Ocorreu, a
13 de março, o 11.º aniversário da eleição do cardeal Jorge Mario Bergoglio
para o Sumo Pontificado, assumindo o nome de Francisco. A marcar a efeméride,
está previsto, para 19 de março (dia do início solene do seu múnus petrino), nos
Estados Unidos da América (EUA) e na Europa, o lançamento do livro autobiográfico
do Papa, “Vida. A minha história na História”, escrito com o vaticanista Fabio
Marchese Ragona, do grupo televisivo Mediaset, com a chancela da HarperCollins,
de que o jornal italiano Corriere della Sera antecipou a
publicação de algumas passagens, a 14 de março.
Em mais de
300 páginas, a vida de Jorge Mario Bergoglio, desde a infância até aos anos da
ditadura, na Argentina, e desde o ministério pastoral, em Buenos Aires, até
hoje: pôr-se ao serviço dos mais frágeis é o que o homem de Deus, sobretudo se
estiver no vértice da Igreja, deve fazer.
Em caso de
renúncia, Francisco não seria Papa emérito, mas “bispo emérito de Roma”, a
viver em Santa Maria Maior, “para voltar a ser confessor e levar a comunhão aos
enfermos”. É o próprio quem esclarece o cenário possível, em caso de renúncia
que, no entanto, é uma hipótese distante, pois não há “motivos tão graves” que
façam pensar nesta possibilidade, nunca levada em consideração, “apesar dos
momentos de dificuldade”. Não há “condições de renúncia”, esta ainda é a
indicação de Francisco, a menos que surja “um grave impedimento físico”,
possibilidade a que responderia a “carta de renúncia” depositada na Secretaria
de Estado assinada por Bergoglio no início do pontificado, eventualidade hoje
remota, porque o Papa, goza de “boa saúde e, se Deus quiser, ainda há muitos
projetos a realizar”.
O livro
retrata todos os aspetos da vida de Francisco, desde a relação com a família,
especialmente com os avós, a emigração dos seus parentes para a Argentina, em
1929, e a pequena paixão que viveu no período de seminário. “É normal, caso
contrário não seríamos seres humanos. Eu já tinha tido uma namorada antes, uma
jovem muito dócil que trabalhava no mundo do cinema que depois casou e teve
filhos. Dessa vez, estava no casamento de um dos meus tios e fiquei deslumbrado
com uma jovem. Realmente, fez a minha cabeça girar por causa da sua beleza e
inteligência. Durante uma semana, a imagem dela estava sempre na minha mente e
foi difícil, para mim, rezar! Felizmente, isso passou e eu dediquei-me, de
corpo e alma, à minha vocação”, escreve o Papa.
Francisco
fala também da II Guerra Mundial, com o seu dramático epílogo atómico. “O uso
da energia atómica para fins de guerra é um crime contra o homem, contra a sua
dignidade e contra qualquer possibilidade de futuro na nossa Casa comum”,
reitera o Pontífice, que levanta a questão de como podemos ser “defensores da
paz e da justiça, se construímos novas armas de guerra”.
As páginas
percorrem a História da ditadura argentina, dos laços de Bergoglio com quem não
saiu vivo, do seu compromisso em acolher os jovens em situação de risco, no
regime do general Jorge Rafael Videla, e da tentativa fracassada de salvar a
sua professora Esther, que foi muito importante para a sua formação. O que
aconteceu na Argentina “foi um genocídio geracional”, escreve o Papa, detendo-se
nas acusações que lhe foram feitas, várias vezes, de conivência com a ditadura,
desmentidas pela evidência da sua oposição “a essas atrocidades”. Francisco escreve
sobre Ester, uma “verdadeira comunista”, ateia “mas respeitadora” que, apesar
das suas ideias, nunca atacou a fé e ensinou muito sobre política a Francisco. É
uma recordação que oferece ao Papa o ensejo de repetir que “falar dos pobres
não significa, automaticamente, ser comunista”, pois “os pobres são a bandeira
do Evangelho e estão no coração de Jesus”, e que, “nas comunidades cristãs, se
partilhava a propriedade: isto não é comunismo, isto é cristianismo puro!”
O livro
continua o seu percurso entre a árdua defesa da vida humana, da conceção à
morte, sendo o aborto homicídio praticado por “assassinos contratados, sicários”,
e “desumana” a prática do “útero de aluguer”. Dedica um capítulo ao futebol,
paixão do Papa, que escreve sobre Maradona, Messi, e diz porque não vê, na TV,
os jogos da Argentina. Alude ao período passado em Córdoba, de onde lhe nasce a
reflexão sobre os erros cometidos por causa da sua “atitude autoritária”, que
levou a acusarem-no de ultraconservador. “Foi um período de purificação. Eu
estava muito fechado comigo mesmo, um pouco deprimido”, escreve.
A renúncia
de Bento XVI, o conclave e a eleição como Pontífice, com a escolha do nome, são
outro capítulo da autobiografia em que fala da sua dor por ter visto a figura
do Papa emérito “instrumentalizada”, “com propósitos ideológicos e políticos
por pessoas sem escrúpulos”, e pelas consequentes “polémicas” que “não faltaram
em dez anos e fizeram mal a ambos”.
O livro atravessa
o momento da pandemia e relembra os apelos sobre a riqueza das culturas e das
diferenças dos povos da União Europeia (UE), com a esperança de que os apelos
sejam ouvidos pelo primeiro-ministro húngaro Viktor Orban, “para que entenda
que há sempre uma grande necessidade de unidade”, e por Bruxelas, “que parece
querer uniformizar tudo, para que respeite a singularidade húngara”. Aborda
temas de grande interesse, para si, como a proteção da criação, pedindo aos
jovens que “façam barulho”, porque “o tempo está a esgotar-se, não nos resta
muito para salvar o planeta”.
Francisco
imagina uma “Igreja mãe, que abraça e acolhe a todos, mesmo quem se sente
errado ou foi julgado por nós no passado”, referindo-se aos homossexuais ou
transexuais “que procuram o Senhor e que, em vez disso, foram rejeitados ou
expulsos”. Por isso, repete o “sim” às “bênçãos para os casais irregulares”,
porque todos são amados por Deus, “especialmente os pecadores”. Se os bispos
decidirem não seguir este rumo, não significa que seja a antecâmara de cisma,
porque a doutrina da Igreja não é posta em causa. E, se o casamento homossexual
permanece impossível, o mesmo não acontece com as uniões civis, porque “é justo
que estas pessoas que vivem o dom do amor possam ter cobertura jurídica como
todas as outras”.
Como em
outros momentos, as palavras de Francisco são uma recomendação para fazer com
que as pessoas, muitas vezes, marginalizadas na Igreja se sintam em casa,
“especialmente as que receberam o Batismo, que são, em todos os aspetos, parte
do povo de Deus. E quem não recebeu o Batismo e deseja recebê-lo, ou quem
deseja ser padrinho ou madrinha, seja bem-vindo”. E o Pontífice não esconde as
feridas causadas por quem acredita que ele “está a destruir o papado”; se há
“sempre quem tenta frear a reforma, quem gostaria de permanecer preso nos
tempos do Papa-Rei”; e, se o Vaticano é a última monarquia absoluta da Europa,
onde, às vezes, se fazem raciocínios e manobras de corte, o escopo é abandonar,
em definitivo, esses esquemas.
***
Entretanto,
a 13 d março, o ACI digital publicou o
artigo de Andrea Gagliarducci, “Análise:
O colégio de cardeais em constante mudança”, sobre o estado etário do Sacro Colégio.
A mudança
mais recente no colégio cardinalício ocorreu a 24 de fevereiro, quando José
Luis Lacunza Maestrojuán completou 80 anos, pelo ficando afastado das fileiras
dos cardeais eleitores. Algumas semanas antes, a 12 de fevereiro, sucedeu o
mesmo a Pedro Ricardo Barreto Jimeno.
Há,
atualmente, 129 cardeais que poderiam votar num conclave, nove a mais do que o
máximo de 120 estabelecido por são Paulo VI e confirmado por todos os seus
sucessores até agora.
Nos 11 anos de pontificado, Francisco convocou nove
consistórios para criar novos cardeais. Assim, criou 142, sendo 113 eleitores e
29 não-eleitores, de 70 países. Destes países, 22 nunca tiveram um cardeal
antes. Este nível de atividade contrasta com são João Paulo II, que convocou
nove consistórios, num pontificado de 27 anos, e com Bento XVI, que convocou
cinco, em oito anos. Porém, o recorde de novos barretes vermelhos pertence a
são João Paulo II, que criou 231 novos cardeais no seu pontificado. Se um
conclave começasse hoje, haveria 94 cardeais eleitores criados por Francisco,
27 criados por Bento XVI e oito criados por São João Paulo II. Para eleger o
papa seria necessário um bloco de 86 votos (dois terços do conclave), e os criados
por Francisco são mais de dois terços.
Todavia, até
ao final de 2024, mais 10 cardeais perderão o direito de voto no conclave.
Portanto, se o Papa não convocar novo consistório até ao final do ano, o número
voltará a ser inferior ao máximo de 120 cardeais eleitores. Entre os 10
cardeais que vão completar 80 anos nos próximos meses, está Luis Francisco
Ladaria Ferrer, prefeito emérito do Dicastério para a Doutrina da Fé, influente,
mas que deseja deixar cargos públicos, tendo pedido ao Papa dispensa de participar
no Sínodo da Sinodalidade, e Marc Ouellet, prefeito emérito do Dicastério para
os Bispos.
Para os
outros quatro cardeais que vão completar 80 anos nos próximos 10 meses, o Papa
deverá encontrar um sucessor para as respetivas funções, já que todos ainda
estão no serviço ativo. Trata-se do arcebispo de Boston, Sean Patrick O'Malley
(29 de junho), presidente da Pontifícia Comissão para a Tutela de Menores; do
penitenciário-mor da Santa Sé, Mauro Piacenza (15 de setembro); do arcebispo de
Caracas, Venezuela, Baltazar Enrique Porras Cardozo (10 de outubro); e do
arcebispo de Mumbai, Índia, Oswald Gracias (24 de dezembro).
Também
completarão 80 anos, em 2024, Louis-Marie Ling Mangkhanekhoun, vigário
apostólico de Vientiane, Laos; Tanzânia, Polycarp Pengo, arcebispo emérito de
Dar-es-Salam; Jean-Pierre Ricard, arcebispo Emérito de Bordeaux, França; e John
Njue, arcebispo emérito de Nairobi, Quénia. É de referir que O’ Malley e
Gracias também são membros do Conselho de Cardeais conhecido como C9,
estabelecido pelo Papa para a reforma e para o governo da Cúria Romana.
Tendo isso em vista, até ao final de 2024, os cardeais-eleitores
criados por Francisco serão 91, enquanto os eleitos pelos papas anteriores
terão sido drasticamente reduzidos. Assim, num futuro conclave, haverá 22
cardeais criados por Bento XVI e seis por João Paulo II. Estes números sugerem
que a eleição de um sucessor de Francisco poderia ser orientada para um perfil
papal semelhante ao deste papa. Porém, o resultado do conclave poderia ser
muito diferente.
Na maior
parte dos casos, os papas convocaram consistórios para discutir e consultar os
cardeais sobre questões importantes para a vida da Igreja. Durante o seu
pontificado, Francisco só convocou um consistório três vezes para discutir questões
imediatas. A primeira vez foi em 2014, quando outro consistório acompanhou o
consistório da criação de novos cardeais para discutir questões sobre família,
com relatório do cardeal Walter Kasper.
Em 2015, foi
discutida a reforma da cúria e, em 2022, o Papa pediu aos cardeais que levassem
em conta a reforma da cúria estabelecida com a constituição apostólica Praedicate Evangelium.
A estrutura de discussão do último consistório diferiu do
padrão habitual. Os cardeais reuniram em pequenos grupos linguísticos. Nem
todos falaram na assembleia e vários deixaram escritos documentos sobre como
teria sido o seu discurso que não apresentaram aos restantes membros do colégio
de cardeais. Embora apresentada como um esforço para tornar a discussão mais
eficiente, essa estrutura eliminou momentos importantes de interação e
compreensão mútua.
As discussões nos consistórios permitem que os cardeais se
conheçam e que as personalidades envolvidas se definam com mais precisão. Por
exemplo, a candidatura papal de Karol Wojtyla surgiu de algumas dessas
discussões, juntamente com o facto de são Paulo VI o ter chamado para pregar os
exercícios espirituais da Quaresma, na cúria, em 1976. Embora Wojtyla fosse
autor respeitado e figura conhecida, não teria sido fácil obter o apoio dos colegas,
se não tivesse tido o ensejo de se fazer conhecido nestas circunstâncias.
Portanto, o
próximo conclave terá início com certa desvantagem, na medida em que os
cardeais não se conhecem tão bem. Isso poderia ser um impulso para a formação
de grupos de pressão que poderiam orientar o conclave numa direção ou noutra, mas,
provavelmente, também tornará o resultado mais imprevisível. Por esta razão,
embora Francisco tenha criado mais de dois terços dos cardeais eleitores, não é
certo que o papa a escolher em futuro conclave tenha o seu perfil.
Na situação atual, a constituição apostólica Universi dominici gregis, promulgada
por são João Paulo II, em 1996, que regulamentará o conclave, prevê, entre
outras coisas, que a partir da 34.ª votação (ou a partir da 35.ª, se houver uma
votação no dia de abertura do conclave), uma maioria simples seria suficiente
para eleger um papa. Essa disposição foi modificada por Bento XVI, em 2007, com
o motu proprio De Aliquibus
mutationibus in normis de electione romani pontificis.
A nova regra
prevê que na 34.ª ou 35.ª votação, em caso de “impasse”, será realizado um
segundo turno entre os dois cardeais mais votados, que não poderão votar. A
eleição, porém, só ocorrerá se um dos dois obtiver dois terços dos votos, como
em todas as outras votações. Estas regras visam obter amplo consenso sobre o eleito,
que pode contar com o apoio de todo o Sacro Colégio.
Já há algum
tempo se fala de um projeto de Francisco para reformar as regras do conclave.
Entre as reformas que poderiam estar em discussão, contam-se: a redução do quórum para a eleição do papa a
partir da 15.ª votação; a exclusão de cardeais com mais de 80 anos das
congregações gerais, ou seja, das reuniões pré-conclave, nas quais participam
cardeais votantes e não votantes; e nova estrutura das próprias congregações
gerais, nos moldes do último consistório, isto é, com a divisão dos cardeais em
grupos de trabalho e relatórios confiados a um moderador.
Nenhum estudo para alteração das regras do conclave foi
anunciado oficialmente. Diz-se que o cardeal Gianfranco Ghirlanda, patrono da
Ordem de Malta, que se tornou o canonista de confiança do Papa, nos últimos
anos, propôs projetos de reformas, mas não há confirmação disso. E resta saber
se os rumores de reforma das regras do conclave são fruto de discussões
honestas ou só de agitação e de especulação, face à conhecida imprevisibilidade
de Francisco.
***
Tudo isto
parece deixar entrever que o magistério de influência de Francisco é doutrinal,
humanista e inovador, mas sem o escopo de um projeto pessoal de poder. De
facto, poder é servir.
2024.03.14 – Louro de Carvalho
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