O diferendo
que opõe a Rússia e a Ucrânia está longe de se circunscrever àquela região da
Europa. Isto é sabido e tem sido reiterado em diversas ocasiões, quer pelas
autoridades russas, quer pelos países ditos do Ocidente, designadamente os que
integram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e a União Europeia
(UE). A Rússia tem prometido responder adequadamente se a NATO intervier no
conflito bélico, dando a entender que não terá qualquer pejo em recorrer a armas
químicas e mesmo a armas nucleares. E os países do Ocidente, que não têm sido
parcos em impor sanções económicas e políticas à Rússia, que lhes responde à
medida das necessidades e desejos, como vêm cooperando com a Ucrânia,
fornecendo-lhe armas e militares e doutrinando a opinião pública no apoio
incondicional ao país invadido.
A Rússia
lançou, a 24 de fevereiro, uma ofensiva militar na Ucrânia que já matou mais de
5.100 civis, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), que alerta para a
probabilidade de o número real ser muito maior. Esta ofensiva foi condenada
pela generalidade da comunidade internacional, que respondeu com o envio de
armamento para a Ucrânia e o reforço de sanções económicas e políticas a
Moscovo.
Entretanto, a
31 de julho, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, estabeleceu novas linhas
vermelhas ao Ocidente nos mares Negro, Báltico e Ártico, ao aprovar uma nova
doutrina naval influenciada pelas mudanças geopolíticas originadas pela guerra
na Ucrânia. Tais linhas definem as fronteiras e as zonas que representam os
interesses “vitais” da Rússia.
Assim, numa
intervenção do Dia da Marinha, em São Petersburgo, o líder russo, citado pela
agência espanhola Efe, afirmou o claro estabelecimento das fronteiras e das
zonas que representam os interesses nacionais da Rússia – económicos e estratégicos,
os que são vitais, explicitando que se trata da zona ártica, das águas do mar
Negro (entre Europa, Anatólia e Cáucaso), de Ojotsk (Pacífico) e de Bering (Pacífico)
e nos estreitos do Báltico (Atlântico) e das Ilhas Curilas (Pacífico). Disse: “Iremos
garantir a nossa defesa, de forma firme e recorrendo a todos os meios”. E anunciou
que a Marinha russa irá receber, nos próximos meses, novos mísseis de cruzeiro
hipersónicos “Tsirkon”, que irão equipar a fragata “Almirante Gorshkov”, o que
não constitui novidade, visto que, em 2018, Putin tinha anunciado um novo
programa de rearmamento com armamento hipersónico, tendo na altura destacado
que o “Tsirkon” não tem “comparação no mundo com outros” e que o alcance destes
mísseis era “praticamente ilimitado”.
Desta vez, assinalou
que a frota cumpre, com sucesso e com honra, as missões estratégicas nas
fronteiras do país e em qualquer lugar do oceano, o que está em constante aperfeiçoamento.
A cerimónia
de assinatura da nova doutrina naval ocorreu na Fortaleza de São Pedro e São
Paulo, em São Peterburgo, depois de o Presidente russo ter dado início à parada
naval na antiga capital czarista e na ilha de Krostadt, parada e desfile
subsequente em que participaram mais de 40 navios, submarinos e lanchas, 42
aviões e mais de 3.500 soldados, embora ações similares se estivessem a
celebrar noutros portos, como foi o caso do enclave báltico de Kaliningrado –
em representação da frota que tem desempenhado um papel ativo desde o início da
invasão da Ucrânia, apesar de, em abril, a Rússia ter sofrido o seu maior
revés, com o naufrágio do navio “Moskva”, provocado pelas tropas ucranianas, na
sequência do qual terão morrido cerca de 30 marinheiros.
***
Era
de prever, para breve, a definição da nova doutrina naval Na verdade, a 28 de
julho, o vice-presidente do Conselho de Segurança russo, reiterando que a
entrada dos dois países em causa na NATO pode conter armas ofensivas e, com
isso, representar uma ameaça para a Rússia, declarou que a Rússia dará uma
resposta “simétrica” ao aumento da presença militar da NATO na Finlândia e na
Suécia, na sequência da adesão daqueles dois países nórdicos à Aliança
Atlântica.
Segundo Dmitri Medvedev, também ex-presidente
e ex-primeiro-ministro russo, que falava à imprensa, após uma reunião dedicada à segurança da
fronteira noroeste e no contexto da possível entrada de Estocolmo e de
Helsínquia na NATO, a Finlândia e a Suécia podem optar “diferentes
formas” de instalação da NATO, podendo aceitar a criação de bases nos
respetivos territórios, contendo armas ofensivas. E a resposta da Rússia “será simétrica a estes
passos”.
Na reunião, que decorreu na região
russa da Carélia, no noroeste da Rússia junto à fronteira com a Finlândia,
estiveram presentes o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Valery
Gerasimov, o chefe dos serviços de segurança russos (FSB), Alexander Bortnikov,
o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Alexander Grushko, e o chefe do
Serviço de Espionagem Estrangeira (SVR), Sergey Naryshkin. Aí, Medvedev sustentou que “a
decisão sobre a entrada da Finlândia e da Suécia na NATO não reforça a
segurança da região, pelo contrário, torna a situação mais difícil, uma vez que
se trata de garantir a segurança de todos”. E acrescentou:
“Em geral, isso deteriora
inquestionavelmente a segurança na região do Báltico, que se torna
essencialmente um mar dominado pela NATO. A reação da Rússia a esses eventos
será a que for necessária e suficiente. Tenho a certeza de que seremos capazes
de proteger os interesses do nosso país e garantir a segurança dos nossos cidadãos
com os meios necessários.”.
Medvedev frisou que Moscovo iria rever a “Doutrina Paasikivi-Kekkonen”, de
1948, do antigo Presidente finlandês, Juho Kusti Paasikivi e continuada pelo
sucessor, Urho Kekkonen, que visa a sobrevivência da Finlândia como país
capitalista independente, soberano, democrático e próximo da antiga União
Soviética, e que as relações com a Suécia neutra também serão revistas.
É de recordar que a Finlândia e a
Suécia solicitaram a adesão à NATO, em fevereiro, após o início da ofensiva
militar russa na Ucrânia, apesar de tradicionalmente se oporem a essa adesão. Porém,
estes países, que garantem provisoriamente o estatuto de países convidados, só
serão membros de pleno direito da NATO após a ratificação dos protocolos de
acesso pelos parlamentos dos 30 países que atualmente integram a Aliança
Atlântica.
Também a 28 de julho, Medvedev
visitou o posto fronteiriço de Vyartsilya, junto à fronteira com a Finlândia,
onde inquiriu sobre o fluxo de transporte de carga entre os dois países, reduzido
a um oitavo, devido às sanções contra a Rússia. E, exprimindo a convicção de
que a quebra no comércio é um fenómeno temporário, afirmou que “mais tarde ou
mais cedo, o fornecimento de mercadorias será retomado”, pois “ninguém cancelou
o dinheiro”.
***
O investigador
Pierre Binette, especialista em política externa russa, em outubro de 2017, considerava
que uma Rússia poderosa, respeitada e imune às decisões dos Estados
estrangeiros constitui o fundamento da “doutrina Putin”, que cruza as heranças
czarista e da ex-superpotência União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Segundo o
investigador, professor no departamento de Escola de Política Aplicada na
Universidade de Sherbrooke (Canadá) e membro do Observatório da Eurásia, o pragmatismo
na política externa e o corte com a política ocidentalista de Boris Ieltsin, da
sua submissão aos interesses ocidentais e do menosprezo pelos interesses da
Rússia no seu espaço tradicional de influência, bem como a aplicação da doutrina
da “democracia soberana” são os conceitos que predominam nos corredores do
Kremlin.
Em artigo da
revista “Diplomatie”, intitulado “La ‘doctrine Poutine’, rempart contre l’hégémonisme
occidental?” (“A ‘Doutrina Putin’, baluarte contra o hegemonismo ocidental?”), o
académico aborda os interesses e objetivos russos, não as decisões que impõem
os Estados estrangeiros, e Putin a referir que “a Rússia apenas é tratada com
respeito quando é poderosa”.
Com efeito,
a expansão da zona de influência da NATO e da UE até às fronteiras russas e a
formação de um cordão sanitário político, económico e militar entre a Europa e
a Rússia são encaradas com apreensão por Moscovo. A intervenção dos aliados na
Bósnia-Herzegovina, a partir de 1995, e no Kosovo, desde 1999, reforçaram a
urgência em aplicar a nova doutrina, na qual a reforma das Forças Armadas constituiu
um dos vetores decisivos. E, três décadas após a dissolução da URSS, a Federação
da Rússia (nome oficial), liderada por Putin desde 2000, tem-se esforçado por
desenvolver novas parcerias e apresentar-se como uma potência euroasiática,
para contrabalançar o poder ocidental, sublinhando a necessidade de “respeito
dos fundamentos do direito internacional público”, em particular a soberania do
Estado e a não-ingerência nos assuntos internos. Nesta lógica, como recordava
Binette, operou-se a grande “viragem a leste”, concretizada pela aproximação à
China e, a seguir, à Índia e ao Irão.
Em termos de
diplomacia multilateral, sobressai a participação da Rússia na Organização de
Cooperação de Shangai (OCS) e na União Económica Euroasiática (UEE). Porém, em
diversas organizações (ONU, Conselho da Europa [CE], Conselho dos Direitos
Humanos [CDH]), a utilização da força pelas potências ocidentais para o derrube
ou tentativa de derrube de “governos legítimos” (Iraque em 2003, Líbia e Síria
em 2011) são apontadas pelos dirigentes russos como flagrantes violações da
soberania destes Estados.
Foram,
entretanto, as “revoluções coloridas” junto às suas fronteiras – Geórgia (2003),
Ucrânia (2004) e Quirguízia (2005) – e, sobretudo, as manifestações na praça
Maïdan que levaram ao derrube do presidente pró-russo Viktor Ianukovitch (fevereiro
de 2014), que, para o Kremlin, comprovaram a lógica de ingerência ocidental e
implicaram medidas de contenção internas.
No entanto,
como sublinhava Binette, a credibilidade do discurso russo como defensor do
direito internacional foi posta à prova na sequência da crise ucraniana, em
particular com a anexação da Crimeia em 2014. Moscovo acusou o derrube de
Ianukovitch de ilegal e resultante da ingerência dos Estados ocidentais na
política ucraniana e, na sua diplomacia, passou a priorizar o direito dos povos
à autodeterminação em detrimento dos princípios da integridade territorial e da
intangibilidade das fronteiras.
Esta nova
abordagem foi explicitada por Putin no discurso que proferiu na Assembleia-Geral
da ONU, a 28 de setembro de 2015, no qual se socorreu do precedente do Kosovo, acentuando
que, para si, “o território e as fronteiras não são mais importantes do que o
destino das populações”, pelo que se interrogava sobre se os kosovares no Kosovo
dispõem do direito à autodeterminação, por que motivo não disporão do mesmo
direito os habitantes da Ucrânia.
O
reconhecimento internacional da independência do Kosovo, em 2008, constituiu o
fator decisivo para a Rússia alterar as suas políticas nesta área. De imediato,
à custa da Geórgia, Moscovo reconheceu as independências da Abecásia e da
Ossétia do Sul, “zonas de influência” junto das suas fronteiras. E, apesar de
permanecer com sérios problemas internos, incluindo o demográfico, o
restabelecimento do seu poderio militar e a aproximação à China permitiu à
Rússia reposicionar-se como potência internacional e como ator incontornável na
resolução de conflitos, mesmo permanecendo problemático o seu isolamento em
relação à Europa.
***
Tudo leva a
crer, pelas afirmações reiteradas ao longo deste ano, que Putin e quem lhe
suceder tudo farão para levar por diante a doutrina do carismático Putin de
expansão e de consolidação da Rússia como a maior potência mundial. Conseguirão
tal objetivo? Depende também dos outros…
2022.08.02 – Louro de Carvalho
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