, preparassem e
concretizassem o golpe vitorioso em 25 de abril de 1974, que levou à
instauração do regime democrático.
***
Os militares da “brigada do reumático” (não velhos nem sofredores
de reumático), a 14 de março, no Palácio de São Bento, afiançaram fidelidade ao
regime do Estado Novo e à política ultramarina da nação. Marcello Caetano
retribuiu com um discurso e empossou oito novos governantes. Porém, na
madrugada do dia 16, uma coluna do RI 5 iniciou marchou para Lisboa com o
objetivo de derrubar o poder. O golpe das Caldas, acabado em menos de 20 horas,
prova que, nos primeiros meses de 1974, Portugal vivia em conspiração. A
ditadura cairia de madrugada, 39 dias depois, abrindo caminho ao fim da guerra
colonial e à democracia.
O
general Paiva Brandão, porta-voz do grupo fiel e Chefe de Estado-Maior do
Exército, garantiu: “As Forças Armadas não fazem política, mas é seu imperioso
dever, e também da nossa ética, cumprir a missão que nos foi determinada pelo governo
legalmente constituído.” Todavia, estava equivocado, pois as Forças
Armadas andavam a fazer política.
Kaúlza
de Arriaga conspirava com os ultras, os capitães conspiravam e teciam o movimento
que fez o 25 de Abril, Spínola conspirava com os
spinolistas e, deliberadamente, faltou – com Costa Gomes – ao beija-mão de fidelidade. A falta foi punida e os prestigiados generais Costa Gomes e António Sebastião Ribeiro de
Spínola foram exonerados dos cargos que detinham.
Marcello
Caetano, presidente do Conselho, proclamou: “Os sacrifícios que hoje se lhes
exigem em África são pesados, sem dúvida. Mas encadeiam-se numa ação secular em
que o País sempre ficou devedor da sua grandeza e projeção ao esforço dos seus
soldados.”
***
Enquanto
os militares alternam entre a corte ao regime e a conspiração, os preços a aumentam, a inflação dispara, Caetano sabe dos riscos da escalada de preços e a crise de
energia não cessa.
Segundo
o Diário de Lisboa, o presidente dos Estados Unidos da América, Richard Nixon, deu “um grande murro na mesa, o menos diplomaticamente possível,
para – segundo os observadores – acertar o passo dos aliados europeus ou para
criar, entre eles, dissensões tais que permitam uma fácil imposição da vontade
dos Estados Unidos”.
A
saída do RI 5 ocorreu três semanas após a publicação
do livro de António de Spínola
“Portugal e o Futuro”, com 50 mil
exemplares vendidos, entre as 9h e
as 15h, no dia em que
foi posto à venda, e com 230
mil cópias editadas em oito meses, com 20% de direitos de autor pré-negociados
pelo irmão do general. O
livro sublevou o pensamento de milhares de pessoas, por questionar a guerra colonial e
propor uma solução não militar para o conflito, implicando a
criação da federação política de Estados lusíadas.
O golpe falhado do 16 de março foi obra dos spinolistas “para se
anteciparem”, segundo alguns, mas o 25 de Abril teria ocorrido com
ou sem tal evento. Matos Gomes separa as águas
entre capitães e spinolistas do 16 de março, apesar de estes
últimos terem quase todos convergido e desaguado no MFA. E João Céu e Silva,
autor do livro “o General que começou o 25 de Abril dois meses antes dos
Capitães”, lembra que Otelo Saraiva de Carvalho “era o único elemento comum aos
dois grupos” e que Melo Antunes – um dos incontestados estrategas do MFA – fez
saber que se afastaria, se Otelo não preparasse os planos da revolução, com
detalhe e segurança, o que viria a acontecer com a revisão de planos e
confirmações de segurança.
Meses
antes, a 9 de setembro de 1973, parte dos militares que fizeram o 25 de Abril,
reuniram, num monte, em Alcáçovas, com 136 oficiais de todas as armas e
serviços das Forças Armadas, em reação aos decretos-leis n.º 353/73 e 409/73,
que a maioria decidiu continuar
a contestar, juntando-se a 51 oficiais a prestar
serviço, na Guiné-Bissau, e a 97, a prestar serviço em Angola.
Nos
dias agitados de março, os EUA exigiam a retirada total de Israel dos Montes
Golã, a Arábia Saudita pedia aos produtores de petróleo que pusessem termo ao
embargo contra os Estados Unidos da América do Norte e a União Soviética
falhava um poiso em Marte. Ernesto Geisel tomava posse como quarto presidente
da ditadura militar brasileira. O destino dos imigrantes
portugueses na República Federal da Alemanha (RFA) era preocupante, pois a
Federação das Indústrias Alemãs considerava “indesejável o aumento do número de
trabalhadores estrangeiros na RFA” que, no total de nacionalidades, representavam
mais de 10% da mão-de-obra do país.
***
No
concelho da Marinha Grande, emergiu a greve dos vidreiros, em março de 1974,
para exigir o aumento salarial de 100 escudos para todos os operários. Por
isso, a nível local, há quem entenda que a Primavera de Liberdade se anunciou
com a greve iniciada com o plenário de trabalhadores, a 13 de março, a que se
seguiu a Intentona das Caldas, do dia 16.
A
paralisação demonstrou que valia a pena lutar e arriscar as represálias do
regime e das polícias, além da superação dos reformismos sindicais. Tal
importância deveu-se também ao facto da greve ter sido “decretada por tempo
ilimitado”, até à satisfação da reivindicação principal.
No
livro “Luta Constante. Orla da Mata – 3”, publicado pela editora Hora de Ler, Luís
Neto escreveu que, “após a chamada Conciliação, relativa ao contrato coletivo
de trabalho da indústria vidreira, em junho de 1972, os vidreiros
encontravam-se em luta por aumentos salariais”; e assinalou dois aspetos essenciais: “Os
industriais arrecadavam grandes mais-valias ou lucros, com boas encomendas; os
operários tinham salários baixos e com diferença substanciais entre as várias
categorias.” “Já em junho de 1973, os Sindicatos do setor
vidreiro tinham enviado ao Grémio Nacional da Indústria Vidreira uma proposta
de alteração das tabelas salariais”, mas o acordo não foi alcançado. Houve
também uma tentativa de conciliação, sem sucesso.
O
autor refere o plenário de operários vidreiros no Sport Operário Marinhense, a
13 de março, e a decisão de “partir para a greve por tempo ilimitado até à
satisfação das reivindicações, em todos os setores da indústria vidreira,
reivindicando-se um aumento salarial igual para todos, o que foi, e ainda é, um
acontecimento importante”. “Tudo indica que foram os operários” da Vicris/Crisal a dar início
à paralisação, lê-se no livro, explicando que, “na noite de 14 para 15 de
março”, na Crisal, “a PSP [Polícia de Segurança Pública] tentou entrar nas
instalações da fábrica, mas os polícias foram impedidos por jovens operários
que empunharam canas com vidro quente”.
Também na Ivima ocorreram
episódios semelhantes, “com ameaças de que vinha até lá a PIDE [Polícia
Internacional de Defesa do Estado] para prender os grevistas, mas estes não
cederam às provocações” e “a greve verificou-se, no seu final, praticamente a
100%”.
Luís Neto realça a perigosidade
desta luta, devido às possíveis prisões – feitas, quase sempre, sem culpa
formada e sem fim à vista –, sendo que “os dirigentes da greve, membros ou não
do sindicato, tomaram atitudes firmes e corajosas”. A greve obrigou o patronato a
negociar, “até que, passados três dias de luta, se obtiveram aumentos de 60 escudos
(€ 0,30) para todas as categorias, exceto para os aprendizes (menores de ambos
os sexos)” e para as empalhadeiras.
Lembrando que “só os vidreiros
da Marinha Grande fizeram greve”, apesar de terem tentado que esta “se efetuasse
a nível nacional”, Luís Neto adianta que “a polícia de choque começou a
abandonar a Marinha Grande, no sábado de madrugada, portanto ao terceiro dia de
greve, 16 de março, pressupondo-se que, devido à ‘Intentona das Caldas’, as
forças do regime eram mais necessárias noutros pontos do país e, ou, em
prevenção”.
O aumento salarial “era uma
coisa fora de série” e as greves estavam fora de questão, não existiam, refere
Etelvina Rosa, que acabara de entrar para a indústria vidreira, com mais cerca
de 20 raparigas, apanhando-as de surpresa a greve. “Lembro-me de estarmos todas
sentadas na secção, em vez de estarmos a trabalhar, e quando saímos, à hora de
almoço, ficámos cheias de medo”, referiu, recordando que a Praça Stephens
estava com polícia a cavalo. A PIDE estava acampada no matadouro municipal.
“Havia períodos em que até estávamos de mãos dadas”, vincou, notando
que, embora, nos dias de hoje, esta situação pareça “muito simples”, vivida
àquele tempo era algo “mesmo tenebroso”.
Os grevistas não sofreram consequências
repressivas do regime, porque este caiu logo de seguida.
***
A Revolução dos Cravos – o 25
de Abril – não surge, de súbito, nem fora do contexto: sociedade efervescente, emigração
de pobres e de descontentes, militares (e suas famílias) cansados da guerra, regime
de repressão e de atraso crónicos e trabalhadores com magros salários, face ao
aumento do custo de vida.
A data pode ser ambígua, mas
deve ser assinada, porque o merece.
2024.03.17 – Louro de Carvalho
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