Mikhail
Sergeevich Gorbachev, o último presidente da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS) ou União Soviética, morreu na noite do dia 30 de agosto, aos
91 anos de idade, após severa e prolongada doença, como difundiu a agência de
notícias russa RIA apoiada na
informação do Hospital Central de Clínicas de Moscovo. O esforço do homem que
promoveu o fim da guerra fria, para democratizar o sistema político do país e descentralizar
a economia, originou a queda do regime comunista e o desmembramento da URSS em
1991.
Na segunda
metade da década de 1980, as palavras glasnost (transparência) e perestroika
(reestruturação), em voga no regime soviético, entraram no léxico ocidental. O
responsável foi justamente Gorbachev, primeiro, como secretário-geral do
Partido Comunista da União Soviética (PCUS) de 1985 a 1991 e, depois, como
único presidente da União Soviética, em 1990-1991. Tendo como pano de fundo uma
economia disfuncional, o seu destino político ficou traçado após o golpe da ala
conservadora e a reação dos reformistas pró-liberais, liderada por Boris
Ieltsin.
Em março de
1985, quando Gorbachev ascende a secretário-geral do PCUS e à liderança da
União Soviética, o maior país do mundo em superfície e rival ideológico dos
Estados Unidos (EUA) atravessava uma crise multifacetada. O reinado de Leonid
Brejnev (1964-1982) deixou estagnado o país e com a guerra no Afeganistão. Os
sucessores, Yury Andropov e Konstantin Chernenko, estavam anquilosados como o
país. Em comparação com eles, o novo líder era mais jovem (54 anos) e tinha um
programa cujo objetivo principal era pôr de pé a economia, para o que instaurou
a modernização tecnológica com vista a aumentar a produtividade dos
trabalhadores e aligeirar a burocracia. E, sob a política de glasnost,
o seu Governo expandiu as liberdades de expressão e de informação e repudiou a
herança do totalitarismo estalinista.
Em abril de
1986, enfrentou o desastre nuclear de Chernobyl, que negou, passados 20
anos, em artigo no Project Syndicate,
tê-lo ocultado à comunidade internacional, apesar de as autoridades soviéticas
só terem reconhecido o acidente dois dias depois e sob pressão das autoridades
suecas.
Só um dia e
meio depois o Kremlin teve conhecimento, e sem pormenores, do sucedido. Mais do
que o lançamento da perestroika, o incidente talvez tenha sido a
principal causa do colapso da União Soviética, cinco anos mais tarde. A
catástrofe de Chernobyl constituiu um ponto de viragem histórico: houve a era
anterior a Chernobyl e há a era seguinte. Mais do que qualquer outra coisa, tornou muito maior a possibilidade de
liberdade de expressão na União Soviética a ponto de o sistema se ter tornado
insustentável.
Insatisfeito
com a ausência de resultados, Gorbachev iniciou, em 1987, as reformas mais
profundas do sistema económico e político. A nível da perestroika, promoveu
a primeira democratização do sistema político com a introdução de eleições com
vários candidatos para cargos partidários e governamentais, bem como o voto
secreto. Porém, a perestroika a nível da economia enfrentou a
resistência por parte dos burocratas do PCUS e do regime, que não queriam ceder
o controlo da atividade económica do país. Mas, em 1988, Gorbachev remodela o
poder legislativo e o executivo, acabando o monopólio do PCUS: para o novo
parlamento bicamaral, o Congresso dos Deputados do Povo, alguns membros são
escolhidos diretamente pelo povo em eleições com vários candidatos. Em 1989, o
Congresso elegeu entre as suas fileiras um novo Soviete Supremo que, ao invés
do antecessor, tinha poderes legislativos. E Gorbachev foi eleito seu presidente,
mantendo a presidência nacional.
***
Filho de
camponeses (pai russo e mãe ucraniana), Gorbachev nasceu a 2 de março de 1931,
em Privolnoye, região de Stavropol, no Cáucaso do Norte. Aos 15 anos aderiu à
Komsomol (Juventude Comunista) e nos quatro anos seguintes conduziu uma
ceifeira-debulhadora num kolkhoz (quinta coletiva) em Stavropol. Em
1952, entrou na Faculdade de Direito de Moscovo, onde se formou em Direito em
1955. Tornou-se membro do PCUS, ocupou vários cargos na Komsomol e em
organizações partidárias em Stavropol, tornando-se primeiro secretário do
comité do partido em 1970. E até 1978 dirigiu essa região do sul da Rússia. Entretanto,
formou-se em Economia em 1967.
Nomeado membro
do Comité Central do PCUS em 1971, foi nomeado secretário do partido para a
agricultura em 1978. Passados dois anos, tornou-se o membro mais novo do
Politburo.
Desde o início
das suas funções como secretário-geral do PCUS, marcou a diferença na política
externa, ao cultivar boas relações com Margaret Thatcher, Ronald Reagan ou
Helmut Kohl. Em janeiro de 1986, declarou ter proposto a redução dos armamentos
e o fim das armas nucleares até ao ano 2000. Meses depois, dá-se o encontro
histórico com o presidente dos EUA Ronald Reagan, em Reiquejavique, culminando,
em dezembro de 1987, com a assinatura de um acordo para a destruição dos
arsenais de mísseis de médio alcance com ogivas nucleares.
O degelo
provocado pela perestroika repercutiu-se numa série de eventos
na viragem da década. Em 1989, Gorbachev apoiou os comunistas reformistas nos
países do bloco soviético. À medida que as revoluções decorreram nos países de
Leste, concordou com a retirada das tropas soviéticas, bem como com a
reunificação da Alemanha. Em consequência, em 1990, foi galardoado com o Prémio
Nobel da Paz. Contudo, não houve paz em várias repúblicas, ressaltando os
conflitos entre o Azerbaijão e a Arménia, na Geórgia, no Usbequistão, entre a Inguchétia
e a Ossétia do Norte, bem como a repressão das tropas soviéticas após a
declaração da independência da Lituânia.
Em março de
1990, Gorbachev foi eleito pelo Congresso dos Deputados do Povo para o cargo de
presidente da URSS e abriu a via para a legalização de outros partidos
políticos. Mas a abertura política alimentou os nacionalismos das várias
repúblicas e não foi acompanhada de um plano alternativo no atinente à economia
estatal planificada, entrando esta em colapso, o que amplificou o
descontentamento generalizado. Em agosto de 1991, com os Estados bálticos (Estónia,
Leónia e Lituânia) e a Geórgia em secessão, os comunistas de linha dura retiveram
Gorbachev e a família em prisão domiciliária, na Crimeia, enquanto se dava, em
Moscovo, um golpe militar. Face às divisões entre as forças de segurança e os
apoios das repúblicas, foi Boris Ieltsin a personificar a ordem e a jugular o
golpe, subindo para um tanque e condenando o plano. E o projeto de reformular a União Soviética através do tratado de estados
soberanos, sob um presidente, um exército e uma política externa, fracassou. Ieltsin
e a Rússia, de que era o presidente, assumiram o controlo da situação e lideraram
a Comunidade de Estados Independentes (CEI), com o apoio da Bielorrússia
e da Ucrânia.
Disse Gorbachev que foi “o pior erro
estratégico”, que aceitou para não transformar a crise numa guerra. E, em 25 de
dezembro de 1991, renunciou à presidência da União Soviética, que deixou de
existir nesse dia. Esta é a grande mágoa deste homem que foi casado com Raisa (uma
ucraniana, que faleceu em 1999 e junto da qual vai ser sepultado) e que diz ter
lutado o melhor que pôde para manter a
União, mas que falhou, como disse, em entrevista canal de televisão RT (Rússia
Today), aos 80 anos. E, em 1996, com a memória fresca da penúria e do
colapso económico dos anos do fim da URSS, os eleitores escolheram Ieltsin nas presidenciais
da Rússia, tendo atribuído ao antigo líder da URSS menos de 1% dos votos,
embora Gorbachev considerasse ter recebido mais votos e que as únicas eleições
justas e livres decorreram entre 1989 e 1991.
Crítico do
papel da NATO, concordou com Donald Trump na asserção de que a Aliança
Atlântica é obsoleta. Ressentido com a promessa quebrada do secretário de
Estado norte-americano James Baker de que a NATO não expandiria “nem mais um
centímetro” para leste após a reunificação alemã, contra a intervenção militar
no Kosovo sem mandato da ONU, Gorbachev aplaudiu, como referia o The Washington Post, a anexação da
Crimeia, em 2014, por Vladimir Putin, que agora manifesta tristeza pela sua
morte.
Mas o atual
líder russo foi alvo, várias vezes, dos seus reparos. Um deles é o seu papel na
instauração de nova guerra fria e de nova corrida aos armamentos, em especial
ao nuclear. Em outubro de 2019, tendo os EUA acusado Moscovo de desrespeitar o
Tratado das Forças Nucleares de Alcance Intermédio e se ter retirado do acordo,
escreveu estarem à vista de todos as tendências perigosas existentes,
destacando duas: o desrespeito pelo direito internacional e a militarização da
política mundial. E, considerando aquele tratado o pilar mais importante da
estabilidade estratégica, preconiza conversações para a sua destruição não
agravar a ameaça de guerra.
O homem que
nos anos finais da vida se confessou social-democrata e se mostrou admirador
dos escritos tardios de Lenine, reformista em vez de revolucionário, afirmou,
no livro The New Russia (2015), que os soviéticos nunca conheceram
o socialismo e que “os valores que enformam o socialismo são tão relevantes
hoje como ontem”.
Apreciado internacionalmente, mas desvalorizado no seu país, o propulsor
da glasnost e da perestroika, acabou a acreditar que
o seu trabalho e os seus esforços não foram em vão, como disse, em
entrevista, à Der Spiegel, a 17 de
abril de 2017. Ficará para a História o juízo sobre o nome cujo falecimento suscita
as condolências, os elogios (e alguns reparos) do mundo político.
2022.08.31 – Louro de Carvalho
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