A 19 de agosto, a meio da noite, forças policiais e paramilitares da Nicarágua
invadiram o prédio da Cúria Episcopal da Diocese de Matagalpa, no norte do
país, de onde estavam impedidos de sair, desde 4 de agosto, Dom Rolando José
Álvarez Lopes e alguns sacerdotes, seminaristas e leigos. Como a própria
diocese denunciou nas redes sociais, os agentes tiraram do edifício, à força, nove
pessoas, incluindo o prelado, levando-as, segundo testemunhas, num comboio de
oito veículos. E centenas de pessoas, quando ouviram os sinos da igreja a tocar
enquanto a polícia invadia a Cúria, aproximaram-se para tentar proteger o bispo
e os demais.
Um
comunicado da polícia esclarece que Dom Álvarez, como todas as outras pessoas
detidas, foi levado para Manágua, a capital, onde está em prisão domiciliária
na sua residência, enquanto as outras oito pessoas que o acompanhavam foram
levadas para um quartel da polícia para ulteriores investigações. O cardeal
Leopoldo Brenes, arcebispo de Manágua e vice-presidente da Conferência
Episcopal da Nicarágua, visitou Dom Álvarez e teve longa conversa com ele.
Chefiada por Francisco Díaz, cunhado do
presidente Daniel Ortega, a polícia acusa “as altas autoridades da Igreja católica”
na província de Matagalpa, encabeçadas pelo bispo Álvarez, de se aproveitarem
da condição de religiosos e de liderança, para tentarem, com o uso da mídia e
das redes sociais, organizar grupos violentos. Segundo as autoridades, a alta
hierarquia estaria a incitar esses grupos violentos a “realizar atos de ódio
contra a população”, causando um clima de ansiedade e de desordem, alterando a
paz e a harmonia na comunidade, com o escopo de “desestabilizar o Estado da
Nicarágua e atacar as autoridades constitucionais”. Por isso, foi aberto “um
processo de investigação, a fim de apurar a responsabilidade criminal das
pessoas envolvidas na prática destes atos criminosos, de que foram informados o
Ministério Público e o Judiciário”, e que “as pessoas sob investigação – não
mencionadas – permanecerão em casa”.
Em nota
divulgada a 7 de agosto, os bispos da Nicarágua expressam “o sentir da nossa
Igreja”, que, por natureza, “anuncia o Evangelho da Paz e está aberta à
colaboração com todas as autoridades nacionais e internacionais para cuidar
deste bem universal tão grande”, e assim se propõe construir a Civilização do
Amor, de qual sempre falou o Papa São João Paulo II.
Às portas do
Congresso Nacional Mariano, a Conferência Episcopal da Nicarágua convida o santo
Povo de Deus a elevar e oferecer orações e rosários a Nossa Senhora Imaculada
Conceição de Maria, padroeira da Nicarágua.
Assinaram a
nota: o presidente da Conferência Episcopal, Dom Carlos Enrique Herrera
Gutiérrez, bispo da Diocese de Jinotenga; o vice-presidente, cardeal Leopoldo
José Brenes Solórzano, arcebispo da Arquidiocese de Manágua; o secretário-geral
Dom Jorge Solórzano Pérez, bispo da Diocese de Granada; o ecónomo geral Dom
Marcial Humberto Guzmán Saballos, bispo da Diocese de Juigalpa; Dom Sócrates
René Sándigo Jirón, bispo da Diocese de León e Dom Isidoro del Carmen Mora
Ortega, bispo da Diocese de Siuna.
Por sua vez,
o Centro Nicaraguense de Direitos Humanos, condenou “o assalto à Cúria
Episcopal de Matagalpa e o sequestro de Dom Rolando Álvarez e dos demais
sacerdotes e leigos que o acompanhavam, ‘pedindo’ o respeito pela sua integridade
pessoal e de sua vida”.
Historicamente
tensas, as relações entre a Igreja e o governo de Ortega pioraram recentemente
devido à prisão e à posterior condenação do padre Manuel Salvador García
Rodríguez, por suposta violência contra uma mulher, e pela prisão do padre
Leonardo Urbina, por supostos abusos contra um menor, bem como pela intimidação
ao padre Uriel Vallejos e ao bispo Rolando Álvarez.
O presidente
Ortega qualificou de “terroristas” os bispos nicaraguenses que atuaram como
mediadores de um diálogo nacional que buscava uma solução pacífica para a crise
que o país vive desde abril de 2018, crise que se acentuou após as polémicas
eleições de novembro passado, nas quais Ortega foi reeleito para um quinto
mandato, quarto consecutivo e segundo com a sua esposa, Rosario Murillo, como
vice-presidente, com os seus principais adversários na prisão.
As Igrejas
de todos os continentes manifestam grande solidariedade à Igreja Nicaraguense e
convidam os fiéis à oração e à proximidade ativa com a comunidade católica
deste país.
No dia 8, a
Igreja católica no México expressou a sua solidariedade com a Igreja na
Nicarágua, pelas intimidações e repressão de que são vítimas, especialmente
bispos e sacerdotes.
Também a
Conferência Episcopal da Costa Rica expressou a sua solidariedade com Dom
Rolando Álvarez, assim como com os “sacerdotes, consagrados e leigos diante da
situação difícil que vivem e que se agrava a cada dia”. Os bispos da Costa
Rica pedem aos fiéis “que permaneçam, sob a proteção da Virgem Maria, em
constante oração por nossos irmãos da Nicarágua”.
Já a
Conferência Episcopal Boliviana (CEB) expressou a sua solidariedade e
proximidade à Igreja e ao povo nicaraguense, que sofreu, nos últimos dias,
ataques das autoridades políticas. E pede à Igreja que não desista do esforço
de “construir um diálogo capaz de alcançar a unidade e a paz nesta terra
nicaraguense”, fazendo orações pela Igreja, pelo povo e pelas autoridades
políticas.
Dom David J.
Malloy de Rockford, presidente da Comissão Justiça e Paz, da Conferência
episcopal dos EUA (USCCB), expressou, numa declaração, “solidariedade constante
com a Igreja da Nicarágua e a sua missão de proclamar o Evangelho livremente,
no contexto de uma crise social e política”. O prelado recordou a visita a
Manágua, em 2018, do arcebispo Timothy Paul Andrew Broglio e o seu apoio ao
“compromisso dos Bispos nicaraguenses” como sinal do amor de Deus. Depois, citou
as palavras do Observador Permanente da Santa Sé, junto da Organização dos
Estados Americanos (OEA) e o seu apelo às partes a que “encontrem meios de
entendimento, baseados no mútuo respeito e confiança”, acentuando que “a fé do
povo nicaraguense deve ser motivo de inspiração para todos nós”.
Dom José
Domingo Ulloa define o ocorrido como aberrante e motivo de alarme e dor para
toda a Igreja latino-americana; une-se às vozes que pedem a libertação imediata
de Dom Rolando e o respeito pela sua dignidade de pessoa e de prelado católico;
e eleva uma oração ao céu “pela Nicarágua, pelo seu nobre povo e pela sua Igreja
que hoje sofre a perseguição”.
O CELAM exprimiu proximidade e solidariedade ao povo de Deus
da Nicarágua: bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas e leigos face à perseguição
das autoridades governamentais. Os prelados latino-americanos acompanham os irmãos que, em situação tão difícil, “por
diferentes caminhos, procuram ser a voz de quem não tem voz, para construir um
diálogo capaz de traçar um caminho de unidade e paz”.
Também os bispos brasileiros afirmam acompanhar com tristeza
e preocupação os acontecimentos que têm marcado a vida da Igreja na Nicarágua: “Sentimo-nos
profundamente unidos aos irmãos bispos e a todo o povo nicaraguense.” E
concluem com uma oração: “Clamamos ao Bom Deus para que a paz e a justiça sejam
alcançadas.”
Muitas
mensagens de solidariedade e fraternidade chegaram à Igreja nicaraguense nos
últimos dias das Conferências Episcopais da América Latina e da Santa Sé. Entre
outros, Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho (CELAM), Brasil, Costa
Rica, Guatemala, Honduras, Bolívia, México, Uruguai, Equador, Peru, Colômbia
e Argentina condenaram veementemente a crescente hostilidade do
governo em relação à Igreja e instaram a construir a paz.
O ato de
força daquela madrugada é o mais recente dos gestos persecutórios contra a
Igreja na Nicarágua, acusada de apoiar opositores do governo sandinista de Ortega.
Mensagens de
solidariedade ao Bispo de Matagalpa e à Igreja nicaraguense chegam de todo o
mundo. E a ação foi condenada pelo secretário da Organização dos Estados
Americanos (OEA), Luis Almagro, que fala das “forças repressivas do regime de
Ortega-Murillo” e pede a libertação imediata do bispo de Matagalpa e de outras
pessoas presas, bem como de todos os presos políticos.
A Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), organismo autónomo da OEA, condena
fortemente “a escalada na repressão contra membros da Igreja católica na
Nicarágua e exorta o Estado a cessar imediatamente esses atos”, libertando
imediatamente o bispo Álvarez e as outras pessoas detidas. Esses eventos, para
a CIDH, “fazem parte de um contexto sistemático de perseguição, criminalização,
moléstias e assédio” contra membros da Igreja na Nicarágua, “devido ao seu
papel como mediadores no Diálogo Nacional
de 2018 e o seu papel crítico na denúncia das violações dos direitos humanos
que ocorreram no contexto da crise do país”. A Comissão reitera o pedido ao
governo para que “cesse os ataques contínuos contra a Igreja católica”, que
liberte todas as pessoas privadas da sua liberdade e faça cessar a repressão no
país.
Por seu turno,
o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres,
afirmou-se muito preocupado com a grave obstrução do espaço democrático e
cívico na Nicarágua e pelas recentes ações contra organizações da sociedade
civil, incluindo as da Igreja católica”, como a invasão noturna da polícia
nacional na sede episcopal de Matagalpa. Foi o que disse o porta-voz Farhan Haq
durante uma conferência de imprensa na ONU. Guterres reitera o apelo ao governo
de Daniel Ortega a que garanta “a proteção dos direitos humanos de todos os
cidadãos, em particular os direitos universais de reunião pacífica, liberdade
de associação, pensamento, consciência e religião” e pede a libertação de todas
as pessoas arbitrariamente detidas.
***
Esta
situação esteve no cerne duma sessão especial da OEA, que pediu ao governo
Ortega que ponha fim ao “assédio” contra a Igreja e à “perseguição” contra ONG
e meios de comunicação.
Chegou na
mesa dos delegados da OEA com o título de “A situação da Nicarágua” e passou a
resolução votada por grande maioria, 27 votos em 34 e sobretudo com um apelo ao
presidente nicaraguense: chega de assédio contra a Igreja Católica, com o
enceramento forçado das ONG, com a “perseguição” da mídia – pedidos que valem
como condenação da organização pan-americana de todas as ações governamentais
empreendidas de forma sistemática há várias semanas e que visam amarrar uma
grande mordaça em torno dos considerados inimigos do poder atual, muitos dos
quais acabam na prisão e para o qual a resolução pede a libertação. A par dos
27 votos a favor com que foi aprovada a resolução, apresentada por Antígua e
Barbuda, registou-se o voto contra de São Vicente e Granadinas, além das
abstenções da Bolívia, El Salvador, Honduras e México. Uma tomada de posição
que vem depois de uma longa série de condenações semelhantes por parte dos
Estados Unidos e da Europa e de manifestações de solidariedade por parte de várias
organizações católicas.
A este apelo
da OEA soma-se a voz da Santa Sé por meio do seu observador permanente,
monsenhor Juan Antonio Cruz Serrano, que expressou, em comunicado, a
preocupação do Vaticano, convidou a encontrar “formas de entendimento, baseadas
no respeito e na confiança recíproca”, visando “o bem comum e a paz”, e
reiterou que a Santa Sé está “sempre pronta a colaborar com quem dialoga”,
considerando-o como “instrumento indispensável da democracia e garante de uma
civilização mais humana e fraterna”.
Entre as
decisões dos últimos tempos, sobressai a proibição da procissão pelas ruas da
capital Manágua no final da peregrinação mariana – pelo que foi transferida
para as às 8 horas, dentro da catedral. Mas o que causou maior comoção foi a
expulsão do país da Congregação das Missionárias da Caridade, o encerramento de
uma dezena de emissoras católicas e o bloqueio policial ao bispo de Matagalpa,
proibido de deixar a Cúria episcopal, mesmo para celebrar a Missa, acusado de
fomentar revoltas nas homilias. Num tweet, Dom Álvarez escreveu: “Estamos nas
mãos de Deus. Queremos fazer a sua vontade e tudo para a sua glória.”
2022.08.21 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário