Moscovo qualificou, a 1 de março, de “extremamente irresponsáveis” as
declarações do secretário de Estado norte-americano, Lloyd Austin, que sustentou
que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) será arrastada para um
conflito com a Rússia, se a Ucrânia capitular.
“Estamos a ouvir declarações extremamente
irresponsáveis vindas de várias capitais europeias, e agora do outro lado do
mar”, disse Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, observando que as palavras de
Austin levam a “um novo aumento da tensão”.
Peskov considerou que as declarações de Austin demonstram a visão da NATO a
olhar para “a Ucrânia como parte do seu território”. E, ao mesmo tempo,
sublinha que tais declarações mostram que o que a Rússia está a fazer [a guerra
na Ucrânia] é totalmente correto”.
“Putin continuará a tomar medidas mais agressivas na região. Se a Ucrânia
cair, acredito realmente que a NATO entrará em guerra com a Rússia”, disse o
secretário de Estado, numa sessão perante o Comité de Serviços Armados da
Câmara dos Representantes dos EUA, ao invés do que tem dito o secretário-geral
da NATO.
“Se a Ucrânia cair, Putin não irá parar ali.
Continuará a avançar e a atacar os territórios soberanos dos seus vizinhos. Se
forem um país báltico, têm razões para estar preocupados, porque poderão ser o
próximo alvo”, disse Austin, vincando a importância de manter o apoio militar a
Kiev.
***
Entretanto, a 29 de fevereiro, no discurso anual às duas câmaras da
Assembleia Federal, a Duma e o Conselho, o presidente russo, em vez de acenar
com mais uma fonte de instabilidade, a Transnístria, usou a cartada da ameaça
nuclear, enalteceu a economia e as capacidades científicas, tecnológicas e
militares do país, fez promessas eleitorais e insistiu nas críticas ao Ocidente,
tendo como pano de fundo as eleições presidenciais a breve trecho.
Não é a primeira vez que Vladimir Putin recorre à ameaça nuclear. Fê-lo em
setembro de 2022, ao ter de anunciar uma mobilização militar parcial. “Se a
integridade territorial do nosso país for ameaçada, utilizaremos, sem dúvida,
todos os meios disponíveis para proteger a Rússia e o nosso povo”, garantiu num
discurso ao país transmitido pela TV.
Além disso, fez-se de vítima, ao aduzir que o Ocidente conspirava para destruir
o país, envolvendo-se em “chantagem nuclear” ao, alegadamente, discutir a
utilização de armas nucleares contra Moscovo.
Moscovo
tem acusado os aliados ocidentais da Ucrânia de estarem a fornecer armas a Kiev,
capazes de atingir alvos no interior da Federação Russa. E, no discurso, o presidente
russo acusou ainda o Ocidente de fazer ameaças contra a Rússia que estão a
criar um risco real de um conflito nuclear. “Tudo o que estão a inventar, neste
momento, tudo o que estão a dizer para assustar o Mundo, é uma ameaça real de
um conflito que envolve o uso de armas nucleares, o que significaria a
destruição da civilização”, declarou, assegurando: “Nós também temos armas
capazes de atingir alvos no vosso território.”
Ao falar da hipótese de forças da NATO serem enviadas para a Ucrânia, o
líder russo advertiu para as “trágicas consequências” da decisão. Tal
advertência é resposta à recusa do presidente francês, Emmanuel Macron, de
excluir qualquer possibilidade na ajuda à Ucrânia, incluindo o envio de tropas,
o que foi rejeitado pelos restantes líderes europeus – com exceção da
primeira-ministra da Estónia, Kaja Kallas. Porém, Stéphane Séjourné, ministro
dos Negócios Estrangeiros francês, explicou, mais tarde, que o putativo envio
de militares de aliados não seria para combate, mas para missões específicas,
como a desminagem ou a ajuda na guerra cibernética, e fontes diplomáticas
explicaram que, acima de tudo, é importante manter a ambiguidade estratégica.
Putin frisou o destino das tropas de Napoleão e de Hitler e acusou os
líderes ocidentais de pensarem que a guerra “é um desenho animado”. Em
contraste, avisou que as forças nucleares estratégicas da Rússia estão em “estado
de prontidão total” e que as armas mais modernas da Rússia, como os mísseis
hipersónicos Kinzhal e Zircon, já foram utilizadas na Ucrânia, enquanto outras,
o míssil de cruzeiro nuclear Burevestnik e o drone nuclear Poseidon, estão na
fase final de testes, e o míssil balístico intercontinental Sarmat entrou ao
serviço das forças nucleares.
Vladimir Putin aproveitou o momento para elogiar os militares, cujas
“capacidades de combate aumentaram consideravelmente” e, agora, “mantêm
firmemente a iniciativa”.
Perante deputados, militares, oligarcas e apoiantes conhecidos e anónimos,
Putin acusou o Ocidente de tentar travar o desenvolvimento do país, com o
objetivo de arrastar a Rússia para a decadência, tal como para arrastar” o país
para uma “corrida ao armamento”. Todavia, falhou.
O presidente russo elogiou os “séculos de unidade” do seu povo que criaram
uma força invencível de modo que, hoje, a Rússia é um “pilar da democracia”,
democracia que, sob o seu comando, não permitirá ninguém a interferir nos seus
assuntos internos. O seu maior adversário dos últimos anos, Alexei Navalny, morreu
numa colónia penal, no Ártico e nenhum dos adversários admitidos às eleições
presidenciais está contra a guerra na Ucrânia nem é, realmente, um opositor
político.
Aproveitando o estado de crescimento da economia, para prever que o país se
tornará na quarta maior mundial, Putin anunciou uma série de medidas para as
famílias jovens (deve dar-se especial atenção às famílias jovens), a começar
pela redução dos impostos, sobretudo para quem tenha um terceiro filho. E, para
aumentar a esperança de vida da população, de 73 anos para 78, até 2030, recuperou
um lema da era soviética: “Deixem de beber, comecem a esquiar.”
Porém, a diplomacia da União Europeia (UE) defendeu, no mesmo dia do
discurso presidencial russo, que as ameaças sobre eventual uso de armas
nucleares pela Rússia, são “absolutamente inaceitáveis e inadequadas”, visando
apenas a reeleição do presidente.
“Putin começou a guerra contra a Ucrânia, é responsável por
todas as consequências internas na Rússia, regionais na Ucrânia, mas também
globais na cena mundial e, por isso, é claro que todas estas ameaças com armas
nucleares são absolutamente inaceitáveis e inadequadas”, reagiu Peter Stano,
porta-voz da Comissão Europeia para os Negócios Estrangeiros, numa conferência
de imprensa, na sede da UE, em Bruxelas.
Questionado,
sobre as declarações de Putin perante a Assembleia Federal em Moscovo, o
porta-voz ressalvou que “isto tem de ser visto no contexto das próximas
eleições presidenciais, portanto, isto faz parte da sua tentativa de reeleição,
mas este é também um dos muitos exemplos de como Putin está a tentar desviar as
culpas da guerra”. “Putin começou a guerra contra a Ucrânia e, a partir da
instabilidade que está a tentar criar em torno da Ucrânia e na região em geral,
esta foi mais uma oportunidade para espalhar as bem conhecidas mentiras e
enganos”, vincou Peter Stano.
Ainda
reagindo ao discurso, comparou o Kremlin com o regime do ditador da União
Soviética Josef Stalin: “Basicamente, ele diz que a nação está a viver sob a
repressão de Stalin”. Com efeito, segundo Peter Stano e ao invés do que declarou
Putin, “a economia do Estado está em ruínas, a credibilidade do país está
totalmente destruída e os seus esforços para restaurar o velho orgulho não têm
sido, até agora, senão um fracasso”.
***
Os Ucranianos construíram um bunker
subterrâneo numa base militar que parece abandonada e destruída, para centro de
operações secreto do exército ucraniano. Equipas de militares ucranianos
rastreiam satélites de espionagem da Rússia e intercetam conversas entre
comandantes russos.
A base é quase inteiramente financiada e parcialmente equipada pela Agência
Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos da América (EUA). Efetivamente,
no início do terceiro ano de uma guerra que ceifou centenas de milhares de
vidas, a parceria de partilha de informação entre os EUA e a Ucrânia é
fundamental para a Ucrânia conseguir defender-se. A CIA e outros serviços de
informações dos EUA providenciam informações sobre mísseis direcionados,
rastreiam as movimentações das tropas russas e ajudam no apoio das redes de
espionagem.
A parceria não é criação da guerra, mas enraizou-se, há uma década,
ganhando forma pelos passos de três presidentes norte-americanos distintos,
impulsionada por indivíduos proeminentes que correram vários riscos ousados.
Transformou a Ucrânia, cujos serviços de informações se julgavam estar, há
muito tempo, completamente comprometidos pela Rússia, num dos principais
parceiros de informação de Washington contra o Kremlin.
Antes da guerra, os Ucranianos demonstraram o seu valor aos EUA, ao reunirem
interceções que ajudaram a provar o envolvimento da Rússia no abate de um avião
a jato comercial, o voo MH17 da Malaysia Airlines, em 2014, e auxiliaram os
norte-americanos na perseguição dos agentes russos que interferiram na eleição
presidencial norte-americana de 2016.
Em 2016, a CIA começou a treinar uma força de comando ucraniana de elite,
conhecida como Unidade 2245, que capturava drones e equipamentos de comunicação
russos, para que os técnicos da CIA pudessem reverter a engenharia e decifrar
os sistemas de encriptação de Moscovo. E a CIA auxiliou o treino de uma nova
geração de espiões ucranianos que operavam dentro da Rússia, por toda a Europa,
em Cuba e noutros locais onde se verificasse uma presença russa significativa.
A relação estava tão enraizada, que os agentes da CIA permaneceram numa
localização remota no oeste da Ucrânia, quando a administração Biden evacuou os
funcionários dos EUA, nas semanas que antecederam a invasão russa, em fevereiro
de 2022.
Durante a invasão, os agentes transmitiram informações cruciais, incluindo
os locais que a Rússia estaria a planear atacar e os sistemas de armas que
usariam.
Em mais de 200 entrevistas, agentes atuais e anteriores na Ucrânia, nos EUA
e na Europa, descreveram uma parceria que esteve prestes a falhar, devido a
desconfiança mútua, antes de se expandir progressivamente, transformando a
Ucrânia num centro de recolha de informações que intercetava mais comunicações
russas do que o posto da CIA em Kiev, na Ucrânia, conseguia inicialmente gerir.
Atualmente, estas redes de informações são especialmente importantes, visto que
a Rússia adotou uma atitude ofensiva e a Ucrânia está mais dependente da
sabotagem e dos ataques de mísseis de longo-alcance que requerem a presença de
espiões para lá das linhas inimigas. Correm cada vez mais riscos: se os
republicanos no Congresso dos EUA cessarem o financiamento militar de Kiev, a
CIA poderá ter de recuar.
Desde os primeiros momentos, o adversário comum – o presidente da Rússia –
uniu a CIA e os parceiros ucranianos. Obcecado pela perda da Ucrânia para o
Ocidente, Putin interferia no sistema político ucraniano, escolhendo a dedo
líderes que acreditava serem capazes de manter a Ucrânia na órbita da Rússia.
Contudo, o tiro saía pela culatra, empurrando manifestantes para as ruas.
Em finais de 2021, segundo um agente veterano europeu, Putin considerava
lançar a sua primeira invasão de grande escala quando se encontrou com o chefe
de um dos principais serviços secretos da Rússia, que relatou que a CIA, com o
MI6 da Grã-Bretanha, estava a controlar a Ucrânia e a transformá-la numa testa-de-ponte
(posição avançada) para operações contra Moscovo.
Contudo, uma a investigação do The New York Times averiguou
que Putin e os seus conselheiros interpretaram mal uma dinâmica crítica. A CIA
não forçou a sua entrada na Ucrânia. Os agentes dos EUA hesitavam em
envolver-se, receosos de que os agentes ucranianos não fossem de confiança e
preocupados com possíveis provocações ao Kremlin. Porém, um grupo de agentes de
informações ucranianos procurou relacionar-se, assiduamente, com a CIA e foi-se
tornando vital para os norte-americanos. Com o aprofundamento da parceria a
partir de 2016, os Ucranianos impacientaram-se com a cautela de Washington e
passaram a simular assassinatos e outras operações letais, violando os termos
que pareciam ter acordado com a Casa Branca. E os agentes em Washington
ameaçaram interromper o apoio, mas não o fizeram.
***
Enfim, como habitualmente, a guerra atual, para lá das armas, também se faz
com a informação oficial e com a contrainformação, com sabotagem, com ameaças,
com persuasivas declarações de força e de riqueza e, obviamente, com muito
dinheiro, com as redes de espionagem (catam informação e prestam informação
veraz ou falsa, consoante a conveniência) e com secretas operações de guerra e
de guerrilha. Faz-se a guerra de proximidade e a guerra à distância.
2024.03.05 – Louro de Carvalho
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