Às pessoas com esta condição
os rostos aparecem distorcidos de diversos modos. Por exemplo, umas veem
demónios, outras veem elfos (seres belos e/ou mágicos). Até agora, a literatura
científica registou 75 casos. Trata-se
da prosopometamorfopsia ou PMO, doença
rara que se exprime num distúrbio visual caraterizado por perceções alteradas
de rostos.
Segundo o “Journal of Clinical Neurology”, 21 de
dezembro de 2012, e a “Wiquipedia – The Free Encyclopedia”, as caraterísticas
faciais são distorcidas de vários modos, como a queda, o inchaço, a
descoloração e as mudanças de posição. É distinta da prosopagnosia, que se carateriza
pela incapacidade de reconhecer rostos. Em cerca de metade dos 75 casos
relatados, as caraterísticas de ambos os lados do rosto parecem distorcidas. Na
outra metade, as distorções ficam restritas a um lado da face (esquerdo ou
direito), sendo o distúrbio, neste caso, denominado de
hemiprosopometamorfopsia.
Geralmente, os rostos tendem a parecer distorcidos a
uma pessoa afetada por essa condição. Quem dela sofre é capaz de reconhecer rostos
normalmente, mas percebe-os como estranhamente desfigurados. Tais alucinações
faciais são, geralmente, descritas como feias e com proeminentes olhos e
dentes. Alguns descreveram os rostos como tendo uma qualidade de desenho
animado.
Os rostos são percebidos como contorcidos e com caraterísticas
deslocadas. Por exemplo, um paciente descreveu o rosto de uma pessoa com o
nariz desviado para o lado, a boca posicionada na diagonal e uma sobrancelha
mais alta do que a outra. A PMO pode envolver perceções de toda a face ou só de
s um lado da face (geralmente, após lesão no hemisfério direito).
Ainda é
desconhecida a causa definitiva da PMO. Contudo, há várias teorias potenciais na
literatura desta área. Em geral, tal condição vem associada a danos ou a anormalidades
em diversas áreas cerebrais (lobos temporal, occipital, parietal e frontal). Em
alguns casos, o desenvolvimento de MPO é manifestação de epilepsia. E pode
estar ligada à causalidade a hiperatividade nas áreas centrais ou distribuídas
da face (sem lesões).
Estudos de
imagem funcional em humanos identificaram uma área no giro fusiforme, ativada
seletivamente por estimulação, quando exposta a rostos, a área facial fusiforme
(FFA). Outra área conhecida por ser ativada por estímulos faciais é o sulco
temporal superior (STS). Esta região é particularmente ativa, quando tem de
processar expressões faciais, sobretudo as caraterísticas expressivas
relacionadas com os olhos. Por isso, sugeriu-se que olhos proeminentes (caraterística
típica das perceções faciais) nas distorções registadas estão mais de acordo
com o aumento da atividade (o que causaria uma super-representação dos olhos)
dentro do STS, em vez da área da face fusiforme. Paralelamente, descobriu-se
que a estimulação das regiões seletivas da face fusiforme posterior e média num
paciente com epilepsia resistente a medicamentos resultou em perceções
consistentes com as de metamorfoses faciais (o paciente viu a face do experimentador
começar a cair), o que permitiu concluir que as distorções percebidas se
correlacionaram com alterações de sinal no FFA do paciente, e não no STS.
A PMO é uma
alucinação facial incluída no grupo de alucinações visuais complexas. Ao invés
de outras formas de alucinações, como a alucinose peduncular ou a síndrome de
Charles Bonnet, não predomina num determinado horário do dia; é uma experiência
constante. Todavia, pacientes com a síndrome de Charles Bonnet notaram descrições
de PMO. Esta forma de distorção percetiva, juntamente com outras, como a macropsia
e a micropsia (alteração do tamanho percebido do objeto) e a palinopia
(variedades espaciais e temporais e poliopia) são classificadas na categoria da
metamorfopsia. Essas distorções podem ocorrer tanto em perceções alucinadas
como em perceções verdadeiras (não alucinadas). É atribuída a alterações
estruturais do cérebro ou a distúrbios funcionais como a epilepsia, a enxaqueca
ou as doenças oculares.
Antidepressivos
como o citalopram e o antipsicótico quetiapina foram registados como incapazes
de facilitar a melhora desses sintomas. O ácido valproico foi inicialmente
usado para tratar uma mulher que teve alucinações com rostos de dragão, o que aliviou
totalmente os sintomas, mas, tendo desenvolvido alucinações auditivas como
efeito colateral. Foi-lhe prescrita rivastigmina, o que reduziu as alucinações
auditivas e os sintomas visuais. Uma mulher de 75 anos foi tratada com infusão
intravenosa de heparina e cumadização durante 10 dias, o que permitiu o alívio
quase total dos sintomas visuais. O tratamento varia consoante a causa das
distorções faciais.
***
Um estudo relatou uma mulher de 24 anos que
desenvolveu prosopometamorfopsia após o parto. Inicialmente, desenvolveu
enxaquecas graves e visão turva, principalmente no hemicampo visual direito, e
estava confusa. Os distúrbios visuais persistiram, muito depois de a enxaqueca ter
diminuído. A mulher descreveu a metade esquerda dos rostos das pessoas como
“fora do lugar” e via tais distorções independentemente de os rostos serem
familiares ou desconhecidos. No entanto, foi capaz de visualizar, na sua mente,
rostos de pessoas familiares, sem distorções, não relatou perceber distorções
em outros estímulos, além de rostos, e demonstrou os mesmos padrões, um ano
após as primeiras avaliações. Descobriu-se que tinha uma lesão no hemisfério
esquerdo, que resultou em distorções na metade esquerda das faces, às quais foi
exposta. O aspeto unilateral do defeito sugere que os estágios iniciais do
processamento facial ocorrem em mecanismos paralelos, em ambos os hemisférios,
e que o hemisfério direito integra a informação que resulta numa representação
facial unitária.
Outro estudo examinou uma mulher de 75 anos que sofreu
um início súbito de náusea, de tontura e de visão turva. A parte central dos
rostos, especialmente o nariz e a boca, foi descrita como fora de forma. A
mulher alegou que os narizes pareciam estreitos e alongados em direção à boca,
que parecia pequena e arredondada, independentemente de os rostos lhe serem ou
não familiares. Não apresentava quaisquer outras deficiências no desempenho
visuopercetual, nem quaisquer deficiências cognitivas ou psiquiátricas. Uma
ressonância magnética cerebral ponderada em T2 revelou enfarte no lobo
temporo-occipital medial direito, incluindo o giro para-hipocampal (complemento
do FFA).
Uma mulher de
52 anos sofria da história, ao longo da vida, de ver rostos a transformarem-se
em rostos semelhantes a dragões e relatou ter alucinações com rostos
semelhantes, várias vezes ao dia. Inicialmente, reconhecia os rostos reais, mas,
uns tempos depois, tornavam-se pretos, cresceriam orelhas longas e pontudas e
um focinho protuberante, exibindo pele de réptil e olhos grandes e salientes em
cores brilhantes. Via esses rostos a vir na sua direção, várias vezes ao dia, a
partir de objetos como tomadas elétricas. E também teve essas alucinações no
escuro. Já havia sofrido de dores de cabeça recorrentes, alucinações de
passagem (para ver movimentos no canto dos olhos) e zoopsia (via formigas
grandes a rastejar sobre as suas mãos). Uma ressonância magnética do cérebro
mostrou pequenas anormalidades na substância branca perto do núcleo lentiforme
e no centro semioval. As perceções visuais que experimentou foram atribuídas à
atividade eletrofisiológica incomum nas regiões do cérebro especializadas no
rosto e cor no córtex occipitotemporal ventral.
Uma mulher de
44 anos relatou ter começado a ver distorções faciais. Percebeu que os rostos
das pessoas mudariam para parecerem mais caricaturas delas e a sua perceção
piorou com o tempo. Tinha histórico de epilepsia, na infância, e sofreu uma
concussão, vários anos antes de ter essa condição, embora nenhuma evidência
médica de convulsão tenha sido encontrada durante as distorções. Relatou que,
ocasionalmente, tinha uma visão pixelizada, como a estática da televisão, e
mencionou que tais sintomas ocorriam várias vezes por semana, durando cada
evento de alguns minutos a algumas horas.
Victor
Sharrah, chef de 58 anos, ao acordar, numa manhã, ficou apavorado, ao ver o
colega de apartamento com as orelhas pontiagudas, os olhos gigantescos e a boca
na extensão das bordas do rosto. Tentando acalmar-se, decidiu ir passear o cão,
mas as pessoas com quem cruzava, na rua, tinham rostos estranhos e distorcidos.
“O meu primeiro pensamento foi que tinha acordado num mundo demoníaco”, disse à
AFP, ao telefone a partir de casa, em
Clarksville, Tennessee, nos Estados Unidos da América (EUA), recordando que até
pensou em internar-se “numa unidade psiquiátrica”. No entanto, não tinha
“perdido a razão por completo”, como temia. Com a ajuda de especialistas,
descobriu que sofre de PMO.
Enquanto
Sharrah vê demónios, alguns veem elfos, disse à AFP um estudioso da PMO, Antonio Mello. Para alguns, a metade do
rosto que veem aparece derretida. Outros veem rostos roxos ou verdes em
constante movimento. Às vezes, essa condição dura poucos dias. Porém, mais de
três anos depois daquela manhã novembro de 2020, Sharrah ainda vê demónios.
Este caso é
muito particular. Ao invés de outras pessoas com PMO, quando vê rostos em telas
planas, eles parecem normais. Isto permitiu a Mello e a outros investigadores
do Dartmouth College, nos EUA, criar as primeiras imagens “fotorrealistas”, que
representam como as pessoas com PMO veem os rostos, segundo estudo publicado, a
22 de março, na revista científica “The Lancet” e replicado, a 23 de março, no “Diário
de Notícias”. Para criar as imagens, os cientistas fizeram Sharrah comparar
fotos de Mello e de outra pessoa como apareciam numa tela de computador com as
distorções que ele via nos seus rostos reais. E a outros pacientes os rostos
nas fotos também aparecem distorcidos.
Sharrah diz
que a vida com PMO é “muito mais traumática do que as imagens podem transmitir”.
“O que as pessoas não entendem quando veem estas imagens é que, na vida real,
esse rosto está em movimento, com as suas expressões ou através da fala”, vinca,
para reforçar a estranheza provocada por essas distorções.
Para Jason
Barton, neurologista da Universidade de British Columbia, que não participou no
estudo, a PMO é um “sintoma, não um transtorno”, e por isso poderia ter
múltiplas causas. Na maioria dos casos que pesquisou, “algo aconteceu no
cérebro que se correlacionou com o início desta experiência anormal”. Sharrah
tem uma lesão no cérebro provocada por um acidente que sofreu enquanto
trabalhava como camionista, em 2007. Porém, segundo Mello, não está relacionada
com a PMO, porque as ressonâncias magnéticas mostram que a lesão está no
hipocampo de Sharrah, parte do cérebro “não associada à rede de processamento
facial”.
Mello disse
que mais de 70 pacientes contactaram o seu laboratório nos últimos três anos. A
natureza assustadora da condição significa que, frequentemente, foi diagnosticada,
de forma equivocada, como esquizofrenia ou como psicose.
Sharrah
soube da PMO, depois de publicar sobre a sua experiência num grupo de apoio online para pessoas com transtorno
bipolar. Foi um grande alívio. “Significava que, afinal, não era um psicótico”,
referiu à AFP. Tem a visão perfeita,
mandou fazer óculos com lentes verdes que diminuem a gravidade das distorções.
O vermelho torna-as mais intensas. Além da cor, a perceção de profundidade
parece desempenhar um papel. Embora Sharrah não veja distorções faciais em
telas planas, estas começaram a aparecer, quando os investigadores o fizeram
usar um capacete de realidade virtual. Porém, adaptou-se, em grande medida, ao
seu estranho mundo novo. Três anos depois, não usa os óculos verdes, mas, em
locais cheios, como um supermercado, ou com a multidão de demónios ao seu redor,
ainda pode ser “assustadora”.
Como o
paciente que sofre de PMO sabe que o que está a ver não é real, pode enfrentar
uma decisão difícil: se vale ou não a pena falar às pessoas sobre a aparência grotesca
que têm, podendo parecer louco. Alguns preferem o silêncio. E Mello conta o
caso de um homem que nunca disse à esposa que o seu rosto, depois de muitos
anos, lhe parece distorcido. Já Sharrah diz que resolveu compartilhar a sua
experiência para que outras pessoas com PMO pudessem evitar ser “internadas por
psicose”. “Assim, sabem o que está a acontecer e não vivenciam o trauma por que
eu passei.”
Pessoalmente,
vi um caso de pessoa a quem pareciam disformes rostos e objetos, como portas,
paredes, automóveis (pareciam tortos e batidos), após uma cirurgia, sem
sucesso, a descolamento de retina, o que foi corrigido em nova cirurgia. O paciente
apenas comunicou o facto, sem dramatismo, e sujeitou-se a nova intervenção.
Enfim, a
vida é feita de muitas vicissitudes, umas dramáticas, outras aceitáveis.
2024.03.23 – Louro de Carvalho
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