Os talibãs
saíram à rua em Cabul, a capital, no dia 15 de agosto, para marcar o primeiro
aniversário do seu regresso ao poder no Afeganistão, após um ano marcado por
forte regressão nos direitos das mulheres e profunda e alargada crise humanitária,
sendo que as principais manifestações se concentraram em frente à antiga
embaixada dos Estados Unidos da América (EUA).
Talibã é um
movimento fundamentalista islâmico, cujos membros mais influentes eram ulemás (teólogos) nas suas terras
natais.
Tanto Zarghun Ammar, funcionário dos serviços
secretos do regime talibã, como Aminnullah Saiful Omar, funcionário do
ministério da Defesa talibã, manifestaram o seu muito grande contentamento pela
derrota dos EUA “e dos seus escravos”. Ao mesmo tempo, declararam que “os que fugiram para o
estrangeiro, nomeadamente médicos e engenheiros que trabalhavam para o anterior
regime, devem voltar para o país, porque serão recebidos de braços abertos pelo
Emirado Islâmico”, que precisa deles.
Num dia
decretado como feriado pelo regime talibã, as agências humanitárias mostram-se
particularmente alarmadas com o facto de mais de metade dos 38 milhões de
habitantes do Afeganistão viverem numa situação de pobreza extrema. E o
quotidiano é particularmente preocupante para a população feminina, cada vez
mais confrontada com as restrições de um regime guiado por uma interpretação
ultrarrigorosa e fundamentalista do Islão.
O país passou
de uma democracia do tipo ocidental para uma teocracia obscurantista. As
mulheres são as principais vítimas do retorno dos talibãs ao poder. O medo está
instalado e coloca em pesadelo a vida de todos os que não fazem parte do
aparelho do fundamentalismo religioso. As perseguições por “brigadas populares”
são o quotidiano. É facto que há relatos de bons exemplos de resistência, com
muitas mulheres valentes. Há as que se manifestam com cartazes em que reclamam
“pão, trabalho e liberdade” – mas são logo reprimidas.
Um novo
relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) mostra que uma enorme infusão
de ajuda mal consegue evitar que o número de pessoas com fome continue a crescer
no país. Com efeito, um ano após a tomada do poder pelos Talibãs, o Afeganistão está em colapso económico,
com mais de 24 milhões de pessoas em insegurança alimentar, pois a
retirada da ajuda internacional e o congelamento dos bens do país provocou uma
queda económica drástica que afetou principalmente os afegãos comuns. O pessoal
da elite não sofre com a crise!
A este
propósito, Neil Turner, diretor do Conselho Norueguês para os Refugiados, aponta
“níveis incrivelmente elevados de pobreza no país”, com pessoas a verem reduzidos
os seus salários e os seus rendimentos, assumindo maiores dívidas,
utilizando estratégias para lidar com a situação,
que incluem o casamento precoce de raparigas ou o trabalho infantil em regime
de exploração e mesmo a venda de crianças (nomeadamente as meninas com 12 anos).
O aumento de crianças subnutridas mostra a difícil realidade económica
vivida no país (há uns seis milhões de crianças em fome extrema). Acrescem a seca e a inflação resultante da guerra na
Ucrânia, que ameaçam piorar consideravelmente a situação.
As mulheres vão mantendo a força para protestarem, mas os seus protestos não amolecem o coração dos
talibãs, que prometeram ao país e à comunidade internacional respeitar os seus
direitos, mas dispersam as manifestações
com tiros. Ademais, não há qualquer mulher no governo nem há qualquer
ministério que trate dos assuntos das mulheres.
Após o
reinício das aulas em setembro de 2021, apenas as raparigas até ao sexto ano
foram autorizadas a frequentar escolas e a maioria das mulheres foi impedida de
trabalhar nos departamentos governamentais. De
facto, a maioria das afegãs foi proibida de continuar a estudar depois do 7.º
ano ou de regressar aos seus empregos no setor público, tendo de ceder os
empregos aos homens, independentemente das suas qualificações.
As
mulheres estão proibidas de praticar desporto, obrigadas a tapar o corpo e o
rosto (sendo-lhes exigi-o em público o véu integral) – é-lhes controlada a
roupa – e desencorajadas de aparecer em público sem um parente masculino.
A ativista
Azita Nazhand comenta: “Mesmo no passado existiam restrições e violência
contra as mulheres afegãs, mas as mulheres tinham esperança porque havia
escolas, mulheres e raparigas que podiam servir o seu país através do seu
conhecimento. Mas agora até perderam
a sua única esperança, que era a educação.”
A antiga
deputada afegã, Naheed Farid, diz que os talibãs tomaram estas decisões contra
as mulheres por terem medo de mulheres instruídas. E fala destas medidas como
uma “vitória" do regime “perante a Organização do Tratado do Atlântico
Norte (NATO) e os EUA”, que serve apenas “para reprimir mulheres empoderadas no
futuro”.
Além da
pobreza e do rigor da vida sob o regime talibã, os
afegãos estão sujeitos aos ataques frequentes a mesquitas e às minorias, por
parte do Estado Islâmico (EI).
A este
respeito, é de lembrar que o EI realizou o seu primeiro grande ataque a 26 de
agosto de 2021, fora do aeroporto de Cabul, onde 170 afegãos e 13 soldados
norte-americanos foram mortos. Na verdade, o grupo, que surgiu no leste do
Afeganistão em 2014, é visto como o
maior desafio de segurança enfrentado pelos novos governantes do país. E, numa
série de ataques contra minorias xiitas neste mês de agosto, 10 pessoas foram
mortas e outras 40 foram feridas na capital.
***
Refere a Amnistia Internacional (AI), em
relatório publicado a 15 de agosto, que,
um ano depois do regresso dos talibãs
ao poder, o Afeganistão vive uma “crise de direitos humanos sem precedentes” e
está em colapso económico, com cerca de 20 milhões de pessoas em situação de
insegurança alimentar (outras fontes indicam 24 milhões).
Enfatizando
que os talibãs reverteram duas décadas de progresso em direitos humanos no
Afeganistão, a AI denuncia a “impunidade
generalizada para crimes como tortura e assassínios por vingança”. É
certo que, há um ano, os talibãs chegaram ao poder e assumiram compromissos
públicos para proteger e promover direitos humanos. Não obstante, “a rapidez com que estão a desmantelar 20
anos de ganhos é espantosa”, alerta a AI pela voz de Yamini Mishra,
diretora da organização para o Sul da Ásia, acrescentando que “quaisquer esperanças de mudança
evaporaram-se à medida que procuraram governar através de uma repressão
violenta com total impunidade”.
Também a
Organização Não Governamental Repórteres Sem Fronteiras (RSF) e a Comissão
para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) publicaram
um relatório, segundo o qual a liberdade de imprensa no Afeganistão
se degradou desde que os talibãs tomaram o poder em Cabul, a 15 de agosto de
2021. O mesmo relatório denuncia detenções, agressões e restrições de
movimentos a jornalistas, especialmente mulheres.
***
Para
combater as sanções, as autoridades de Cabul apostam na exportação de
carvão, em expansão com a crise energética. Metade da população sofre de
desnutrição e as mulheres viram os seus direitos regredirem drasticamente, como
já foi dito.
No norte do
país, entre Mazar-e-Sharif e Cabul, seguindo depois para o Paquistão, os
camiões de carvão são os mestres das estradas. As preciosas cargas tornaram-se
o principal recurso dos talibãs, cuja prioridade é apostar na extração
de combustíveis fósseis. Desde a queda do antigo regime de Cabul, a 15 de agosto
de 2021, o país vive sob sanções, privado de ativos, na ordem dos 9,2 mil
milhões de dólares, congelados em bancos americanos e europeus, o que levou a
economia contraiu entre 20% a 30%.
A ajuda
internacional, civil e de segurança, que representa mais de 8 mil milhões de
dólares por ano, equivalente a 40% do PIB do país, foi cortada, mergulhando
metade da população numa situação de desnutrição aguda, com muitos afegãos a
perderem empregos e meios de subsistência. Neste contexto, os talibãs apostam
fortemente nos recursos minerais. Segundo as autoridades, existem 80 minas de
carvão identificadas, das quais 17 operacionais.
A guerra na
Ucrânia e a crise energética tornaram o carvão precioso. O Paquistão está
dependente do carvão afegão, visto que o Islamabad foi privado
dos principais fornecedores. O carvão sul-africano é comprado sobretudo
pela China, pois as restrições de covid-19 interromperam as exportações da
Austrália. E o Emirado Islâmico do Afeganistão aproveitou o ensejo.
Todos concordam que a segurança melhorou no Afeganistão,
tendo diminuído a violência, mas isso de pouco serve se a felicidade e a saúde
não são transversais e a paz não existe. Na verdade, impedir gente de
estudar, restringir as liberdades das mulheres e colocá-las sob o açaime do
controlo, retirar emprego, salário e rendimento às pessoas, deixar alastrar a
fome às crianças, enfim semear a pobreza e a miséria é estar nos antípodas da
paz. É a guerra sem o inimigo convencional. E o país necessita de paz,
tranquilidade, desenvolvimento e progresso.
Há que pôr em ação a diplomacia e a ajuda internacional, ao
invés de sanções económicas.
2022.08.16 –
Louro de Carvalho
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