Tem
ecoado nos diversos órgãos de comunicação social o fenómeno corrente do pedido
de escusa de responsabilidade por parte de muitos profissionais de saúde que
trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS), nomeadamente médicos de diversas
especialidades, enfermeiros e mesmo assistentes operacionais. O Presidente da
República, em recente entrevista a uma jornalista da CNN Portugal, referiu que
a lei prevê a escusa da responsabilidade, mas em muito poucos casos, asserção
que fez eco em declarações subsequentes da Ordem dos Médicos.
Sobre
esta matéria, a DECO (Associação de Defesa do Consumidor) refere que a suposta falta
de condições na prestação dos cuidados de saúde tem motivado muitos profissionais
do setor a fazer pedidos de escusa de responsabilidade,
mecanismo a que podem recorrer médicos ou enfermeiros e profissionais de outras
áreas (por exemplo, bombeiros), sendo que tais pedidos podem ser feitos por
profissionais do setor público e do setor privado.
A DECO aponta
diversos pedidos de escusa de responsabilidade de enfermeiros da Unidade de
Cuidados Intensivos (UCI) do Hospital de Santa Maria, a pretexto de não haver profissionais
suficientes, de alguns médicos internos de ginecologia e de
obstetrícia em todo o País, por não terem as condições necessárias no
trabalho, e de alguns farmacêuticos do Instituto Português de Oncologia (IPO),
por não
verem garantidas as suas condições de segurança.
A questão da
escusa de responsabilidade está na ordem do dia, mas não é de agora. Por
exemplo, foram apresentados, em 2020, vários pedidos decorrentes da prática de
atos médicos no âmbito da medicina geral e familiar, baseados no excesso de tarefas
atribuídas ou no acompanhamento inadequado dos
utentes com patologias devido à situação pandémica.
O pedido de
escusa de responsabilidade é um pedido unilateral efetuado por um profissional
de determinada área, invocando a exclusão de responsabilidade, com base num
determinado motivo, como falta de recursos humanos, escassez de equipamentos ou
outros fatores que possam comprometer o exercício da respetiva profissão. Tal
pedido deve mencionar: a identificação do profissional; o local de trabalho; a
identificação dos constrangimentos; e os riscos ou a repercussão que os
constrangimentos podem causar aos utentes.
Há três tipos
de responsabilidade: a disciplinar, a civil e a criminal.
No setor
público, a responsabilidade disciplinar resulta da Lei Geral do
Trabalho em Funções Públicas (LGTFP – aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de
junho, cuja última alteração foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 51/2022, de
26 de julho), segundo a qual todos os trabalhadores são disciplinarmente
responsáveis perante os respetivos superiores hierárquicos. Todavia, a lei prevê a exclusão da
responsabilidade disciplinar do trabalhador que atue no
cumprimento de ordens de superior hierárquico, quando antes tenha reclamado ou
tenha solicitado a transmissão ou a confirmação das mesmas por escrito.
Estabelece o
artigo 177.º da LGTFP:
“1. É
excluída a responsabilidade disciplinar do trabalhador que atue no cumprimento
de ordens ou instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria
de serviço, quando previamente delas tenha reclamado ou exigido a sua
transmissão ou confirmação por escrito.
“2.
Considerando ilegal a ordem ou instrução recebidas, o trabalhador faz
expressamente menção desse facto ao reclamar ou ao pedir a sua transmissão ou
confirmação por escrito.
“3.
Quando a decisão da reclamação ou a transmissão ou confirmação da ordem ou
instrução por escrito não tenham lugar dentro do tempo em que, sem prejuízo, o
cumprimento destas possa ser demorado, o trabalhador comunica, também por
escrito, ao seu imediato superior hierárquico, os termos exatos da ordem ou
instrução recebidas e da reclamação ou do pedido formulados, bem como a não
satisfação destes, executando seguidamente a ordem ou instrução.
“4.
Quando a ordem ou instrução sejam dadas com menção de cumprimento imediato e
sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 2, a comunicação referida na parte final
do número anterior é efetuada após a execução da ordem ou instrução.
“5. Cessa
o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções
implique a prática de qualquer crime.”
Também o
artigo 5.º do Estatuto Disciplinar da Polícia De Segurança Pública (PSP), aprovado pela Lei n.º 37/2019, de 30 de maio
estabelece
“1. É
excluída a responsabilidade disciplinar dos polícias que atuem no cumprimento
de ordem ou instrução emanada de superior hierárquico em matéria de serviço.
“2. Cessa
o dever de obediência sempre que o cumprimento de ordem ou instrução implique a
prática de crime.”
Não se vislumbra
a figura de exclusão de responsabilidade disciplinar no regulamento de disciplina
militar, nem no da Guarda nacional Republicana (GNR).
Já a responsabilidade civil e
a responsabilidade
criminal dependem dos atos praticados pelo profissional.
Por exemplo, a responsabilidade civil será avaliada em função da prova
apresentada, pois a mesma é essencial para declarar se o profissional é ou não
responsável, ou seja, se houve ou não violação das leges artis (leis
da arte).
Alguns
defendem que o pedido de responsabilidade releva mais no plano disciplinar e menos no plano civil ou
criminal, pois a declaração isolada não retira a
responsabilidade dos profissionais nestes dois últimos, pois deve ser provada. A
situação não é linear, pelo que devem ser provados os condicionalismos invocados
pelo profissional. Com efeito, se o profissional de saúde recorre à escusa de
responsabilidade e nega qualquer tipo de responsabilidade por atos praticados
num determinado período, por exemplo, devido a falta de recursos, e, se ocorrer
um erro e estiver em causa a responsabilidade do profissional, será necessário
provar em tribunal que, na altura em que ocorreu o erro, não havia os recursos
em causa. Caso contrário, o profissional pode ser condenado, mesmo com pedido
de escusa. Por isso, há quem sustente que este mecanismo é forma de pressão ou
de protesto, por exemplo, quanto ao mau funcionamento de um serviço de saúde, o
que pode levar, no limite, à condenação da unidade de saúde em que tal serviço
é prestado.
A DECO tranquiliza
a opinião pública no sentido de que os direitos dos utentes não podem ficar
comprometidos, mesmo que um profissional apresente um pedido de escusa de
responsabilidade, visto que o Estado continua a ser responsável perante os
utentes e, em caso de erro, mantém-se o direito de indemnização. Não obstante,
a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, dizia que, nestas circunstâncias, os
utentes continuam a pagar os erros e as insuficiências do SNS. Ora, garantir
que os direitos dos utentes se mantêm inalterados, porque vigora o direito à indeminização,
a ter de provar em tribunal, é ficar-se por uma garantia minimalista e, na maior
parte dos casos, nula.
A Rádio Renascença
recolheu dois pontos de vista diferentes sobre se o pedido de escusa de
responsabilidade isenta de indemnização ou condenação, posição que divide os especialistas. Certo é que a unidade hospitalar
responde sempre ante casos de fracasso clínico que tenham desfechos mais ou
menos graves. Quanto aos profissionais, a responsabilização disciplinar parece
afastada, o que não se pode dizer da responsabilidade civil e criminal.
Segundo Rita
Garcia Pereira, especialista em Direito do Trabalho, os profissionais, neste
caso, os da saúde, têm três tipos de responsabilidade: a disciplinar, a civil e
a criminal. Quer dizer que, por erro grosseiro no exercício da profissão, podem
responder simultaneamente em três planos distintos. Estas declarações visam
isentar os trabalhadores que pretendem dizer que, se houver erro grosseiro, é
causado pela ausência total de circunstâncias. Os utentes podem reclamar, não
quanto ao profissional, mas quanto à instituição onde se apresentaram. Ao
hospital pode sempre ser assacada responsabilidade. Quanto ao trabalhador, a responsabilidade
civil e criminal varia consoante os casos. Mediante esta declaração, a anulação
da responsabilidade disciplinar é pacífica, a da civil cria dúvidas junto dos
tribunais e a penal também, o que não significa que os utentes não tenham
direito a ser indemnizados e que não o sejam, mas que se transfere única e
exclusivamente para o hospital a responsabilidade e não para o profissional em causa.
E, mesmo
sobre a responsabilidade disciplinar, a advogada explica: “Imagine que eu
apresento a declaração, mas naquele turno não se verifica a falta de condições
que motivou a apresentação da escusa de responsabilidade. Então aí a mesma
declaração não serve.”
As decisões
dos tribunais têm sido distintas. Decisões eximem a responsabilidade do
profissional e decisões a mantêm a sua responsabilidade, porque o
condicionalismo alegado já não se verificava. Num caso concreto, a escusa era
pedida porque não havia profissionais suficientes em escala, mas, quando se deu
o erro já existiam, o que acabou com a condenação do profissional, em termos
criminais e civis e, obviamente, em termos disciplinares.
Tiago Leote
Cravo, especialista em Direito Administrativo e Responsabilidade Civil, para
quem o pedido de escusa de responsabilidade tem mais impacto na pressão do
trabalhador junto da entidade patronal do que na justiça, considera que o
documento pouco vale legalmente e na defesa em tribunal. Com efeito, para o especialista,
“não será uma declaração destas a colocar em causa os direitos dos utentes que
permanecem intocados e a responsabilidade do Estado mantém-se”, não isentando juridicamente
o Estado e os profissionais. Este documento não abre portas à ausência de
responsabilidade de médicos e enfermeiros. Não pode ter o valor que se pretende,
pois não se pode demitir o Estado das suas obrigações e das suas responsabilidades
ante os utentes, mas os médicos e os enfermeiros não podem deixar de ser
responsáveis. Porém, o documento denuncia a falta de condições dos profissionais
de saúde e é usado como forma de luta.
Uma coisa
são as circunstâncias em que a pessoa trabalha e o profissional não é
responsável pelas poucas condições que o Estado lhe dá para exercer funções. Aí
pode haver responsabilidade de quem tem de decidir em relação aos meios. Mas o pedido
de escusa, em si, não demonstra nada e não isenta; é mero elemento de pressão,
muito importante para que se tomem decisões políticas urgentes porque se trata
de “um bem imprescindível para todos que é a saúde pública”.
Para Leote
Cravo, se a ausência de cuidados ou a deficiência na prestação de auxílio e
cuidados aos doentes resultarem em danos, os profissionais não ficarão livres
de responder em tribunal, eles e as unidades de saúde.
***
É
recorrente no Estado a falta de meios e de outras condições de trabalho. Porém,
interrogo-me sobre o que seria se, por exemplo, polícias, bancários, professores
e assistentes operacionais (nas escolas) pedissem a exclusão de
responsabilidade. E já agora as pergunta maliciosas: Porque só há pedido de escusa de responsabilidade e protestos no SNS?
No setor privado, há condições de trabalho, equipamentos, falta de erros? Ou há
só melhores condições de faturação?
2022.08.18 – Louro de Carvalho
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