No dia 8 de
agosto, o alinhamento do Jornal da Noite,
da SIC contemplou uma investigação
sob o título “Os bastidores sombrios do Mundial do Qatar”, em que Manuel Gomes
Samuel, chefe da missão da embaixada portuguesa em Doha, personificando o
estilo “cidadão do mundo”, declarou não ver que haja racismo no Qatar. Ao
invés, no seu modo enviesado de olhar, a situação é inversa: um tratamento
condigno dos trabalhadores estrangeiros.
Tal declaração
vem, supostamente, acompanhada da defesa da teoria racista – que os estudos da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) mostram ser infundada – de que trabalhadores
com mais melanina na pele, provindos de países com climas em que o sol tem mais
forte incidência, têm mais capacidade para trabalhar ao calor.
Em artigo de
opinião, no Público, de 10 de agosto,
a jornalista Carmo Gomes admite que, para Gomes Samuel não haja racismo ali, provavelmente
pelo facto de pensar que “racismo deve meter chicotes e navios negreiros”. Por
isso, comparativamente com a dúzia de países onde o diplomata diz já ter vivido,
“o Qatar vai muito bem”. A exploração e a discriminação são inócuas!
Não obstante,
a jornalista, sem papas na língua e sem pruridos de caneta, escreve textualmente
que “as violações dos direitos mais básicos dos trabalhadores, enquanto
trabalhadores e enquanto pessoas, são graves e são uma constante”. E especifica:
salários muito baixos (o salário mínimo quase nunca chega a 250 euros), seis
dias de trabalho semanais com sobrecarga horária e exposição a altas temperaturas
e com o dia de descanso nem sempre concedido aos trabalhadores. Mais: trabalhadores
estrangeiros têm direito a bilhete de regresso ao país de origem, mas só após
dois anos de trabalho; partilham alojamento, em quarto que acolhe 12
trabalhadores e em condições degradantes; e o uso do telemóvel no período de
trabalho pode dar como penalidade um ou dois meses de perda de retribuição.
Na última
década, morreram a trabalhar milhares de migrantes, mas não há números
oficiais. E, sem que tenha havido investigações, os relatórios dessas mortes
apontam sempre causas naturais.
Por causa do
Mundial de Futebol, o governo aprovou nova legislação laboral, mas que não
regulamentou, pelo que não há sanções por incumprimento da parte das empresas. Assim,
os trabalhadores estão sob um quadro normativo que já mereceu reparos e apelos da
Organização das Nações Unidas (ONU) e da OIT e que atenta contra os mais
básicos princípios laborais. Por exemplo, como estão impedidos de mudar de
empresa, ficam nas mãos dos empregadores.
A Amnistia
Internacional (AI) denunciou a discriminação racial da parte dos empregadores,
concretizada na diferenciação salarial e na do acesso a categorias
profissionais, bem como nas condições de trabalho em função da nacionalidade e
da cor da pele. Assim, o trabalhador tunisino recebe mais e é mais protegido
dos trabalhos mais árduos relativamente ao trabalhador filipino. A este
respeito, a ONU fala em sistema quase de castas e um estudo da OIT demonstra não
haver diferenças no impacto do calor e na saúde, em razão da nacionalidade ou
da cor da pele.
Indica a
jornalista que, de um modo geral, ninguém fica bem a fotografia: Qatar, Federação
Internacional de Futebol (FIFA), Federação Portuguesa de Futebol (FPF), Estado
Português e, tem de ser dito, cada um de nós. Às organizações calha bem o
dinheiro qatari, pelo que estão dispostas a meter um tapa-olhos e a ver só
futebol. E os Estados – digo eu – veem as contrapartidas do turismo e do petróleo,
pelo que funciona a hipocrisia diplomática.
Quanto ao
futebol, Carmo Gomes tem razão. Efetivamente, “este Mundial assenta no
princípio da nossa indiferença perante o atropelo dos direitos fundamentais de
milhares de trabalhadores e das suas próprias vidas”. Todos estão convictos de
que, no fim, conta mais o amor à bola. Com efeito, “tudo indica que nos
entregaremos ao êxtase do futebol e que esqueceremos esta parte desagradável”, sendo
como “comprar roupa manufaturada por crianças e tantos outros sapos que
engolimos ou ignoramos, para podermos andar com as nossas vidinhas para a
frente”.
Há quem que
só há racismo, quando se disser ipsis
verbis: “Eh, pá! Eu sou racista!”
***
O racismo
não está em denominar grupos étnicos de negros,
vermelhos ou amarelos, mas envolve o preconceito e a discriminação baseados em perceções
sociais assentes em
diferenças biológicas entre povos. Não raro toma o modo de ação social,
prática, crença ou sistema político que julgam diferentes raças inerentemente superiores ou
inferiores com base em caraterísticas, habilidades ou qualidades comuns herdadas.
Também pode afirmar que os membros de diferentes raças devem ser tratados de
forma distinta. Alguns sustentam que qualquer suposição de que o
comportamento da pessoa está ligado à sua categorização racial é inerentemente
racista, não importando se a ação tem intuito prejudicial ou pejorativo,
porque os estereótipos subordinam necessariamente a identidade do
indivíduo à identidade de grupo. Em Sociologia e em Psicologia, algumas aceções
contemplam só os modos conscientemente malignos de discriminação.
Entre as
formas de definir o racismo está a inclusão (ou não) de formas de discriminação
não intencionais, como as que fazem suposições sobre preferências ou
habilidades dos outros com base em estereótipos raciais ou formas simbólicas e/ou
institucionalizadas de discriminação, como a circulação de estereótipos étnicos
na comunicação social e nas redes sociais. Também pode haver a inclusão de
dinâmicas sociopolíticas de estratificação social que têm componente
racial. Algumas definições de racismo incluem comportamentos e crenças
discriminatórias baseadas em estereótipos culturais, nacionais, étnicos ou
religiosos.
Alguns
defendem que o racismo é um preconceito aliado ao poder, visto que sem o apoio
de poderes políticos ou económicos, o preconceito não seria capaz de se
manifestar como fenómeno cultural, institucional ou social generalizado. Alguns
críticos do termo dizem que ele é aplicado diferencialmente, com foco em
preconceitos que partem de brancos e de formas que definem como racismo meras observações de
eventuais diferenças entre as raças.
Enquanto raça
e etnia são já considerados fenómenos distintos nas ciências sociais, os
dois termos têm longa história de equivalência no uso popular e na literatura
mais antiga das ciências sociais.
O racismo e a
discriminação racial são, muitas vezes, usados para descrever a discriminação
com base étnica ou cultural, independentemente de tais diferenças serem
descritas ou não como raciais. À luz da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação
Racial, da ONU, não há distinção entre “discriminação racial” e “discriminação
étnica”, sendo a superioridade estribada em diferenças raciais “cientificamente
falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa”, como não há qualquer
justificação para a discriminação racial, teórica ou prática, em qualquer lugar
do mundo.
Historicamente,
o racismo teve o papel de força motriz do tráfico transatlântico de
escravos (África-África e África-Brasil) e dos Estados que se basearam na
segregação racial, como os Estados Unidos no século XIX e
início do XX e a África do Sul sob o regime do apartheid.
São
universalmente condenadas, na Declaração
dos Direitos Humanos (10 de dezembro de 1948), da ONU, as ideologias e
práticas racistas, as quais constituíram uma parte importante da base política
e ideológica de genocídios no planeta, em que sobressai o Holocausto,
mas também em contextos coloniais, como os ciclos da borracha na América
do Sul e no Congo, e na conquista europeia das Américas e
no processo de colonização da África, da Ásia e da Austrália.
Em Portugal,
embora haja linguagens e atitudes racistas, o racismo configura crime no
código penal (art.º 240.º), e é circunstância de agravo importante como móbil
de um crime. No entanto, o discurso é puro e poucos são os relatórios e as
estatísticas da situação em Portugal no atinente à discriminação racial, apesar
de haver registo de casos de violência na história recente do país.
Um relatório
da União Europeia (UE), de 2018, entre 12 países europeus analisados, coloca
Portugal como o país com as menores taxas de violência e de vitimização
motivadas por racismo.
A nossa população,
embora bastante homogénea, integra algumas minorias, tais como as
minorias africana, cigana e brasileira. Devido ao passado
expansionista de Portugal, há muito que o país lida com diferenças culturais,
étnicas, nacionais e religiosas, entre outras. Nas colónias não vigoravam
políticas oficiais de segregação ou de não miscigenação, o que indica tolerância
a diferentes realidades, a par de maus-tratos a negros, formas de servidão, de subalternização
e de dificuldade de acesso a determinadas profissões e à ocupação de certos
cargos.
Desde a década
de 1980 Portugal assiste a uma vaga migratória para o território,
principalmente de África, da América do Sul e da Europa de
Leste. Devido a mão-de-obra barata e/ou ilegal, há tendência para generalizar e
associar à criminalidade as populações de imigrantes. Estudos revelam que negros, brasileiros e ciganos são
as maiores vítimas do racismo em Portugal.
Portugal teve
colónias e tem fraquíssima apresentação de negros nos centros de decisão.
Contudo, não pode ser agora especialmente acusado de racismo estrutural e
histórico deixando outros países (Inglaterra, França, Alemanha, Holanda…) no
limbo da isenção de culpas. Todos devem assumir a sua História de sombras e de
luzes e evitar atuais formas de colonialismo ou de neocolonialismo.
E quem está sem culpa atire a primeira pedra!
2022.08.10 – Louro de Carvalho
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