O primeiro-ministro (PM) cessante, António Costa, convocou, para 25 de
março, nas novas instalações do governo – antiga sede da Caixa Geral de
Depósitos (CGD) – o seu último Conselho de Ministros (CM), tendo convidado para
a ele presidir o Presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa, nos
termos da alínea i) do artigo 133.º
da Constituição da República Portuguesa (CRP), e cuja agenda genérica era o
avanço da reforma do Estado.
Lido o respetivo comunicado, tive a sensação de que se passou algo de
bizarro nas intervenções do CM, após as eleições legislativas de 10 de março,
que ditaram a vitória, por uma unha negra, da Aliança Democrática (AD).
Entendo que o governo tenha querido preparar com solidez os dossiês de transição
para o novo governo e que tenha feito questão de, publicamente, fazer gala da
proeza. Manifestei, por várias vezes, alguma simpatia pela ação dos três governos
do Partido Socialista (PS), que lograram, a princípio, a necessária descrispação
e alguma paz social e que até geriram o país em tempo de pandemia, de guerra e
de inflação, acabando por dar azo a generalizado mal-estar social, nem sempre com
a motivação mais certa e oportuna. Creio, mesmo, que houve ação concertada da contestação
da parte de forças políticas opostas, de empresas de comunicação social e de alguns
grupos sociais e profissionais.
Não obstante, não posso inibir-me de apontar a petulância exibida nesta
última reunião do governo, a que o PR deu a mão, como se o seu relacionamento com
o PM tivesse sido o da paz entre os anjos, sobretudo após a conquista da
maioria absoluta do PS em 2022.
O CM de 25 de março, já depois de indigitado o novo primeiro-ministro,
depois do início da madrugada do dia 21 – tendo o PR o cuidado de mencionar que
o secretário-geral
do PS tinha “reconhecido e confirmado que seria líder da oposição” (o
que não é da sua conta) – aprovou os seguintes decretos-leis: o que regula a organização da administração direta do
Estado; e o que aprova as orgânicas da Secretaria-Geral do Governo e do Centro
de Serviços Comuns.
Também aprovou
a Estratégia Nacional para a Inclusão das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo
2025-2030, que introduz medidas com enfoque na prevenção e na criação de um
sistema integrado de alerta de situações de risco; intervenção personalizada
com gestores de caso ao nível local; aumento de soluções de housing
first e apartamentos partilhados; intervenção especializada junto de
públicos especialmente vulneráveis; e reforço do acompanhamento das redes
locais de apoio às pessoas em risco ou que vivenciam a condição de sem-abrigo.
Aprovou,
ainda, um conjunto de diplomas, na generalidade, que constam da pasta de
transição deixada ao novo executivo e que constituem reformas fundamentais para
que seja efetuado o 5.º pedido de pagamento do Plano de Recuperação e
Resiliência (PRR), ou seja, as seguintes propostas de lei: a dos incentivos
fiscais com vista ao desenvolvimento do mercado de capitais e à promoção da
capitalização das empresas não financeiras; a do novo Estatuto da Carreira de
Investigação Científica, garantindo o reforço do emprego científico e
académico, assim como a estabilidade profissional ao pessoal docente e de
investigação a exercer funções nesses estabelecimentos; a do regime do pessoal
docente e de investigação dos estabelecimentos de ensino privado, garantindo o
reforço do emprego científico e académico, bem como a estabilidade profissional
ao pessoal docente e de investigação a exercer funções nesses estabelecimentos;
a do novo enquadramento legal dos incentivos ao financiamento na área da
cultura e do estatuto do mecenato cultural, do regime de emissão e atribuição
de vales culturais e do Fundo para a Aquisição de Bens Culturais para os Museus
e Palácios Nacionais; e a da reforma da propriedade rústica, através da
aprovação de alterações legislativas, para reverter o fracionamento da
propriedade rústica, e promover o emparcelamento e a gestão ativa e sustentável
do território.
Penso que,
em certa medida, é excrescente a norma do n.º 5 do artigo 186.º da CRP sobre a limitação
do governo “à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a estão
dos negócios públicos”, quando não goza da plenitude de poderes. Com efeito,
não havendo parlamento em funções, não faz sentido fazer-lhe propostas de lei e
as autorizações legislativas caducaram. Portanto, o governo em gestão, como sempre,
faz decretos-leis em matéria que não seja da competência exclusiva do parlamento, cabendo ao PR a promulgação
ou o veto.
Dito isto,
entendo que os decretos-leis aprovados a 25 de março (como os de 14 e de 21),
embora extemporâneos, do meu ponto de vista, podem ter cabimento, a juízo do
chefe de Estado. Ao invés, as propostas de lei, agora aprovadas, não passam de fogo-de-vistas
sem qualquer validade, denotam pressão política descabida sobre o novo governo
e sobre o novo parlamento e são um desconcerto, pois, se o governo não pode
fazer propostas a parlamento dissolvido, também não as pode fazer a parlamento que
ainda não está em funções ou de que o governo cessante não dimanou.
As pastas de
transição deviam estar organizadas e ser entregues em cada ministério, podendo o
PM cessante fazer, na praça pública (não institucionalmente) a apologia do
trabalho do governo.
Algo semelhante,
embora não tão provocatório, sucedeu com os CM de 14 e 21 de março, após as eleições.
O CM de 14 de março aprovou os seguintes decretos-leis: o que altera o Estatuto dos
Profissionais da Área da Cultura (EPAC); o que regulamenta a arbitragem
para a apreciação dos fundamentos da denúncia de convenção coletiva e a
arbitragem para a suspensão do período de sobrevigência, concretizando
compromissos da Agenda do Trabalho Digno; o que transpõe para a ordem jurídica
interna a Diretiva (UE) 2022/2380, relativa à harmonização da legislação dos
Estados-membros respeitante à disponibilização de equipamentos de rádio no
mercado; o que assegura a execução na ordem jurídica portuguesa do Regulamento
(EU) 2017/745, relativo aos dispositivos médicos; e o que altera o regime
jurídico do cadastro predial.
Aprovou a contribuição nacional para o programa,
conduzido pela Chéquia, de apoio à Ucrânia, bem como a criação da Estrutura de
Missão para o Licenciamento de Projetos de Energias Renováveis 2030 (EMER 2030)
enquanto entidade responsável por garantir o cumprimento dos objetivos do Plano
Nacional de Energia e Clima 2030 e acelerar a concretização dos projetos de
energia renováveis.
O
CM de 21 de março aprovou os seguintes decretos-leis: o que procede à extinção das Administrações Regionais
de Saúde, IP (ARS, IP), sendo as atribuições remanescentes sucedidas por outros
serviços e entidades, designadamente a Direção-Geral da Saúde (DGS), a Direção
Executiva do Serviço Nacional de Saúde, IP (DE-SNS), a Administração Central do
Sistema de Saúde, IP (ACSS, IP), e o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo
Jorge, IP (INSA,IP); o que introduz alterações legislativas que enquadram o
funcionamento do novo sistema de informação «Empresa 2.0», para melhorar os
serviços prestados no âmbito do regime de constituição de sociedades online, através da disponibilização de
novas soluções tecnológicas e de serviços digitais mais adequados aos tempos
atuais; o que estabelece a aplicação do regime do sistema de indústria
responsável à atividade de produção de gás, para introduzir a clareza normativa
necessária à concretização dos projetos apoiados no âmbito do PRR; e o que
procede a correções e clarificações ao Regime Jurídico da Urbanização e
Edificação (RJUE).
Como o CM de 24 de março, os de 14 e de 21 de março
aprovaram despesas referentes a projetos em desenvolvimento e a obras em curso,
bem como resoluções atinentes a questões nacionais ou a compromissos internacionais,
presentes ou de continuidade no futuro. Sobre isto nada há a opor.
Quanto à verborreia legislativa dos últimos dias do
mês, só vi parecido com o que se passou com o V Governo Provisório, em 1975, o
que deu origem a caricatura de imprensa segundo a qual o Presidente da
República, Francisco da Costa Gomes, exclamava: “Já não assino mais nada!”
***
Na manhã de 25 de março, o governo veio a terreiro repudiar, por falsas, as
acusações de Marques Mendes na SIC, no dia 24, como a de que Bruxelas
retém pagamentos do PRR ou as acusações de negligência da ação governativa e
até quanto ao conteúdo das propostas que comentou.
Esclareceu
ter entrado em gestão a 8 de dezembro de 2023, respeitando, desde então, os
limites constitucionais. Assim, não gozava das condições para aprovar diplomas
que alteram, de forma estrutural, a organização da Administração Pública
Central, nomeadamente no apoio à decisão política. Com a dissolução da
Assembleia da República (AR), aumentaram os constrangimentos à atuação do governo,
não tendo sido possível submeter e ver aprovar a Proposta de Lei relativa ao
mercado de capitais, pelo que não houve negligência em relação às reformas
previstas no PRR, mas “um trabalho permanente para a conclusão das medidas e o
respeito pelo quadro político que vivemos e que o governo não desejou, nem
defendeu”.
Apesar
disso, o governo prosseguiu na preparação dos diplomas relacionados com a
Reforma da Administração Pública, que “envolveu um trabalho exaustivo de
recolha e tratamento de informação que permitiu a preparação do modelo concetual
pelo grupo de trabalho com a missão de executar a reforma funcional e orgânica
da Administração Pública”, criado pelo Despacho n.º 14408/2022, de 16 de
dezembro de 2022. O grupo de trabalho prosseguiu a elaboração da proposta de
acordo com o cronograma proposto, incluindo a auscultação das áreas
governativas envolvidas.
Desmentiu
que esteja prevista qualquer fusão dos gabinetes de planeamento que, pelo
contrário, serão reforçados com esta Reforma. E, declarando que as metas e
marcos relativos ao 5.º pedido de pagamento se encontram em fase avançada de
concretização, cabendo agora ao novo governo submeter esse pedido, sendo que o
governo deixará os dossiês legislativos preparados nas metas a terminar, garantindo
que o país continua a beneficiar dos fundos do PRR, rejeita que se esteja ante uma
retenção de pagamentos, podendo o próximo governo concluir o processo e ser Portugal
o 2.º país em condições de submeter o 5.º pedido de pagamento, em linha com o
cronograma estabelecido com a Comissão Europeia.
Por fim,
relevou que “Portugal está na linha da frente da execução, tendo já cumprido
102 marcos e metas relativos a investimentos e reformas, 22% do total do programa,
o que permitiu receber quatro pedidos de pagamento, algo que só Itália também
conseguiu”.
***
É normal
que, em tempo de mudança dos homens do leme, haja galhardetes destes. O
comentador da SIC é tendencioso e sabe que todos os grandes projetos conhecem
fases de atraso e dificuldades de execução física e financeira, bem como o
risco de desvios, a que a fiscalização deve pôr cobro. Por sua vez, o governo entrou
em contradição: com poderes limitados, deixou decisões para os futuros
governantes, mas, após as eleições, ganhou novo furor decisório e até extrapolou
as suas competências, nalguns aspetos, com o escopo, ao menos aparente, de
pressão sobre os novos detentores do poder político. É, com alguma razão, o
estertor do “adeus” amargurado!
No entanto,
António Costa revelou-se um mestre das despedidas com chá: à despedida de
Cavaco Silva do seu mandado presidencial, convidou-o para presidir a um CM sobre
a temática do mar; e a Marcelo, que já tinha convidado para presidir a um CM,
convidou-o, novamente, quando está de saída da chefia do governo. É gesto que lhe
fica bem, mas com alguma hipocrisia, não pela presidência do CM pelo PR, mas
pelas declarações de ambos. O PR destacou a “solidariedade institucional”
entre o executivo e a Presidência da República, desde a chegada do PS ao poder,
em 2015, não
sendo “fácil encontrar muitos casos na política portuguesa” deste género. E o PM vincou: “Nem sempre coincidimos, mas será difícil encontrar outro período em que
as relações tenham seguido de forma tão fluida como com este governo.”
Constrangimentos criados
pelo PR, questionando diretamente governantes e exigindo ou sugerindo demissões,
dissolução da AR de maioria e censura pública de medidas apresentadas desdizem a
propalada solidariedade e a almejada estabilidade. E não vejo como a dita colaboração entre os dois poderes tenha sido “positiva e pedagógica” (como
disse o PR).
2024.03.26
– Louro de Carvalho
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